Texto de György Lukács, via Marxist.org, traduzido por Julio Davila
O objetivo final do comunismo é a construção de uma sociedade na qual a liberdade da moral assumirá o papel da constrição legal na regulação do comportamento. Tal sociedade necessariamente pressupõe, como todo marxista sabe, o fim das divisões de classe. Porque, independentemente de acharmos que a natureza humana em geral permite ou não uma sociedade baseada em um código moral (e, na minha opinião, a questão não pode ser colocada nesses termos) – o poder da moralidade não pode ser efetivo, mesmo que acreditemos nessa possibilidade, enquanto existirem classes. Somente um modo de regulação é possível na sociedade: a existência de dois modos, um que contradiga o outro ou simplesmente se derive dele, só pode levar a um estado de completa anarquia. Se, contudo, a sociedade é dividida em diversas classes, ou se – colocando de outro modo – os interesses dos grupos humanos não sejam os mesmos, é inevitável que a regulação do comportamento humano vai contrariar os interesses do grupo decisivo, ou até mesmo o da maioria das pessoas. Mas seres humanos não podem ser induzidos a agir voluntariamente contra seus próprios interesses, eles só podem ser forçados a tal – seja por constrição física ou espiritual. Portanto, enquanto existirem diferentes classes, é evidente que a regulação social será determinada pela lei, e não pela moral.
Mas tal função da lei não culmina necessariamente com a imposição pelas classes opressoras de um modo de comportamento às classes oprimidas. Os interesses da classe opressora devem ser aplicados até a elas mesmas. A segunda razão para a necessidade da lei, o conflito de interesses individuais e de classe, não é exclusivamente uma consequência da divisão de classes. É verdade, no entanto, que esse conflito é mais agudo no capitalismo. Além disso, as próprias condições de existência de uma sociedade capitalista – a anarquia e a constante revolução na produção, a produção visando lucro e etc – impossibilitam a união dos interesses de um indivíduo e sua classe. Esses interesses obviamente coincidem quando os capitalistas são conformados por uma outra classe (os oprimidos ou outros opressores, como classes agrárias feudais ou capitalistas de outros países) – ou seja, quando a classe é obrigada a adotar uma posição que garanta a possibilidade e direção da opressão – mas, à exceção desse caso, a união desses interesses é impossível uma vez que a opressão está instaurada, quando está colocada a a questão: quem deve se tornar o opressor e, enquanto tal, quem ele deve oprimir, e para que? A Solidariedade de classe entre capitalistas só é possível quando eles olham para fora, não quando estão preocupados consigo mesmos. É por isso que, dentro dessas classes, a moralidade jamais poderia ter substituído o poder da lei.
A situação de classe do proletariado, tanto na sociedade capitalista e na sociedade que surgirá com a derrota do capitalismo, é exatamente oposta. Apropriadamente concebido, o interesse de um indivíduo do proletariado não pode ser realizado em seu potencial abstrato, mas somente na própria realidade através da vitória de seus interesses de classe. A solidariedade propagada pelos maiores pensadores burgueses como um ideal social inatingível é na verdade uma presença viva nos interesses de classe do proletariado. A missão histórica mundial do proletariado se manifesta precisamente no fato que a realização dos interesses de sua própria classe leva à salvação social da humanidade.
Essa salvação, entretanto, não vai simplesmente emergir como o resultado de um processo meramente automático determinado pelas leis naturais. A vitória da ideia sobre a vontade egoística de indivíduos está obviamente claramente implícita na natureza da dominação de classe presente na ditadura do proletariado; é possível que o objetivo imediato do proletariado seja algo como uma hegemonia de classe. Independentemente, a consistente implementação dessa hegemonia vai destruir as diferenças de classe e gerar uma sociedade sem classes. Para que a hegemonia torne-se realmente efetiva, ela só poderá liquidar as diferenças sociais e econômicas das classes – em última análise – forçando todas as pessoas à democracia do proletariado que é apenas a forma interior da manifestação da ditadura do proletariado no interior do cenário da classe. A consistente implementação da ditadura do proletariado só pode culminar em uma democracia do proletariado absorvendo a ditadura e tornando-a supérflua. Com o fim das classes, a ditadura não pode mais ser exercida contra ninguém.
O Estado, a principal causa do exercício da constrição legal, a causa cuja remoção Engels tinha em mente quando disse que “o estado murcha até sumir”, deixa então de existir. A questão é, porém: qual é o padrão de desenvolvimento dentro do proletariado? É aqui que a questão da função social efetiva da moralidade vira problemática. Ela certamente desempenhou um papel importante nas ideologias da antiga sociedade, mas nunca fez uma contribuição substancial ao desenvolvimento da realidade social propriamente dita. E ela nem poderá, porque as pré-condições sociais para o desenvolvimento da moralidade de classe e sua validade dentro de uma classe – a supracitada orientação coincidente dos interesses do indivíduo e sua classe – estão presentes somente no proletariado. É apenas para o proletariado que a solidariedade, a subordinação dos interesses pessoais pelos do coletivo, coincidem com os interesses, retamente concebidos, dos indivíduos. Essa possibilidade social agora existe, na medida que todos os indivíduos que pertencem ao proletariado possam se subordinar aos interesses de sua classe, sem o detrimento de seu interesse particular. Tal liberdade de escolha não era possível na burguesia, onde a ordem só podia ser estabelecida pela lei. Para a burguesia, moralidade só poderia significar – assumindo que ela exercia qualquer controle real sobre o comportamento – um principio que ia além das divisões de classe e da existência de uma classe: em outras palavras, moralidade individual. Esse tipo de moralidade infelizmente implica um nível de cultura humana que pode se tornar um fator geral, efetivo para toda sociedade, apenas em uma época muito distante.
A distancia entre o comportamento baseado meramente em interesses egoístas e a moralidade pura é eclipsado pela moralidade de classe, que levará a humanidade a uma nova era espiritual, a, como diz Engels, “o reino da liberdade”. Mas repito: esse desenvolvimento não será uma necessidade automática de forças sociais cegas – ele deve ser a consequência de uma decisão livre da classe trabalhadora. Porque, depois da vitória do proletariado, a constrição será necessária dentro da classe trabalhadora somente na medida em que indivíduos sejam incapazes ou indispostos a agirem de acordo com seus próprios interesses. Se a constrição, a organização da violência física e espiritual, prevaleceu na sociedade capitalista até dentro da classe dominante, é porque ela era necessária, porque os indivíduos que comprometeram uma classe o fizeram por causa da exorbitante demanda de seus interesses particulares (ganância por lucro) à dissolução da sociedade capitalista. Em contraste, os interesses individuais de cada proletário vai, desde que ele os identifique corretamente, fortalecer a sociedade. O que importa é o correto entendimento desses interesses, a obtenção da força moral que permite a subordinação de inclinações, emoções e caprichos momentâneos por interesses reais.
O ponto em que os interesses de classe e de indivíduos converge é caracterizado pela produção aumentada, uma melhora na produtividade e o correspondente fortalecimento da disciplina do trabalho. Sem essas coisas o proletariado não pode sobreviver, sem elas a hegemonia de classe do proletariado desaparece – sem elas (mesmo se descartarmos as consequências desastrosas presentes em tal deslocamento da classe para todos proletários), ninguém pode se desenvolver inteiramente, nem mesmo como indivíduo. Está claro que esses aspectos do poder do proletariado que são mais opressivos e cujas consequências imediatas são mais facilmente percebidas – a escassez de bens e preços altos, por exemplo – são um resultado direto do afrouxamento da disciplina no trabalho e o declínio da produtividade. Para remediar esse estado e, concomitantemente, elevar o nível de indivíduos, as causas desses fenômeno devem ser removidas.
Existem dois remédios possíveis. Ou os indivíduos que constituem o proletariado percebem que eles somente podem se ajudar voluntariamente se dedicando ao fortalecimento da disciplina do trabalho e dessa forma gerando maior produtividade, ou, caso os indivíduos sejam incapazes de fazer isso, eles criam instituições que cumpram essa função. Nesse último caso, eles criam para si mesmo a ordem legal que compele os indivíduos do proletariado a agir de acordo com os interesses da classe. O proletariado então exerce a ditadura contra si mesmo. Quando seus interesses não são corretamente apreendidos e voluntariamente aplicados, tais medidas são necessárias para que a classe sobreviva. Elas também, no entanto, – e não devemos disfarçar o problema – envolvem grande perigo para o futuro. Se, de um lado, o proletariado cria sua própria disciplina; se o sistema de trabalho do proletariado for construído com uma base moral; então a constrição externa da lei vai automaticamente acabar com a abolição das classes. Em outras palavras, o estado vai murchar até sumir. Esse processo de liquidação da estrutura de classes vai gerar o começo da história verdadeira humana – como Marx profetizou. Se, por outro lado, o proletariado assumir outra direção, ele será obrigado a criar para si uma ordem legal que não pode ser automaticamente abolida pelo progresso histórico. Nesse caso uma tendência poderia evoluir, o que ameaçaria tanto a fisionomia quando a factibilidade do último objetivo. Porque se o proletariado é compelido a criar uma ordem legal dessa forma, a própria ordem legal deve ser derrubada – e quem pode saber quais convulsões e sofrimentos serão causados pela transição do reino da necessidade para o reino da liberdade através de um caminho tão tortuoso?
A questão da disciplina do trabalho então, não se relaciona apenas com a existência econômica do proletariado: ela é também uma questão moral. O que mostra quão certo estavam Marx e Engels quando afirmaram que a época da liberdade começa com a tomada do poder pelo proletariado. O progresso não é mais regido por leis de forças sociais efêmeras, mas pela decisão voluntária do proletariado. A direção, cujo desenvolvimento social depende da autoconsciência, do caráter moral e espiritual, do julgamento e altruísmo do proletariado.
A questão da produção torna-se então, uma questão moral. A “pré-história do homem”, o poder da economia sobre os homens, das instituições e constrições sobre a moral vão chegar ao fim. Depende do proletariado se a verdadeira história do homem está começando ou não, isto é, o poder da moral sobre as instituições e a economia. É verdade, o desenvolvimento social criou a possibilidade em primeiro lugar, mas agora o proletariado tem em suas mãos não apenas seu destino, mas o destino da humanidade. O critério para a capacidade ou não do proletariado está, então, dada. Até hoje o proletariado foi liderado por leis de desenvolvimento social; daqui em diante, o papel da liderança é dele. Sua decisão vai determinar o rumo da sociedade. Cada indivíduo no proletariado deve agora estar consciente de sua responsabilidade. Ele deve sentir que é ele mesmo, seu trabalho diário, que vai determinar quando a época verdadeiramente feliz e livre da humanidade começará. É inaceitável que o proletariado, que, em condições muito mais precárias, permaneceu fiel a sua missão mundial-histórica, abandone agora essa missão, no exato momento em que ele está em posição para realizá-la plenamente.