Entrevista com Giorgio Agamben por Chiara Valerio, via Repubblica, traduzido por Rafael Lemos
Em seu novo livro, “Karman”, o filosofo discute a relação entre uma ação e as suas consequências. Um ensaio que analisa os fundamentos da ética e do direito, da teologia e das filosofias orientais.
Se, nesta vida, respondemos por nossas ações através do sistema de leis, e em outra, respondemos, de acordo com o budismo, através de sucessivas reencarnações, o motivo está – escreve Giorgio Agamben no ensaio Karman – no fato de que a moral religiosa, o direito e a ética são fundados pelo princípio no qual cada ação é ligada as suas consequências, e nós, a este princípio, nos sujeitamos. Alguns anos atrás Agamben dividiu o mundo em dois grupos. Os seres vivos e o conjunto de instituições, conhecimentos e práticas que controlam e orientam os gestos e os pensamentos dos seres vivos: os dispositivos.
Professor, o direito – cujas portas, caso fosse um edifício, seriam a causa e a culpa – é um dispositivo do devemos escapar?
O direito é uma parte excessivamente essencial da nossa cultura para nós possamos simplesmente nós subtrair dele. Entretanto é verdade, porém, que o nascimento do cristianismo coincide com uma crítica implacável da lei. É difícil imaginar uma objeção mais radical do que a de Paulo que afirma que sem a lei não existiria o pecado e que o Messias é ao final a realização (o telos) da lei. E, todavia, como você sabe, a Igreja tem pacientemente reconstruído o edifício da lei que o cristianismo primitivo colocava em dúvida, ainda que pontualmente fenômenos como o Franciscanismo reivindicassem a possibilidade de uma vida além do direito. Acredito que uma sociedade habitável possa resultar apenas da dialética de dois princípios opostos e, de algum modo, coordenados: o direito e a anomia, um polo institucional e um não institucional ou anárquico – ou, para usar as suas expressões, os seres vivos e seus dispositivos históricos. Isto é evidente na linguagem: uma língua viva resulta da relação harmônica entre a espontaneidade (o “a língua materna” de Dante) e a regra (a língua “gramática” de Dante). Me parece que essa dialética está em todos os lugares – tanto na linguagem como nas relações sociais – distorcida ou quebrada.
O senhor escreve que “a vontade age como um dispositivo cujo objetivo é de tornar padronizável aquilo que o homem pode fazer”. A vontade também também seria um dispositivo do qual fugir?
No livro eu apenas tentei mostrar que o conceito de vontade (quase desconhecido no mundo antigo) é o dispositivo através do qual a teologia cristã teve a intenção de fundar a ideia de uma ação livre e responsável e assim imputável a um sujeito: é o “livre arbítrio”, que define a ação humana não menos que a divina (o Deus cristão não age por necessidade, como o Deus de Aristóteles, mas por arbitrium voluntatis). A vontade é o mistério insondável que está na base do conceito de uma ação legalmente sancionável (o crimen – Karman) sem o qual a ética e a política moderna ruiriam. Se o homem antigo é um homem que pode, o homem moderno é ao contrário um homem que quer. No meu livro a crítica do primado do conceito de ação procede portanto lado a lado com a critica do conceito de vontade. Sempre me fascinou, de Aristóteles a Hannah Arendt, que a ideia de ação seja sempre imutável no centro da tradição do Ocidente. Não sei se consegui, mas tentei transferir a ética e a política para outro lugar.
Permanecemos na evolução do “homem que pode” para “o homem quer”. Marina Cvetaeva observou que “não posso” é a superação de todos os meus “não quero”, a correção de todos os meus desejos. Qual relação deveria existir entre a vontade e poder, hoje?
Te respondo com as palavras de uma outra grande poetisa russa. Anna Achmatova conta que entre os anos da perseguição passava meses na fila em frente a prisão de Leningrado onde estava recluso seu filho, uma mulher um dia a reconheceu e a perguntou: “Pode dizer isso?” A poetisa permaneceu em silêncio por um instante e então, sem saber como e porquê, sentiu surgir a resposta em seus lábios “Sim, eu posso”. Que coisa ela pretendia dizer? Não é certo que ela havia assim um grande talento ou, assim, uma grande maestria com o idioma para dizer tudo que gostaria. Aquele “eu posso” não se referia a alguma certeza ou habilidade e, no entanto, vinculava-a e colocava-a integralmente em jogo. É qualquer coisa do gênero que tinha em mente Spinoza quando definiu a maior felicidade acessível de um homem como a contemplação do que ele é capaz de fazer. Por isso a transformação cristã e moderna da potência em vontade me parece deletéria.
Landau em ¨Física para todos¨ observa “Se repentinamente o peso de um papel dá um salto, você pensaria que o tinham enganado. Caso isso se repita, você se coloca instantaneamente a procurar a causa que tirou este corpo de seu estado de inércia. Porque é natural considerar racionalmente o ponto de vista segundo o qual os corpos em inércia não se movimentam sem a intervenção de uma força¨. É racional pensar que os corpos humanos não se movem, não realizam ações sem uma finalidade, sem um objetivo?
No livro a crítica da finalidade é inseparável daquela da ação. Um dos pressupostos que estamos habituados a levar em consideração é que cada ação é destinada a um fim e que esse fim seja o bem que o agente, necessariamente, sempre se propõe. Desse modo, porque a finalidade é concebida como qualquer coisa de transcendente ou qualquer modo de externo, o bem vem separado do homem. Como me parece mais convincente a ideia epicurista segundo a qual nenhum órgão do corpo humano foi criado em vista de um fim e que cada coisa que nasce gera no seu uso o seu bem! A fúria de gesticular, a mão encontra ali seu prazer e seu uso, os olhos na fúria de ver se apaixona pela visão e as pernas, esticando e tateando, inventam o passeio. De resto é aquilo que vemos existir nas crianças e é aquilo que se sugerem as artes como a dança, que não tem outro fim do que a pura exibição de um gesto, do que um corpo pode fazer. Por isso eu procurei substituir o paradigma da ação destinada a um fim pelo do gesto subtraído de toda finalidade.
Um filósofo disse que definir os termos é o momento poético do pensamento. Como o senhor definiria a finalidade?
Te dou uma resposta estóica e zen: a finalidade é o que se alcança somente na condição de nunca ser alcançada.
Se ¨age contra a lei, quem faz o que a lei proíbe¨ e se ¨não há penalidade sem culpa¨, o que nasce primeiro, a culpa, a lei ou a sanção?
Como Paulo havia compreendido (¨a lei veio porque a culpa assentiu¨), todo jurista inteligente sabe que o princípio de que ¨não há penalidade sem culpa¨ vai na verdade ser revertido no princípio de que ¨não há culpa sem penalidade¨. ¨Não há penalidade sem culpa¨ significa que a penalidade pode ser infligida somente em consequência de um determinado ato, mas a culpa existe apenas em virtude da punição que a sanciona. A sanção não é acessória a lei: a lei consiste essencialmente na sanção.
Em ¨O Nome da Rosa¨, Eco conta que o volume relativo à peça de Aristóteles que tratava do riso nunca foi compilado pois o riso cria a desordem. Em ¨Karman¨, o senhor – como já fez Guglielmo de Baskerville – o deduz do volume da tragédia e supõe que Aristóteles nunca o escreveu por mover uma crítica a Platão. Qual?
Na Grécia, o conceito de uma ação culpável foi elaborado pela prime-a vez através de uma reflexão sobre o herói trágico. É aquilo que faz Aristóteles na Poética quando escreve que a felicidade consiste na ação e que na tragédia os homens não agem para imitar personagens, mas assumem livremente seu caráter através de suas ações. Embora Aristóteles não tenha completado sua discussão da comédia, podemos deduzir que o personagem cômico age, em vez disso, para imitar seu personagem e que é por isso que suas ações nunca podem ser atribuídas a ele culposamente. Platão, que não mantinha as tragédias sob o travesseiro, mas nos mimos de Sofrone*, diz ao seu herói antitrágico, Sócrates, que ¨ninguém faz o mal voluntariamente¨, o que implica na impossibilidade da tragédia.
A filosofia se interessa primeiro de tudo pelo ser, mas o ser aparece imediatamente com suas ¨qualidades¨: possibilidade, contingência e necessidade. O senhor observa que é necessário refletir sobre a utilidade que a filosofia faz dos verbos moldais: ¨posso¨, ¨quero¨, ¨devo¨. Acompanhe-me em uma passagem certamente arriscada. O idioma da política, aderente (às vezes mesmo nos corpos) à televisão, tem abolido progressivamente os subordinados, as ¨qualidades¨ das frases: modais, temporais e causais. Sem essas ¨qualidades¨ somos obrigados a um falar (e agir) privados de consequências. Existe um modo de manter a complexidade da linguagem e não permanecer preso no presente do indicativo (e televisivo) do estar no mundo?
Se a sua pergunta é de ordem poética-literária, então te respondo com a poesia tardia de Hölderlin, na qual as ligações sintáticas são abolidos e suspensas e nos versos parecem sobreviver apenas os nomes em seu isolamento (às vezes, até mesmo uma partícula: aber, que significa ¨mas¨). Existe uma tradição na poesia, de Arnaut Daniel a Mallarmé, que tende obstinadamente não à frase, mas ao nome – antes, talvez, em última análise, cada poesia não é mais que uma tensão em direção ao nome, que por definição é subtraído a cada articulação modal. Se a sua pergunta é de ordem ética-política, te responderei então que se trata de desfazer a ligação perversa entre os três verbos modais que Kant estabeleceu como fundamento de sua ética ¨se deve poder querer¨. Esta frase monstruosa é a síntese paródica dos dispositivos que o meu livro procura desativar.
Na quarta capa se lê ¨Giorgio Agamben ensinou Filosofia teórica… foi professor visitante…¨. Se te pedisse notas biográficas no presente?
Te responderia spinosianamente:
¨contempla aquilo que pode e aquilo que não pode fazer¨. Sempre amei o maravilhoso lema de van Eyck ¨Als ich kann¨, ¨como posso¨. Conhecer os próprios limites significa conhecer a medida da própria potência e da própria impotência.