Por Gabriel Landi Fazzio
Se é verdade que uma onda conservadora tem varrido a cena política europeia, por outro lado segue sendo verdade que um espectro ronda a Europa. Não é bem o caso do DiEM25 de Yanis Varoufakis, que pretende “democratizar o Eurogrupo”; muito menos da “Conferência da Europa do Sul”, convocada em setembro de 2016 pelo governo Syriza-ANEL. Enquanto essas articulações buscam fazer frente ao reacionarismo eurocético apoiando-se sobre a arenosa base dos “ideais humanistas” da União Europeia e propondo sutis reformas, o movimento comunista europeu aponta o horizonte revolucionário de um Europa socialista.
Surgida ao fim do ano de 2013 por impulso do Partido Comunista Grego (KKE), a Iniciativa Comunista Europeia (ou “INICIATIVA de Partidos Comunistas e Operários para o estudo e elaboração sobre as questões europeias e para a coordenação de suas atividades”) congrega 29 partidos revolucionários de toda a Europa sob os princípios do socialismo científico. Em sua Declaração de Fundação a INICIATIVA expõe seu ponto de partida:
“Nós consideramos que a União Europeia é uma preferência do capital. Ela promove medidas em favor dos monopólios, a concentração e a centralização do capital; que vem fortalecendo suas características como um bloco imperialista econômico, político e militar, oposto aos interesses da classe trabalhadora, das camadas populares; ela intensifica seu armamentismo, autoritarismo e repressão estatal, limitando direitos soberanos. Analisamos que a União Europeia é o centro do imperialismo europeu, apoiando os planos de agressão contra os povos e se alinhando aos EUA e à OTAN. Ela carrega o militarismo como elemento estrutural”.
Por não ocultar sua justa apreciação do caráter de classe da UE, a INICIATIVA apresenta uma alternativa às massas trabalhadoras cansadas de ouvir, a cada ataque desferido por seus governos nacionais, que a responsabilidade última pelos rumos políticos do continente está nas mãos da tecnocracia de Bruxelas – e que, portanto, não haveria o que fazer no âmbito de cada país contra tais ataques, tudo em nome da “paz perpétua” europeia. Só quem perdeu toda a luta de classes de vista pode se espantar que as massas trabalhadoras rechacem a União Europeia!
O papel central do Partido Comunista Grego nessa articulação (cuja sede se encontra em Atenas, inclusive) não é um caso isolado: em 1998 o KKE se colocou a tarefa de impulsionar os anuais Encontros Internacionais de Partidos Comunistas e Operários, que em 2016 realizaram sua 18ª edição. Tais encontros não apenas foram bem-sucedidos a ponto de serem organizados até hoje como produziram, em dezembro de 2009, a primeira edição da Revista Comunista Internacional [1], anualmente publicada em inglês, espanhol e português.
Além disso, uma vez que o KKE é o único partido da INICIATIVA com representação no Parlamento Europeu, cabe a seus quadros a tarefa de fazer deste órgão burguês supranacional uma tribuna para a propaganda das posições revolucionárias. Nesse espírito, a delegação do partido no Parlamento Europeu organizou, no fim de 2016, o seminário internacional “Um século após a publicação da obra de V. I. Lenin ‘Sobre a palavra de ordem dos Estados Unidos da Europa’”. O tema (que já havia merecido uma edição própria na Revista Comunista Internacional) reuniu 20 partidos que aprofundaram, na ocasião, os debates sobre as uniões e acordos capitalistas interestatais. Destes, 10 enviaram contribuições escritas ao debate.
Uma 11ª contribuição foi enviada pelo Partido Comunista do México, traçando interessantes paralelos entre sua realidade continental e a questão:
“Existem processos de integração que geram grande confusão, e ainda são elevados a palavra de ordem por forças populares de diversos matizes, incluindo alguns partidos comunistas. Este é o caso, por exemplo, dos processos que se desenvolvem na América Latina, e não estamos nos referindo rigorosamente àqueles que, como o NAFTA, o CAFTA, ou outros abertamente impulsionados para beneficiar os monopólios, mas para aqueles que são criados em nome do povo e em oposição ao centro imperialista norteamericano. Em torno destes as falsas bandeiras são levantadas, levando a erros e mal-entendidos. Em nome da multipolaridade e contra a unipolaridade se forjam acordos interestatais, como o MERCOSUL, a CELAC; em nome do bolivarianismo e um suposto anti-imperialismo que não se volta contra o capitalismo monopolista, mas contra o domínio exclusivo dos EUA, deixando a salvo outros centros imperialistas, que são fortalecidos, se levantam uniões estatais, como a ALBA, em alternativa que, contudo, analisada objetivamente, tem uma base capitalista e que beneficia os monopólios das nações envolvidas.
É aí que a a tese de Lenin torna-se um norte para não sucumbir ante novos populismos, ante gestões capitalistas com roupagens novas e ante os argumentos reciclados do oportunismo.
Qual é o caráter de classe dessas unidades estatais, qual é objetivamente sua base econômica? Trata-se predominantemente de economias capitalistas com o propósito declarado de reforçar monopólios nacionais/regionais em antagonismo com os monopólios de origem norte-americana. Poderia, assim, a unidade da América Latina ser uma alternativa ao imperialismo, ou se trata de uma aliança interestatal capitalista? Com base em Lênin a resposta é inequívoca.”
Coube a Dimitris Koutsoumpas, Secretário Geral do CC do KKE, a intervenção mais esclarecedora do seminário:
“Após a eclosão da crise internacional, em 2008-2009, ficou claro que a UE e a Eurozona não são alianças econômico-políticas interestatais estáveis. Nos anos que se seguiram, a correlação de forças no núcleo principal da UE alterou-se a favor da Alemanha. O fosso cresceu à custa da França e da Itália.
Na última década, a taxa média anual de crescimento do PIB na Eurozona está quase estagnada, com a Alemanha na posição de liderança. A agudização da desigualdade na Eurozona refletiu-se na crescente disparidade entre os excedentes comerciais da Alemanha e da Holanda e os déficits da maioria dos Estados-membros.
A nível político, a exacerbação da concorrência dentro da UE expressou-se no resultado do referendo britânico e no aumento do euroceticismo burguês em França, Itália e noutros Estados-membros da UE, isto é, no reforço das forças centrífugas. As próximas eleições presidenciais em França e as eleições noutros países – na própria Alemanha –, podem manifestar uma nova agudização da situação na UE.
O resultado do Brexit reflete, em certa medida, a posição negativa mais geral da classe burguesa britânica sobre a trajetória de aprofundamento da UEM e da UE, a sua convergência estável com os EUA na sua competição com a Alemanha, a existência de seções do capital britânico e norte-americano que desejavam a saída da Grã-Bretanha da UE e o aprisionamento do descontentamento popular na corrente do euroceticismo burguês.
Neste terreno, os dilemas para a linha política burguesa na Alemanha e no resto dos Estados-membros da UE estão a tornar-se mais complicados. Os governos da França e da Itália exigem o relaxamento da política fiscal para poderem reforçar os seus grupos monopolistas e a via do aprofundamento da unificação da Eurozona, de modo a que a Alemanha assuma, na prática, o papel de garante dos Estados endividados e dos problemáticos grandes bancos da UE.
Os Estados-membros que mantêm relações estreitas com os EUA, como o grupo de Visegrad (Polônia, Hungria, República Checa, Eslováquia), assim como a Suécia e a Dinamarca, procuram manter o caráter intergovernamental e o reforço da independência das políticas nacionais em várias questões (por exemplo, imigração-refugiados).
A linha dominante da classe burguesa alemã opera entre a manutenção do caráter intergovernamental das decisões da UE e a imposição, na prática, de uma UE a várias velocidades, com um núcleo mais reduzido e mais coeso de moeda comum. […]
A proposta do KKE é dirigida ao povo e não tem nada a ver com a mudança da moeda ou a ligação do dracma ao dólar, à libra esterlina, ao iene ou a qualquer outra moeda. Não escolhemos entre Scylla e Charybdis.
Um partido burguês pode adotar a posição de saída da Eurozona, se avaliar que setores básicos da classe burguesa podem ser beneficiados por uma moeda nacional e que a recuperação podia ser facilitada por uma desvalorização. Tais tendências foram expressas no referendo britânico e por partidos criados na Alemanha, assim como pelas posições anti-UE do partido de Le Pen e de outros partidos populistas de extrema-direita na Europa. A corrente política do protecionismo está a ser reforçada, na UE como um todo e, agora, nos EUA com a eleição de Trump, como uma arma contra o dinamismo da economia chinesa e contra o dinamismo da economia alemã na Europa.
Isso coexiste, em simultâneo, com a corrente do cosmopolitismo burguês, decorado com retórica de esquerda. A elevação do “problema grego”, pelas forças burguesas e oportunistas na Grécia, a um “problema pan-europeu” é acompanhada pela posição de que não pode haver mudança a nível nacional a favor do povo, para além da alternância de alguns governos e figuras, sem afetar as relações de propriedade sobre os meios de produção, o cerne das relações econômico-políticas. Querem impedir o povo de lutar por outra sociedade, a sociedade socialista. Propalam, de forma enganosa, que, ou as coisas mudarão, simultaneamente ou globalmente, na Europa, ou não mudarão em nenhuma parte. A verdade é que as mudanças começam em cada país e os seus resultados, em seguida, têm impacto a nível regional, continental e global.
O Estado-nação burguês continua a ser o órgão básico que assegura o domínio econômico do capital, os monopólios, a concentração e a centralização do capital em concorrência com os processos correspondentes noutros estados; continua a ser uma arena importante para a implacável luta de classes entre o trabalho e o capital e, por isso, a arena básica para o desenvolvimento da luta de classes. Isto não nega, de modo algum, a necessidade de uma luta de classes coordenada a nível regional, europeu e mundial.
Camaradas,
Finalmente, gostaria de salientar mais uma vez que as contradições interimperialistas, que, no passado, levaram a dezenas de guerras locais, regionais e a duas Guerras Mundiais, continuam a conduzir a duros conflitos econômicos, políticos e militares, independentemente de mudanças na estrutura e no quadro dos objetivos das uniões imperialistas, velhas e novas.
Em qualquer caso, “a guerra é a continuação da política por outros meios”, especialmente nas condições de uma profunda crise de superacumulação do capital e de importantes mudanças na correlação de forças no sistema imperialista internacional, em que a (re)divisão dos mercados raramente ocorre sem derramamento de sangue.
Deste ponto de vista, os nossos partidos devem estar num estado de prontidão. O povo e a juventude não devem derramar o seu sangue pelos interesses dos capitalistas.
Hoje, quando os perigos de uma guerra e de conflitos imperialistas mais generalizados estão a aumentar na nossa mais vasta região, dos Balcãs ao Médio Oriente, o KKE apela à luta do povo para que não haja alterações nas fronteiras e para defender os direitos soberanos do país, na perspectiva dos interesses da classe operária e dos estratos populares, algo que não pode ser desligado da luta pelo derrubamento do poder do capital e que não tem nada a ver com a defesa dos planos do um ou de outro polo imperialista, nem com a rentabilidade de um ou de outro grupo monopolista.
Por isso, a cooperação e a luta conjunta dos nossos povos, a estreita cooperação dos nossos partidos, a planificação de uma estratégia revolucionária unificada na Europa e em todo o mundo devem ser reforçadas, para o derrubamento final da barbárie capitalista, pela paz e a prosperidade popular, o socialismo-comunismo.”
Em janeiro de 2017, na 10ª edição do Encontro Comunista Europeu, um camarada do KKE afirmou que “é nosso dever como movimento comunista acompanhar todos esses desenvolvimentos de perto para compartilhar visões, informações, para determinar instâncias e atividades unitárias relacionadas a toda a situação internacional e os desdobramentos que ameacem nossos povos”. Do mesmo modo, é dever dos comunistas acompanhar as atividades das organizações revolucionárias em todo o mundo, de modo a melhor aprender com suas experiências e determinar as tendências internacional das lutas de classes.
A classe trabalhadora europeia, na luta por sua emancipação, tem colossais desafios à sua frente. A INICIATIVA não passa, nesse sentido, de um pequeno passo organizativo em frente. Mas, decerto, não será contemporizando com o poder burguês que essa luta avançará. Só sobre a sólida base teórica do socialismo científico e com a mais alinhada luta das forças proletárias revolucionárias será possível construir uma Europa a serviço das parcelas exploradas e oprimidas da sociedade. Nesse sentido, a crescente organicidade da INICIATIVA só pode ser vista com bons olhos.
[1] Cabe frisar a existência de outro instrumento, menos propagandístico e teórico e mais propriamente informativo, do movimento comunista internacional: a Imprensa Comunista Internacional, mantida pelo Bureau de Relações Internacionais do Partido Comunista Turco (TKP).
8 comentários em “Iniciativa Comunista Europeia: sem hesitar entre a UE e o nacionalismo”
Texto muito bom e, proveitoso. Importante ressaltar no entanto, o papel pífio desempenhado por essa mesma INICIATIVA, no tocante aos acontecimentos recentes e arbitrários em paises que apesar do “além Europa” contribuíram e muito com a permanência “da chama”. Vide Golpe, Brasil! F o d a! Se nao representava á fio os mandamentos do grupo, no mínimo alinhava-se no combate ao opressor sistema q agride e sufoca milhões de pessoas.
Só sei de uma coisa, o cartaz dessa iniciativa me parece uma versão comunista do panfleto entregue pelos testemunhas de Jeová.