Por Slavoj Žižek, via Independent, traduzido por Rodrigo Gonsalves.
No início da década de 1970, em uma nota à CIA que os informava sobre como prejudicar o governo chileno democraticamente eleito de Salvador Allende, Henry Kissinger escreveu de maneira sucinta: “Faça a economia gritar”.
Os altos representantes dos EUA admitem abertamente que hoje a mesma estratégia é aplicada na Venezuela: o ex-secretário de Estado dos EUA, Lawrence Eagleburger, disse na Fox News que o apelo de Chávez ao povo venezuelano “só funciona enquanto a população da Venezuela ver alguma capacidade de um melhor padrão de vida. Se, em algum momento, a economia realmente ficar ruim, a popularidade de Chávez dentro do país certamente diminuirá e essa, é a única arma que temos contra ele para começo de conversa e, é a que devemos usar, ou seja, as ferramentas econômicas para tentar piorar a economia para que o seu apelo no país e na região diminua… Tudo o que podemos fazer para tornar a economia deles mais difícil para eles, é no momento uma coisa boa, mas faremos de forma que não nos levem a um conflito direto com a Venezuela, caso possamos fugir disto”.
O menor que se pode dizer é que tais afirmações dão credibilidade à ideia de que as dificuldades econômicas enfrentadas pelo governo de Chávez (a enorme escassez de produtos e eletricidade em todo o país, por exemplo) não são apenas o resultado da inaptidão de suas próprias políticas econômicas. Aqui chegamos ao ponto político chave, difícil de engolir para alguns liberais: claramente não estamos lidando aqui com processos e reações cegas do mercado (por exemplo, donos de lojas tentando obter um lucro maior mantendo alguns produtos fora das prateleiras), mas com uma estratégia completamente planejada.
No entanto, mesmo que seja verdade que a catástrofe econômica na Venezuela é, em grande medida, o resultado da ação conjunta do grande capital venezuelano e das intervenções dos EUA, e que o núcleo da oposição ao regime de Maduro vem das corporações de extrema direita e não das forças democráticas populares, este insight levanta mais questões. Em vista dessas censuras, por que não havia uma esquerda venezuelana para fornecer uma autêntica alternativa radical a Chavez e Maduro? Por que a iniciativa da oposição a Chavez deixou a extrema direita triunfantemente hegemonizada na luta de oposição, impondo-se como a voz das pessoas comuns que sofrem as conseqüências da má gestão da economia chavista?
Chavez não era apenas um populista desperdiçando o dinheiro do petróleo; o que é amplamente ignorado na mídia internacional são os esforços complexos e muitas vezes inconsistentes para superar a economia capitalista através da experimentação de novas formas de organização de produção, formas que se esforçaram para se mover para além da alternativa da propriedade privada e estatal: cooperativas de agricultores e trabalhadores, participação dos trabalhadores, controle e organização da produção, diferentes formas híbridas entre propriedade privada e controle social e organizacional, e etc… (digamos, as fábricas que não são usadas pelos proprietários são dadas aos trabalhadores para que seja utilizada).
Existem muitos “bater e correr” [1] nesse percurso – por exemplo, depois de algumas tentativas, dar origem a fábricas nacionalizadas para os trabalhadores possuí-las, distribuindo ações entre eles, foram abandonadas. Embora estejamos lidando aqui com tentativas genuínas em que as iniciativas de base interagem com as propostas estatais, é preciso também notar muitas falhas econômicas, ineficiências, corrupção generalizada e etc…. A história habitual é a de que, após (metade) de um ano de trabalho entusiasmado, as coisas vão desfiladeiro abaixo.
Nos primeiros anos do Chavismo, assistimos claramente a uma ampla mobilização popular. No entanto, a grande questão permanece: como essa dependência da auto-organização popular pode ou poderia afetar um governo em andamento? Poderíamos imaginar hoje um autêntico poder comunista? O que temos é desastre (Venezuela), capitulação (Grécia), ou um retorno completo ao capitalismo (China, Vietnã). Como afirmou Julia Buxton, a Revolução Bolivariana: “transformou as relações sociais na Venezuela e teve um impacto enorme no continente como um todo. Mas a tragédia é que nunca foi devidamente institucionalizada e, portanto, provou-se insustentável”. É muito fácil dizer que as políticas emancipadoras autênticas devem permanecer à distância do estado: o grande problema que perdura por trás é o que fazer com o estado. Podemos imaginar uma sociedade fora do estado? Bem, devemos lidar com esses problemas no aqui e agora.
Para realmente mudar as coisas, é preciso aceitar que nada pode realmente ser alterado (dentro do sistema existente). Jean-Luc Godard propôs o lema: “Ne change rien pour que tout soit différent” (não mude nada para que tudo seja diferente), uma inversão de “algumas coisas devem mudar para que tudo permaneça o mesmo”. Em nossa dinâmica consumista capitalista tardia, estamos sempre sendo bombardeados por novos produtos, mas essa mesma mudança constante é cada vez mais monótona. Quando somente a auto-revolução constante pode manter o sistema, aqueles que se recusam a mudar qualquer coisa são efetivamente os agentes da verdadeira mudança.
Ou, para colocar de forma diferente, a verdadeira mudança não é apenas a superação da ordem antiga, mas, acima de tudo, o estabelecimento de uma nova ordem. Louis Althusser improvisou uma tipologia de líderes revolucionários dignos da classificação de Kierkegaard de humanos em oficiais, empregadas domésticas e varredores de chaminé: aqueles que citam provérbios, aqueles que não citam provérbios e aqueles que inventam (novos) provérbios. Os primeiros são canalhas (Althusser pensou em Stalin), o segundo são grandes revolucionários condenados a falhar (Robespierre) e apenas a terceira, compreende a verdadeira natureza de uma revolução e sucedem (Lenin e Mao).
Esta tríade registra três formas diferentes de se relacionar com o grande Outro (a substância simbólica, o domínio dos costumes não escritos e da sabedoria melhor expressa pela estupidez dos provérbios). Os canalhas simplesmente reinscrevem a revolução na tradição ideológica de sua nação (para Stalin, a União Soviética foi a última etapa do desenvolvimento progressivo da Rússia). Os revolucionários radicais, como Robespierre, falham porque eles somente causam uma ruptura com o passado sem terem conquistado em seus esforços a imposição de um novo conjunto de costumes (recordamos aqui o grande fracasso da ideia de Robespierre em substituir a religião pelo novo culto de um Ser Supremo). Os líderes como Lenin e Mao conseguiram (por algum tempo, pelo menos) porque inventaram novos provérbios, o que significa que eles impuseram novos costumes que regulavam a vida cotidiana. Um dos melhores Goldwynismos diz como, depois de ter sido informado de que os críticos se queixaram de como existiam muitos clichês antigos em seus filmes, Sam Goldwyn escreveu um memorando para o seu departamento de cenários: “Precisamos de mais clichês novos!” Ele estava certo, e isso é a tarefa mais difícil da revolução – criar “novos clichês” para a vida comum cotidiana.
Deve-se dar um passo a mais diante disto. A tarefa da esquerda não é apenas propor uma nova ordem, mas também mudar o próprio horizonte do que parece ser o possível. O paradoxo do nosso dilema é que, enquanto as resistências contra o capitalismo global parecem fracassar e uma e mais outra vez para minar seus avanços, elas permanecem estranhamente fora de contato com muitas tendências que claramente sinalizam a desintegração progressiva do capitalismo – é como se as duas tendências (resistência e auto-desintegração) se movessem em níveis diferentes e não pudessem se encontrar, e então o que temos são protestos inúteis em paralelo com a decadência imanente e nenhuma maneira de reunir os dois em um ato coordenado da superação emancipatória do capitalismo.
Como chegamos a isso? Enquanto a (maior parte da) esquerda tenta desesperadamente proteger os direitos dos antigos trabalhadores contra o ataque do capitalismo global, são quase exclusivamente os próprios capitalistas “progressistas” (de Elon Musk e Mark Zuckerberg) que falam do pós-capitalismo como se o próprio tema da passagem do capitalismo tal como conhecemos para uma nova ordem pós-capitalista fosse apropriada pelo capitalismo.
Na Ninotchka de Ernst Lubitch, o herói visita uma cafeteria e pede um café sem creme; o garçom responde: “Desculpe, mas estamos sem creme. Posso lhe trazer café sem leite?” Em ambos os casos, o cliente receberá café puro, mas em cada uma das vezes, este café é acompanhado por uma negação diferente, primeiro o café-com-mas-sem-creme, depois o café-com-mas-sem-leite. A diferença entre “café puro” e “café sem leite” é puramente virtual, não há diferença na realidade da xícara de café – a própria falta funciona enquanto uma característica positiva.
Este paradoxo também é muito bem sucedido em uma velha piada Iugoslava sobre os montenegrinos (pessoas do Montenegro eram estigmatizadas como preguiçosas na antiga Iugoslávia): “Por que um rapaz montenegrino, quando vai dormir, coloca dois copos, um cheio e um vazio, ao lado de sua cama? Porque ele é preguiçoso demais para pensar antecipadamente se ele terá sede durante a noite”. O ponto desta piada é que a própria ausência deve ser registrada positivamente: não basta ter um copo cheio de água, já que, se o montenegrino não tiver sede, ele simplesmente irá ignorá-lo – esse fato negativo em si deve ser registrado, a-não-necessidade-de-água deve ser materializada no vazio do copo vazio.
Um equivalente político pode ser encontrado em uma piada bem conhecida da era socialista da Polônia. Um cliente entra em uma loja e pergunta: “Você provavelmente não tem manteiga, ou você tem?” A resposta: “Desculpe, mas somos a loja que não tem papel higiênico; a do outro lado da rua é a que não tem manteiga!”
Ou considere o Brasil atualmente onde, durante o carnaval, pessoas de todas as classes vão dançar juntas na rua, esquecendo momentaneamente suas diferenças de raça e de classe mas que obviamente não é o mesmo caso um trabalhador desempregado juntar-se à dança, esquecendo de suas preocupações sobre como cuidar de sua família, ou se um banqueiro rico se soltar e sentir-se bem em ser um com as pessoas, esquecendo que acabou de recusar um empréstimo ao pobre trabalhador. Ambos são os mesmos na rua, mas o trabalhador dança sem leite, enquanto o banqueiro dança sem creme. De forma semelhante, os europeus do leste em 1990, não queriam apenas a democracia-sem-comunismo, mas também a democracia-sem-capitalismo.
E isso é o que a esquerda deve aprender a fazer: oferecer o mesmo café, com a esperança de que um café sem leite tenha de repente se transformado em um café sem creme. Só então, a luta pelo creme começará.
[1] Da expressão em Inglês “ hit and run ” (Nota do tradutor).