Fanon, um dramaturgo revolucionário

Por Wesley Almeida

Lucien. – Ele disse que as flores não precisam de nada, nem mesmo da árvore que as sustentam.

Que elas reproduzem incansavelmente uma flor única que chora gotas de flores; as pessoas, por outro lado, precisam de flores para acreditar que a vida é feita para elas.

FANON, O Olho Se Afoga, cena 3, p.101

Esse trecho, que faz parte do diálogo de uma peça de teatro de Frantz Fanon, é um daqueles excertos que nos comovem de tal forma que levamos um tempo para digerir, sob o efeito estonteante de sua forma e seu conteúdo. Assim foi comigo quando tive o primeiro contato.

A obra em questão chama-se O Olho Se Afoga, uma peça teatral escrita por Fanon em 1949. Parte do sentimento que me acometeu se deve ao fato do total desconhecimento que possuía acerca dessa faceta de Fanon à época que li. O autor que em Pele Negra elevava as palavras à potência de uma baioneta, que em seus Escritos Psiquiátricos analisou rigorosamente o sofrimento psíquico, ou que em Os Condenados da Terra nos imerge de tal forma na revolução que sentimos nossas pulsadas crescerem junto com os argumentos; aqui, sem qualquer menção aos temas das outras obras, por meio das palavras, sensualiza e comove aquele que lê. Ainda sim, por outro lado, o contato com essa obra pode nos oferecer compreensões muito interessantes acerca do desenvolvimento intelectual fanoniano e apesar de num primeiro momento saltar aos olhos sua versatilidade literária, quando compreendida devidamente, figura-se quase como óbvio que esses escritos tenham feito parte da produção de Fanon.

Para situá-la em sua trajetória é importante termos em vista que ela surge dois anos antes daquela que seria sua primeira obra publicada efetivamente, Pele Negra, Máscaras Brancas, portanto antes de completar sua formação em psiquiatria, nos primórdios de seu desenvolvimento intelectual. Outro fato importante de levarmos em consideração é que Fanon deixa sua terra natal, Martinica – um território ultramarino da França -, em 1943, para se juntar as tropas francesas na luta contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial, ficando desde então na França, onde realizou seus estudos e portanto, teve acesso as produções culturais daquele contexto. É nesse período que na França surgem, por exemplo, as peças de Aimé Césaire e Jean-Paul Sartre, autores fundamentais em seus estudos.

Sabemos que Fanon pode ser lido por meio de várias chaves diferentes, não à toa tem sido chamado de o autor das encruzilhadas (FAUSTINO, 2022). Dentre elas, o existencialismo, a dialética hegeliana e marxista, a fenomenologia, o estruturalismo, a psiquiatria, a psicanálise, dentre outras. Destaco isso porque já nessa obra podemos ver lastros de algumas dessas influências. Por isso, essa obra, definitivamente, é o gérmen daquilo que vai se desenvolver em todas as demais.

O Olho Se Afoga tem como personagens principais, François e Lucien, que são irmãos, e Ginette. De um modo geral, o drama gira em torno de um triângulo amoroso em que Ginette é apaixonada por François mas que Lucien luta por roubá-la de seu irmão. Como dito, a trama, no que se refere a seu conteúdo mais direto, não trata sobre nenhum dos temas os quais estamos habituados a remeter Fanon, porém a construção de sua forma, revela seus prelúdios. Uma característica geral que podemos facilmente notar a presença ao longo de suas obras, é a eleição de elementos opostos que figuram em constante tensão: negro/branco, colonizado/colonizador, dia/noite, morte/vida, etc. Aqui essa tensão é representada por François e Lucien, que para além do fato de estarem disputando, num certo sentido, o amor de Ginette, carregam consigo arcabouços simbólicos distintos; é interessante notar como Ginette sendo “o terceiro excluído”, até dado momento, se desenvolve e se posiciona frente a essa luta. Já em Pele Negra, num contexto de desenvolvimento argumentativo relativamente diferente, já podemos observar, por exemplo, como Fanon evoca frequentemente a oposição entre a escuridão da noite e o dia: “O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; e, do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca.” (p.160). Essa mesma noção será central aqui. Durante algumas cenas da peça, o diálogo girará em torno de Lucien e Ginette; aquele, valendo-se de François não estar em cena, aproveitará para lutar pelo reconhecimento por parte dela, em detrimento de François. Essa disputa é simbolizada pela tensão entre o dia e a noite. O dia, através do qual Lucien se representa, descortina o véu misterioso das coisas

Lucien. – É meio dia e o Sol explode ao redor do mundo.

É meio dia e as coisas perderam seu mistério”

FANON, 2020, p.109

enquanto que para François:

François. – A Noite era minha glória. Eu subia nos telhados e falava com as estrelas. Só elas me entediam.”

Ibid., p.82

No mesmo sentido, se insere a oposição entre a vida e a morte;

Lucien. – (…) um homem sempre terá que escolher entre a vida e a morte.

Dizem que o homem é grande porque ele aceita morrer. Mas morrer não é nada. A grandeza do homem está talvez em sua aceitação da vida.

(…)

Um homem não é nada além de uma promessa entre a vida e a morte.

Mas mesmo que ele não seja nada além, ele deve insistir.

Deve viver por nada, porque ele está aqui;

Deve agarrar a vida com unhas e dentes, de frente, como um gladiador.

Ibid., p.103-104

Então, por um lado, temos a representação de François que vê o dia como assassino e o mistério da noite como a possiblidade de acessar o absoluto, guiado por uma abordagem cósmica e íntima da morte, e por outro, Lucien, rejeitando e menosprezando toda e qualquer possibilidade cósmica do absoluto, se atém à transparência e à probidade do dia sob a égide de uma defesa obstinada da vida.

Não é coincidência se outra vez tivermos a impressão dessas palavras ecoarem em Pele Negra: “Aquele que hesita em me reconhecer se opõe a mim. Em uma luta feroz, aceito sentir o estremecimento da morte, a dissolução irreversível, mas também a possibilidade da impossibilidade.”1 (FANON, 2008, p.182). Mais sugestivo ainda é a nota de rodapé que Fanon adiciona logo ao fim desse trecho: “Quando começamos este trabalho queríamos dedicar um estudo ao ser do preto para-a-morte” (ibid.). Por meio dessas passagens poderíamos supor que então Fanon estaria se representando através de François. E é exatamente isso que sugerem Peter Geismar e Joby Fanon, irmão de Frantz, que dedicaram-se a escrever biografias sobre sua vida. Em uma carta de François Maspero, escritor e tradutor francês que teve contato com a peça – e que apesar do nome, nada tem a vê com a personagem da obra -, define O Olho Se Afoga como “É uma espécie de trabalho de exorcismo pessoal que muitas vezes atinge uma extraordinária beleza formal, mas [ela] não é desprovida de hermetismo” (Maspero apud Young, 2020, p. 29)2. Além do fato de Joby Fanon mencionar que havia ecos da relação de Lucien e François em sua relação com Frantz. Mais do que uma projeção pessoal de Fanon no enredo, esses elementos se convertem futuramente como pressupostos de seu método:“Desta vez este hegeliano-nato3 esqueceu de que a consciência tem necessidade de se perder na noite do absoluto, única condição para chegar à consciência de si.” (FANON, 2008, p.121). Assim como Fanon, François queria “conduzir às portas ABSOLUTAS, onde a vida se apodera.” (FANON, 2020, p.125).

Essa incessante busca pelo absoluto é o que faz François ficar de cabeça baixa como quem sustenta o peso da existência, ao final da primeira cena. O diálogo se inicia em uma sala, que no canto possui uma pintura de Wifredo Lam, com François, Ginette e um gato preto cego. François está em acalorada discussão com Ginette, em que incessantemente a questiona e a põe a prova acerca de seu amor por ele. Em outras palavras, a cena se desenvolve sob a forma da dialética do senhor e do servo hegeliana, que será mais diretamente formulada em Pele Negra. A insistência de François quanto à legitimidade do amor de Ginette a si, revela na verdade uma luta por reconhecimento. Em linhas gerais, a realização da alteridade prescinde o reconhecimento: A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só o é como algo reconhecido” (HEGEL, 1988, p. 126). Apesar de Ginette reafirmar seguidas vezes e de modos diferentes o seu amor por ele, para François não basta, pois o modo como ela o ama não corresponde nem implica em seu reconhecimento recíproco, o que fica evidente quando diz: Isso não é suficiente para mim! Eu não quero ser amado à sua maneira” (FANON, 2020, p.81).

É nessa cena que é introduzido o drama psicológico o qual François está submetido

Minuto a minuto, sempre ansioso, cansado, lutei contra aqueles que queriam que eu acreditasse no ódio, no sangue, nas lágrimas.

Eu preferi ficar com os cães que com os meninos da minha idade [e seus] jogos.

Sabe você o que é ter que lutar contra as pessoas?

Me propuseram ser um tipo de um homem. Mas, este homem me assustava…

Ibid..

Nessa inadequação entre o homem apresentado como universal e o ímpeto à recusa preferindo ficar com os cães e falar com as estrelas, pode nos apontar também ao desenvolvimento de sua noção de humanismo, fundamental em sua obra, e que como podemos ver, o acompanha desde cedo. Por um lado, o humanismo [falsamente] universal, filho da revolução francesa, inscreve a subjetividade que está interditada devido a luta pela alteridade. Ao final da quinta cena, após a descida ao verdadeiro inferno4, François realiza seu reconhecimento recíproco com Ginette, conduzindo-a às portas absolutas onde o humanismo e alteridade realizam-se.

O Olho se afoga, título da dramaturgia, por si só já revela uma profundidade lírica que pode possibilitar várias interpretações. Robert J. C. Young deixa inclusive aberta a possibilidade de Fanon ter se inspirado em A História do Olho de Georges Bataille, tendo em vista que apesar de constar em sua biblioteca pessoal, não é possível constatar que Fanon o tenha lido. Mas de todo modo, sugere ainda que o “título da peça representa o olho clarividente de Nietzsche, capaz de perfurar a espessura superficial da aparência e ver o ‘espetáculo primordial’” (ibid. p.45). De todo modo, o olho é mobilizado de forma estratégica no andar da narrativa. Se é necessário perder-se na noite do absoluto para se alcançar a consciência de si, para François, o olho então “deve ser digno do espetáculo” (ibid. p.99), por isso, preferia ser cego. Outro elemento que contribui nessa estratégia narrativa, é o protagonismo que as luzes possuem, figurando quase que como personagens da obra, induz o espectador aos momentos de despidez do dia e a encruzilhada psicológica evocada pela noite, de acordo com a mobilização das personagens.

Longe da pretensão de explicar uma obra dessa envergadura ou de esgotar os temas nela tratados, esse texto é um convite para o vislumbre da riqueza e complexidade literária de Fanon. Ainda que não tratando de seus temas clássicos, por meio dela recebemos pistas importantes do desenvolvimento de seu pensamento. Até a própria compreensão do tornar-se negro, pode já aqui ser evocada levando em consideração o jogo das luzes e o modo como as personagens são descritas por Fanon. Para uma análise mais cuidadosa acerca das implicações desse texto, são indispensáveis a leitura de Deivison Faustino com Nicolau Gayão, Estranhas Harmonias: A vida, a morte e o tempo na linguagem dramatúrgica de Frantz Fanon e ainda a introdução à edição publicada pela editora Segundo Selo, por Robert J. C. Young, já supracitada, que inclusive conta com a publicação de sua outra extraordinária peça, Mãos Paralelas; além de obvia e imprescindivelmente, o próprio texto. Com seu modo de escrita, que por si só carrega subterfúgios propositais como estratégia de uma guerrilha no âmbito da escrita, em O Olho se Afoga é “como se as palavras estivessem diante dos olhos” (ibid., p.98). No cerne de explícitas influencias do existencialismo, Hamlet, Aimé Cesairé, e tantas outras aproximações, forjou-se Fanon; dentre outros vários predicados, um dramaturgo revolucionário.


FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FANON, Frantz. O olho se afoga/Mãos paralelas – teatro filosófico. Salvador: Editora Segundo Selo, 2020.

HEGEL. Fenomenologia do espírito. São Paulo: Abril cultural, 1985.

FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: Teoria, política e subjetividade, um guia para compreender Fanon. Ubu Editora, 2022.


1 Nessa passagem também é possível notar a questão da luta por reconhecimento, que será tratada aqui mais adiante.

2 Trata-se da introdução ao teatro filosófico que fora escrita por Robert J. C. Young.

3 Fanon está se referindo a Sartre no contexto de Pele Negra, Máscaras Brancas.

4 “A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos”. (FANON, 2008, p.26)

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