Segunda Servidão na Europa Oriental

Por Guilherme Giotti Sichelero

Enquanto que, durante os séculos XV e XVIII, a Europa Ocidental vivenciou um processo de transição do feudalismo para o capitalismo, em que a servidão enfraqueceu e as relações capitalistas avançavam, na Europa do Centro e do Leste ocorreu o processo inverso, que ficou conhecido como segunda servidão, isto é, o surgimento de um novo tipo de servidão, articulado e submisso ao mercado externo.


A nova servidão era tudo, menos um alívio!”

Friedrich Engels1

A crise do século XIV teve consequências distintas nos dois lados da Europa. Enquanto que no Oeste, ocorreu afrouxamento das relações servis, a progressiva passagem da renda-espécie para a renda-dinheiro e o desenvolvimento da economia mercantil urbana, no Leste, o que ocorreu foi exatamente o processo oposto, isto é, o recrudescimento da servidão e a solidificação de uma economia agrária, subsidiária e voltada ao mercado externo. Esse fenômeno, que atingiu boa parte da Europa Central e Oriental, ficou conhecido, a partir de considerações de Friedrich Engels, como segunda servidão, segunda edição da servidão ou, ainda, segundo feudalismo.

Os autores dividem-se em relação a existência do feudalismo antes da segunda servidão2, contudo todos são unânimes ao afirmar que, mais ou menos a partir de meados do século XV e início do século XVI, houve, à Leste do Rio Elba — sobretudo na Prússia Oriental, Polônia, Hungria, Boêmia, Silésia, Morávia, Lituânia, Letônia, Estônia e Rússia –, o desenvolvimento de um tipo particular de servidão. Estabeleceu-se o regime do latifúndio senhorial baseado na exploração dos camponeses sobretudo a partir do predomínio da corveia, ou seja, da renda-trabalho na terra senhorial, que poderiam chegar até seis dias por semana3. Ao contrário do feudalismo ocidental, a reserva senhorial representava a maior parte do latifúndio, cabendo as reservas camponesas um pequeno pedaço, utilizado apenas para a sua própria subsistência, ou seja, eram no lote dos senhores feudais que ocorria a maior parte do trabalho — o que acarretava num maior controle da produção por parte da classe senhorial e num enfraquecimento econômico do campesinato4. Nessas grandes propriedades produziam-se sobretudo cereais, matérias-primas e alimentos que eram voltados ao mercado externo, principalmente a Europa Ocidental (no século XVI, a Holanda importava praticamente todo os seus cereais do Leste, enquanto na Inglaterra e Dinamarca metade de suas reservas vinham dessa região5).

Esse tipo de produção estava intrinsecamente articulado com o capital mercantil ocidental, na medida que os mercadores (que eram, na verdade, mercadores-financistas) do Oeste não somente compravam as commodities, como também controlavam a produção. Os mercadores eram responsáveis por adiantar os pagamentos ao magnata feudal, ecoar a produção e trazer, do Ocidente, produtos de luxo e manufaturados que eram consumidos pela classe senhorial. Nesse sentido, colocavam-se como um intermediário entre a demanda por cereais, matérias-primas e alimentos do Ocidente e a oferta agrária do latifúndio senhorial do Oriente. Assim como os camponeses estavam presos aos senhores, estes, por sua vez, estavam presos aos mercadores e financistas ocidentais6, na medida que lhe adiantavam pagamentos das colheitas futuras, cabendo o ônus de qualquer crise ao próprio senhor feudal, e lhe proporcionavam os produtos de luxo do Oeste, sendo assim os magnatas deveriam se “adequar às exigências do mercador se quiserem renovar os seus adiantamentos e continuarem no negócio”7.

A classe senhorial nada tinha de capitalista: nem no pensamento, muito menos na ação econômica. Ao contrário, era uma classe pré-capitalista por excelência. Era submissa e, ao mesmo tempo, uma ferramenta do capital mercantil; exportadora de commodities e consumidora voraz das manufaturas do Ocidente. Segundo Braudel,

Parece-me, todavia, que a segunda servidão é o reverso de um capitalismo mercantil que encontra suas vantagens na situação do Leste e até, numa parte si, a sua razão de ser. O grande proprietário não é um capitalista, mas é um instrumento e um colaborador a serviço do capitalismo de Amsterdam ou de outro lugar. Faz parte do sistema.8

Os camponeses, por sua vez, foram aqueles que sofreram a maior parte do ônus de todo esse processo. A segunda servidão foi, em muitos sentidos, muito mais rígida do que a servidão na Europa Ocidental. Mesmo nos piores momentos do feudalismo no Oeste, havia uma série de costumes e direitos que o servo tinha em relação ao seu senhor, sobretudo se pagasse a renda feudal adequadamente9. No Oriente, era bem diferente. O magnata poderia transferir o lote do servo quando bem entendesse; retirar a terra dos camponeses, tornando-o um servo doméstico; trocar o pagamento de tributos pela corveia e vice-versa; e, além disso, vendê-lo a outro senhor10. Nesse sentido, a situação do campesinato na Europa Oriental estava numa posição intermediária entre a escravidão e a servidão.

A segunda servidão apresentou, nesse sentido, um caráter dual e contraditório: aglutinava a forma mais primitiva de feudalismo, isto é, a predominância da exploração via renda-trabalho, com o caráter mercantil de um empreendimento capitalista voltado ao mercado11. Nas economias de segunda servidão, as cidades eram frágeis, os mercados locais desarticulados e as zonas produtivas isoladas entre si, por conseguinte, a classe mercantil e as demais classes urbanas eram raquíticas. A verdadeira essência desse tipo de economia era a produção voltada ao mercado externo. Nesse sentido, a segunda servidão, assim como a escravidão nas Américas, foi, num contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, um tipo de economia subsidiária do emergente capitalismo mercantil europeu, que reforçou a acumulação primitiva de capitais no Ocidente, na medida que intensificou a desacumulação de capitais nessas regiões12. Como afirmou Oliveira,

Essas economias nacionais passam, portanto, a manter uma inserção subordinada no mercado mundial, não porque exportem produtos primários, mas porque os lucros propiciados pela mercantilização são, em grande parte, apropriados pelo capital comercial estrangeiro que domina o comércio exterior. Esse tipo de articulação com o mercado mundial evidentemente retarda o processo de acumulação primitiva do capital nacional, num movimento que é reforçado pelo fato de que o excedente que permanece no país é apropriado como renda pela aristocracia rural exportadora, renda destinada ao consumo suntuário de bens importados e não à acumulação.13

Por fim, quero discutir um pouco a respeito da terminologia “segunda servidão”. Como dito anteriormente, Engels teria cunhado o termo numa série de cartas enviadas para Marx em dezembro de 188214. Nessas cartas, Engels defendeu que a existência de uma segunda servidão, a partir de meados do século XV, à leste do Elba, era incontestável15. Após isso, analisou a história agrária da Alemanha em seu trabalho denominado A Marca, publicado em 1892, mas não voltou a utilizar o termo. De modo geral, a maioria dos historiadores criticam essa terminologia, visto que o termo segunda servidão pressupõe o retorno de uma primeira servidão, que seria a servidão medieval, porém, como vimos, são fenômenos históricos distintos em regiões diferentes, além disso há historiadores que defendem que o feudalismo não existiu no Centro e Leste europeu antes do século XV, nesse sentido como poderia haver uma segunda servidão se nem houve uma primeira?

Desse modo, muitos autores acreditam que esse termo é um tanto quanto impreciso. Contudo, Engels nunca o conceituou ou mesmo utilizou em algum trabalho mais rebuscado, apenas tendo usado esse termo numa carta informal enviada para Marx. Perry Anderson16, por sua vez, sugeriu que se utilizasse o termo no sentido de duas ondas distintas: a primeira servidão (séculos IX ao XIV), na Europa Ocidental, e a segunda servidão (séculos XV ao XVIII), na Europa Oriental. Outros autores, como o historiador soviético Sergey Skazkine17, utilizou-se de outro termo, no caso o de sistema dominial com base na corveia (embora não rejeitasse o termo de Engels). O próprio Immanuel Wallerstein com o seu conceito de trabalho compulsório em cultivos comerciais (coerced cashcrop labor)18 tentou, de certa maneira, qualificar todos esses regimes econômicos-sociais semelhantes num mesmo termo e conceito mais preciso. De qualquer modo, a segunda servidão é um termo já consagrado na historiografia e dificilmente se tornaria obsoleto, mas é sempre necessário fazer essa ressalva.


Guilherme Giotti Sichelero é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Notas:

1 Carta de Engels a Marx em 16 de dezembro de 1882.
2 Ver: SKAZKINE, S. Problemas fundamentais da “segunda servidão” na Europa Central e Oriental. Crítica Marxista, n.36, p.63–92, 2013 [1958].; ANDERSON, P. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Brasiliense: São Paulo 1991 [1974].; MARIUTTI, Eduardo Barros. Capital Comercial Autônomo: dinâmica e padrões de reprodução. Texto para Discussão (Campinas), v. 214, p. 1–23, 2012.; MARIUTTI, Eduardo Barros. O capital comercial e a formação da economia-mundo capitalista: dinâmica e padrões de reprodução social. Revista Brasileira de Desenvolvimento Regional, Blumenau, v. 8, n. 1, p. 5–26, jun. 2020.; OLIVEIRA, C. A. B. Processo de industrialização do capitalismo originário ao atrasado. São Paulo: Editora UNESP, 2003.; REZENDE, C. História econômica geral. São Paulo: Contexto, 2010.; WALLERSTEIN, I. M. El moderno sistema mundial. México: siglo XXI, 2011 [1979]. Vol. 1: La agricultura capitalista y los orígenes del la economía-mundo europeia en el siglo XVI.; BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009 [1967]. Vol. 2: Os jogos das trocas.
3 “Em suma, mitigada, organizada desta ou daquela maneira, a regra dos seis dias de corvéia por semana tende a estabelecer-se quase sem exceção” In: BRAUDEL, 2009, p. 232.
4 SKAZKINE, 2013, p. 65–67.
5 REZENDE FILHO, 2010, p. 112–114.
6 “Ao vedar o acesso dos camponeses ao mercado, os grandes senhores feudais puderam se associar — de forma subordinada — aos mercadores dos grandes centros financeiros (Amsterdã, Gdansk etc.) e, por seu intermédio, exportar cereais, vinho, madeira e outros produtos para a porção ocidental do continente. […] Mas o aspecto decisivo é que a conexão não é direta: há um intermediário, que empresta dinheiro ao grande proprietário, desloca a sua produção para o Ocidente e, simultaneamente, lhe oferta os produtos de luxo. Sem os adiantamentos provenientes dos grandes financistas, o nobre não pode continuar desempenhando o seu papel econômico e, também, teria de abrir mão de sua vida suntuosa. Está, portanto, preso ao capital comercial” In: MARIUTTI, 2020, p. 14.
7 MARIUTTI, 2020, p. 14.
8 BRAUDEL, 2009, p. 235.
9 “Nos países de regime senhorial [Europa Ocidental], o senhor feudal não tinha o direito de transferir um camponês de um lote de terra para outro, de modificar as condições de arrendamento, nem mesmo de expulsar o camponês de sua terra se este pagava escrupulosamente a renda feudal. Se o senhor queria reunir a terra do arrendatário a seu próprio domínio, devia comprá-la” In: SKAZKINE, 2013, p. 68.
10 BRAUDEL, 2009, p. 231–236; SKAZKINE, 2013, p. 68–69.
11 “[…] enquanto a servidão feudal é incompatível com o capital, e o avanço do modo de produção para fins de lucro significa a crescente corrosão desse tipo arcaico de regime de trabalho, a servidão moderna mantém com o capital uma relação de tipo paradoxal, porque é ao mesmo tempo compatível e incompatível com o modo de produção calcado na busca incessante do lucro” In: CASTRO, R. C. P. Alencar e Kleist. Til e Toni: Crise(s) da identidade na servidão e na escravidão modernas. Doutorado, USP, 2012. p. 19–20.
12 “Embora não houvesse qualquer relação de dependência política, das áreas da Europa Oriental com relação à Ocidental, como no caso americano, a dependência econômica da primeira para a segunda foi patente, fosse com relação à comercialização externa da maior parte de sua produção, fosse com relação ao transporte dessa produção por mercadores estrangeiros, hanseáticos, holandeses e ingleses. E essa dependência econômica da Europa Oriental transformou-a em uma região periférica da economia-mundo, no verdadeiro celeiro da Europa Ocidental, e importante fator da acumulação primitiva de capitais” In: REZENDE FILHO, 2010, p. 113–114.
13 OLIVEIRA, 2003, p. 113–114.
14 Ver: Letters of Marx and Engels: 1882. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1882/letters/index.htm. (15, 16 e 22 December).
15 “Considero que a visão aqui exposta a respeito das condições do campesinato na Idade Média e do surgimento de uma segunda servidão após meados do século XV é, em geral, incontestável” In: ENGELS, 1982, s/p. Ver: Engels to Marx In Ventnor. 15 de Dezembro de 1882. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1882/letters/82_12_15.htm.
16 ANDERSON, 1991, p. 253.
17 SKAZKINE, 2013, p. 63.
18 “O trabalho compulsório em cultivos comerciais é um sistema de controle do trabalho agrícola no qual os camponeses são requeridos, por meio de algum processo legal respaldado pelo estado, para trabalhar, ao menos parte do tempo, em um domínio de grandes dimensões que produz algum produto para a venda no mercado mundial ” In: WALLERSTEIN, 2011, p. 127.

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