Nosso mal vem de mais longe

Por Alain Badiou, via La-bas, traduzido por CEII – Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia

Eu gostaria de falar esta noite sobre o que aconteceu na Sexta-feira, 13 de novembro, isto que nos aconteceu, o que aconteceu nesta cidade, neste país, neste mundo, finalmente.


Eu gostaria em primeiro lugar dizer em qual estado de espírito eu penso que é preciso falar disso que é uma tragédia terrível; porque, obviamente, como sabemos, e como é perigosamente martelado pela imprensa e pelas autoridades, a função do afeto, da reação sensível, nesse tipo de situação, inevitável, e num certo sentido indispensável. Há algo como um traumatismo, como um sentimento de exceção intolerável ao sistema da vida ordinária, de uma irrupção insuportável da morte. Isso é algo que se impõe a todos e que nós não podemos conter, nem criticar.

Entretanto, é preciso de toda forma saber – é um ponto de partida para a consideração do que eu chamo o estado de espírito – que este inevitável afeto, nesse tipo de circunstâncias trágicas, expõe a diversos riscos, riscos que eu gostaria ainda assim de lembrar, para indicar qual será o meu método.

RESUMO

Introdução: Os três riscos do afeto

  1. Estrutura do mundo contemporâneo
  2. Efeitos nas populações
  3. Subjetividades reativas
  4. O fascismo contemporâneo
  5. Quem são os assassinos?
  6. A reação do Estado: “França” e “guerra”
  7. As condições para o retorno de uma política de emancipação, esquema separado do mundo contemporâneo.

Introdução: Os três riscos do afeto

Eu vejo três principais riscos aos quais nos expõe, após esta tragédia, a dominação sem partilha do trauma e do afeto.

O primeiro é o de permitir que o Estado tome medidas inúteis e inaceitáveis, medidas que, na realidade, trabalham para seu próprio benefício. O estado é subitamente colocado na frente do palco e encontra momentaneamente, ou ele acredita encontrar, uma função de representação simbólica, de garantir a unidade da nação, e outras posturas semelhantes. Isto nos permite, vou voltar a isso, perceber no líder pessoal um bastante sinistro, mas evidente gozo desta situação criminal. Nestas condições, é preciso ainda manter uma medida. Devemos permanecer capazes de medir naquilo que é feito, no que é pronunciado, aquilo que é inevitável e necessário e o que é inútil ou inaceitável. Esta é a primeira medida de precaução que vejo, uma preocupação de medida tendo em vista o caráter, repito mais uma vez, inevitável e indispensável do afeto.

O segundo risco dessa dominação do sensível, vamos chamá-lo assim, é o de fortalecer os impulsos de identidade. É também este um mecanismo natural. É evidente que quando alguém morre acidentalmente em uma família, a família se reagrupa, se une, e em um certo sentido se fortalece. Estes dias nos é assegurado, nos é dito, e redito, a bandeira tricolor na mão, que um horrível massacre em território francês não pode senão reforçar o sentimento nacional. Como se o traumatismo se referisse automaticamente a uma identidade. De onde que as palavras “França” e “Francês’ são pronunciadas de toda a parte como um componente evidente da situação. Bem, devemos nos perguntar: a que título? O que exatamente é a França nesta situação? Do que estamos a falar quando falamos hoje da França e dos Franceses? Na realidade, estas são questões muito complexas. É preciso absolutamente não se perder de vista essa complexidade: as palavras Francês, França, não tem hoje qualquer significado particularmente trivial, particularmente óbvio. Além disso, eu acho que devemos fazer o esforço, justamente contra essa pulsão identitária, que encerra o evento terrível em uma espécie de faz-de-conta, de lembrar que esses assassinatos em massa e assustadores, aconteceram e acontecem todos os dias em outros lugares. Todos os dias, sim, na Nigéria e no Mali, mais recentemente, no Iraque, Paquistão, Síria … É importante lembrar também que a alguns dias mais de duas centenas de russos foram massacrados dentro de um avião sabotado, sem que a emoção, na França, tenha sido considerável. Talvez os supostos “franceses” identifiquem todos os russos ao vilão Putin!

Eu penso que é uma tarefa fundamental da justiça sempre expandir, tanto quanto ela possa, o espaço dos afetos públicos, de lutar contra a sua restrição identitária, de se lembrar e de saber que o espaço de infelicidade é um espaço que devemos observar, definitivamente, ao longo de toda a humanidade, e que nós não devemos nunca nos encerrar em declarações que restrinjam à identidade. Senão, é atestado através da própria infelicidade que o que conta são as identidades. Ora a ideia de que o que importa na infelicidade é somente a identidade das vítimas é uma percepção perigosa do próprio evento trágico ele mesmo, porque inevitavelmente essa ideia transforma a justiça em vingança.

Evidentemente, a tentação da vingança, neste tipo de crime em massa, é um impulso que parece natural. A prova é que em nosso país, que sempre se orgulha de seu Estado de Direito e que rejeita a pena de morte, a polícia, no tipo de circunstâncias que nós conhecemos, mata os assassinos assim que ela os encontra, sem, é o caso de dizer, sem outra forma de processo, e sem que ninguém, aparentemente, os formalize. É preciso contudo recordar que a vingança, longe de ser uma ação justa, abre sempre um ciclo de atrocidades. Nas grandes tragédias gregas, há muito tempo, nós opomos a lógica da justiça à lógica da vingança. A universalidade da justiça é o oposto das vinganças familiares, provinciais, nacionais e identitárias. Esta é a questão fundamental do Orestes de Ésquilo. A mola identitária da tragédia, é mesmo o perigo de conceber a busca dos assassinos como a pura e simples perseguição vingativa:  “Nós vamos, por nossa vez, matar aqueles que mataram”. Talvez haja algo de inevitável no desejo de matar aqueles que mataram. Mas não há, sem dúvida, nenhuma razão para disso se alegrar, gritar ou cantar como uma vitória do pensamento, do espírito, da civilização e da justiça. A vingança é um dado primitivo, abjeto e além disso perigoso, isto é o que os gregos já nos ensinam há muito tempo.

A partir desta perspectiva, eu também gostaria de me preocupar com coisas que foram saudadas como evidências. Por exemplo: a declaração de Obama. Ela não tinha o ar de nada, essa declaração. Ela vinha a dizer que este terrível crime não era apenas um crime contra a França, um crime contra Paris, mas um crime contra a humanidade. Muito bem, muito justo. Mas o presidente Obama não declara isso cada vez que há um assassinato em massa desse tipo, ele não o faz quando as coisas acontecem em lugares distantes, em um Iraque tornado incompreensível, num Paquistão nebuloso, numa Nigéria fanática, ou num Congo que está no coração das trevas. E então, a declaração contém a ideia, supostamente óbvia, que esta humanidade assassinada reside antes na França, e sem dúvida também nos Estados Unidos, do que na Nigéria ou na Índia, no Iraque, no Paquistão ou no Congo.

Na verdade, Obama quer nos lembrar que para ele a humanidade é de saída identificável ao nosso bom e velho Ocidente. Pode-se bem dizer: Humanidade = Ocidente, nós o ouvimos, como um baixo contínuo, em declarações, oficiais ou jornalísticas. Uma das formas dessa inaceitável presunção identitária assume a forma, sobre a qual eu retornarei, da oposição entre bárbaros e civilizados. Mas é escandaloso, do ponto de vista da justiça mais elementar, de deixar entender, mesmo sem quer, mesmo que indiretamente, que há partes da humanidade que são mais humanas do que outras, e temo que neste caso isso foi feito e que continua a ser feito.

Eu penso que é preciso romper com o hábito muito presente, inclusive na forma como as coisas são contadas, apresentadas, organizadas, ou ao contrário são calados, excluídas, sim, devemos perder o hábito, quase inscrito no inconsciente, de pensar que uma morte ocidental é terrível, e que milhares de mortes na África, na Ásia ou no Oriente Médio, e até mesmo na Rússia, não é ao final lá grande coisa. Isso ainda é a herança do imperialismo colonial, a herança do que é chamado o Ocidente, a saber os países desenvolvidos, civilizados, democráticos: esse hábito de ver a si mesmo como representante da humanidade inteira e da civilização humana enquanto tal. Este é o segundo perigo que nos espera se nós reagirmos somente com base em nossos afetos.

Depois, há um terceiro risco, que é fazer exatamente o que os assassinos desejam, isso quer dizer obter um efeito desmesurado, ocupar a cena interminavelmente de modo anárquico e violento, e, finalmente criar ao redor das vítimas uma paixão tal que nós não poderemos mais, por fim, distinguir entre aqueles que iniciaram o crime e aqueles que o sofreram. Porque o propósito desse tipo de carnificina, esse tipo de violência abjeta, é despertar nas vítimas, suas famílias, seus vizinhos, seus compatriotas, uma espécie de sujeito obscuro, eu o chamo assim, um sujeito obscuro de uma vez deprimido e vingativo, que se constitui em razão do caráter de ataque violento e quase inexplicável do crime, mas que é também homogêneo com a estratégia de seus patrocinadores. Essa estratégia antecipa os efeitos do sujeito obscuro: a razão vai desaparecer, aqui incluída a razão política, o afeto vai assumir a dianteira e nós espalharemos por toda parte o par da depressão abatida – “Estou atordoado”, “Estou chocado” – e do espírito de vingança, par que vai deixar o Estado e os vingadores oficiais fazer qualquer coisa. Assim, em conformidade com os desejos dos criminosos, este sujeito obscuro se revelará capaz por sua vez do pior, e acabará ao fim por ser reconhecido por todos como simétrico dos organizadores do crime.

Então, para evitar esses três riscos, penso que devemos avançar e pensar o que aconteceu. Partimos de um princípio: nada que os homens fazem é ininteligível. Dizer: “Eu não entendo”, “Eu nunca compreenderei”, “Eu não consigo entender,” é sempre uma derrota. Nós não devemos deixar nada no registro do impensável. É a vocação do pensamento, se nós queremos poder, entre outras coisas, se opor aos que declaram impensável, o pensar. Bem entendido, existem comportamentos absolutamente irracionais, criminosos, patológicos, mas tudo isso se constitui para pensamento de objetos como os outros, que não deixam o pensamento no abandono ou na incapacidade de fazer a medida. A declaração do impensável é sempre uma derrota do pensamento, e a derrota do pensamento é sempre a vitória precisamente do comportamento irracional, e criminoso.

Eu vou então tentar aqui diante de vocês, uma elucidação integral disso que aconteceu. Eu vou de qualquer forma tratar esse assassinato em massa como um dos muitos sintomas atuais de uma doença grave do mundo contemporâneo, deste mundo em seu todo, e eu vou tentar indicar as exigências ou os caminhos possíveis de cura a longo prazo desta doença, cuja multiplicação de eventos desse tipo no mundo é um sintoma particularmente violento e particularmente espetacular.

Esta vontade de elucidação integral irá comandar o plano da minha apresentação, sua lógica.

Eu vou primeiro tentar ir da situação geral do mundo como eu o vejo, como eu acredito que nós podemos pensá-lo sinteticamente, aos crimes em massa e à guerra que, pelo lado do Estado, foi pronunciada ou declarada. E então, eu vou remontar a partir daí, através de um movimento inverso, em direção à situação de conjunto não mais como ela é, mas como se deveria desejar que ela se tornasse, querer e agir para que tais sintomas desapareçam.

Inicialmente nosso movimento irá portanto da generalidade da situação do mundo ao evento que nos importa, e depois nós voltaremos do evento que nos importa a situação do mundo como nós a tínhamos esclarecido. Este movimento de retorno deverá nos permitir indicar um certo número de necessidades e tarefas.

Ele irá incluir sete partes sucessivas. Vocês a tem por um momento!

– A primeira parte apresentará a estrutura objetiva do mundo contemporâneo, o quadro geral do que aconteceu, o que aconteceu aqui, mas que também ocorre quase que todos os dias. É a estrutura objetiva do mundo contemporâneo tal como ela se coloca desde os anos oitenta do último século. Onde está o nosso mundo, do ponto de vista daqueles que tem sido deslocados insidiosamente, depois de forma evidente, depois com ferocidade, desde um pouco mais de trinta anos?

– Em segundo lugar, eu examinarei os principais efeitos desta estrutura do mundo contemporâneo sobre suas populações, sobre sua diversidade, sobre seu enredo e sobre suas subjetividades.

– Isto irá preparar meu terceiro ponto, que concerne às subjetividades típicas assim criadas. Eu acredito de fato que este mundo criou subjetividades singulares, características do período. Como vocês verão, eu distinguirei entre três subjetividades típicas.

– A quarta parte, que vai me aproximar do objeto próprio desta exposição, irá focar sobre isso que eu chamaria de figuras contemporâneas do fascismo. Como vocês verão, eu penso que os atores do que se passou lá merecem ser chamados de fascistas, num sentido renovado e contemporâneo do termo.

– É tendo chegado a tal ponto, eu tentarei ir em outra direção, para o que devemos fazer para mudar o mundo, de tal modo que este seja excluído de tais sintomas criminosos. Minha quinta parte será portanto dedicada ao evento em si, nos seus diferentes componentes. Quem são os assassinos? Quem são os agentes desse assassinato em massa? E como qualificar sua ação?

– Em sexto lugar, nós teremos a reação do Estado e a formação da opinião pública em torno das duas palavras “França” e “guerra”.

– A sétima parte será inteiramente consagrada à tentativa de construir um pensamento diferente, isto quer dizer se substrair dessa modelagem da opinião pública e da orientação reativa do Estado. Ele irá se concentrar nas condições, esclarecidas pelo conjunto do trajeto, disso que eu chamaria de um retorno da política, no sentido de um retorno da política de emancipação, ou do um retorno de uma política que refuta toda inclusão no esquema de mundo do qual eu terei partido.

  1. Estrutura do mundo contemporâneo

Trata-se da estrutura do mundo contemporâneo, tal como eu o vejo e tal como ele vai nos servir evidentemente para esclarecer o que é nosso desafio. Eu acho que podemos o descrever, em traços largos, em torno de três temas, temas que estão profundamente intrincados, profundamente entrelaçados.

A princípio, isso pode parecer de uma banalidade aflitiva, mas na minha opinião as consequências desta banalidade estão longe de ser desdobradas: há trinta anos, o que estamos testemunhando, é o triunfo do capitalismo global.

Este triunfo é a princípio, de modo particularmente visível, o retorno de algum tipo de energia primitiva do capitalismo, o que foi chamado por um nome questionável de neoliberalismo, e que é na verdade o ressurgimento recente da eficácia constitutiva da ideologia do capitalismo desde sempre, à saber o liberalismo. Não é certo que o “neo” seja justificado. Eu não acredito que isso que se passa seja “neo”, quando nós o olhamos de perto. Em todo caso, o triunfo do capitalismo global, é uma espécie de energia reencontrada, a capacidade retornada e incontestável de exibir, agora de forma pública e sem pudor, se assim posso dizer, as características gerais deste tipo muito particular de organização da produção, das trocas e finalmente das sociedades inteiras, e também sua pretensão de ser o único caminho razoável para o destino histórico da humanidade. Tudo isso, que foi inventado e formulado na Inglaterra próximo ao final do século XVIII na Inglaterra e que dominou em seguida sem contestação por décadas, foi reencontrado com uma espécie de alegria feroz pelos nossos mestres hoje.

Mundializado, é uma inflexão ligeiramente diferente. Nós temos hoje um capitalismo instalado explicitamente em uma escala que é a escala planetária. O que torna este capitalismo mundializado não é apenas um capitalismo que recuperou sua energia dissolvente, mas que, também, tem se desenvolvido de tal modo que no presente podemos dizer que, considerado como uma estrutura global, o capitalismo constitui um controle praticamente inconteste do conjunto do planeta.

O segundo tema é o enfraquecimento dos Estados. Esta é uma consequência bastante sutil do primeiro, mas que é de fato interessante de desenvolver.

Todos vocês sabem que um dos temas mais zombados do marxismo foi o tema do desaparecimento do Estado. O marxismo anunciou que a reorganização do Estado, após a destruição revolucionária dos Estados-nação dominados pelo capitalismo, implantaria em definitivo, por um poderoso movimento coletivo do tipo comunista, uma sociedade sem Estado, uma sociedade que Marx chamou de “associação livre”. Bem, estamos a assistir a um fenômeno realmente patológico, ou seja, um processo capitalista de desaparecimento dos Estados. É um fenômeno fundamental hoje, mesmo se ele é mascarado pela subsistência, por um tempo histórico provavelmente muito longo, por polos estatais de um poder bastante forte. Na verdade, a lógica geral do capitalismo global é não ter uma relação direta e intrínseca à subsistência dos Estados nacionais, pois sua implantação é hoje transnacional. Desde a década de sessenta, nós colocamos em evidência o caráter multinacional das grandes empresas. Mas essas grandes empresas se tornaram desde então monstros transnacionais de natureza totalmente diferente.

Enfim, o terceiro tema é o que eu chamaria novas práticas imperialistas, os modos de ação em força, por assim dizer, da expansão do capitalismo mundial, as novas figuras do imperialismo, isso quer dizer a conquista do planeta, enquanto a base de existência e de lucro do próprio capitalismo.

Eu retomo estas questões uma a uma.

1) O triunfo do capitalismo global

O triunfo do capitalismo global é uma evidência que todo mundo tem no espírito. Hoje, o mercado mundial é a coordenada absoluta da historicidade planetária. Ele é uma questão a todo momento. Sabemos muito bem que logo depois dos calafrios da Bolsa Shanghai, o mundo inteiro se inquietou, parece apavorado, se pergunta o que vai acontecer, e assim por diante …

A agressividade que acompanha esta extensão do caráter dominante do mercado mundial como referência de uma historicidade global, é particularmente espetacular. Nós assistimos hoje a destruição, por toda parte, das tentativas anteriores de introduzir no Capital uma medida. Eu chamo “medida” os compromissos passados, notadamente no período após a última Guerra Mundial, entre a lógica do capital e outras lógicas. Outras lógicas que podem ser as lógicas de controle estatal, de concessões feitas aos sindicatos, as reticências diante das concentrações industriais e bancárias, as lógicas de nacionalizações parciais, as medidas de controle de certos excessos de propriedade privada, antitruste… Houve também a introdução de medidas estendendo os direitos sociais da população, tais como a possibilidade para que todos possam acessar à saúde, ou limitar as formas de exercício privado de funções liberais, etc., etc.

Tudo isso está a caminho de ser metodicamente destruído, inclusive em países que eram o paradigma. Eu não estou nem falando dos estados socialistas, dos países socialistas de fato: a França era um dos países que oferecia a maioria desses exemplos desse espírito de medida. Ora, nós destruímos tudo isso hoje com uma aplicação extrema. Nós começamos evidentemente com a desnacionalização pelas privatizações. A palavra “privatização” é de fato agressiva, mesmo se nós não nos damos mais conta disso. É uma palavra que se refere diretamente ao fato de que as atividades que foram destinadas para o bem público devem ser restituídas à propriedade privada como tal. É uma palavra de agressividade extraordinária, embora ela seja agora uma banalidade. Da mesma forma, e de modo incessante – que se trate da direita ou da esquerda, não há nesse ponto nenhuma diferença – partes inteiras da legislação social foram derrotadas, que se pense no código do trabalho, na segurança social, no sistema de ensino…

É preciso reconhecer que a vitória objetiva do capitalismo global é uma prática destrutiva, agressiva. Não é apenas uma espécie de expansão racional ou razoável de um determinado sistema de produção. E não podemos senão nos inquietar com a baixa resistência observada nessas destruições sucessivas. Esta resistência é de fato um recuo constante. Ela está localizada, dispersada, muitas vezes corporativista, setorial, nenhuma visão global a sustenta. Na realidade, este recuo é ininterrupto faz trinta anos.

Tendencialmente, nós temos uma representação dominante que interdita que seja imposto ao capitalismo qualquer forma de medida. Neste sentido, podemos dizer que a lógica do capital é liberada. O liberalismo é liberado. Voilá! Nós assistimos nos últimos trinta anos, balançando os braços, a liberação do liberalismo. E essa liberação assume duas formas: a mundialização, ou seja, a expansão ininterrupta do capitalismo a territórios inteiros, como a China, e ao mesmo tempo o poder extraordinário da concentração do capital, isto é, esse movimento dialético característico do capital: ele se estende, e estendendo-se ele se concentra. A expansão e concentração são duas modalidades, absolutamente ligadas uma a outra, do caráter proteiforme do capital.

As concentrações continuam ao mesmo tempo que as privatizações e as destruições  aceleram. Vocês todos notaram, porque ela tem um lado um pouco espetacular, a recente fusão da Fnac e da Darty, dois supermercados de grande distribuição. Temos aqui uma fusão do livro e da geladeira. Que o objetivo seja puramente financeiro, isso é claro, e caracteriza a fusão puramente capitalista, sem qualquer interesse pelo público. Estas concentrações criam gradualmente polos de poder comparáveis aos Estados, se não superior a muito entre eles.Trata-se de polos de poder financeiros, produtivos por vezes, especulativos, envolvendo sempre um pessoal considerável, muitas vezes dotados de milícias poderosas, e que se espalham por toda parte, frequentemente pela força, sempre pela corrupção. Estes polos são transnacionais, se bem que eles têm uma relação diagonal com os Estados. Aos olhos destes poderes massivos e transnacionais, a soberania estatal vão vale nada em si mesma.

Assim, nós podemos constatar que as empresas de tamanho considerável, a maior empresa francesa, por exemplo, Total, não paga nenhum imposto na França. Em que consiste então seu caráter “francês”? Bem, sua sede deve estar em algum lugar em Paris, mas… O estado francês, você vê, não tem realmente um controle, inclusive em polos de poder que afirmam sua nacionalidade francesa. Há, atualmente, uma vitória, vasta e ramificada, das empresas transnacionais sobre a soberania dos Estados.

Mas há também uma vitória subjetiva que acompanha esta vitória objetiva do capitalismo. É o desenraizamento total da própria ideia de um outro caminho possível. Isso é de importância considerável, porque é a afirmação, de alguma forma estratégica, que uma outra orientação global, sistêmica, da organização da produção e do jogo social está no momento praticamente ausente. De modo que, aqui incluídas as propostas de resistência, as propostas de reintroduzir a medida, etc. já se situam numa visão derrotista do movimento geral. Elas não são inscritas em uma estratégia que seria de reconquista da territorialidade da Ideia. Mas elas são a nostalgia impotente da época dos compromissos sociais e das medidas de controle semi-estatal do capital.

É surpreendente ver que o programa do Conselho Nacional da Resistência tornou-se o magnífico modelo nostálgico da França. É a época em que, ao sair da ocupação nazista, durante a qual os capitalistas franceses tinham muitas vezes colaborado com a ocupação, a aliança dos gaullistas e comunistas instituiu medidas importantes de estatização e redistribuição social.

Mas esta nostalgia do programa reformista do fim da guerra esquece que à época, primeiramente nós saíamos de uma guerra mundial, em segundo lugar a burguesia colaboradora não ousava mostrar-se, e, em terceiro lugar, havia um poderoso partido comunista. Hoje, nada disso existe. E a nostalgia do programa social do CNR é um devaneio completamente separado da vitória subjetiva espetacular do capitalismo global. Esta vitória fez com que num período de tempo bastante curto, entre 1975 e hoje, tenha sido anulada, reduzida a quase nada, a força da ideia de que, quaisquer que sejam as dificuldades, uma outra possibilidade existia. Ideia que, ainda nos anos 60-70 do século passado, animava no mundo inteiro milhões de revoltados políticos

Esta ideia, cujo nome genérico, desde o século XIX, é “comunismo”, está de tal modo doente hoje que nós temos vergonha de somente nomeá-la. Nem, não eu. Mas, no nível do conjunto, ela é criminalizada. Esta criminalização pode ter razões: Stalin, etc. Mas o objetivo perseguido pelos apoiadores da mundialização capitalista não tem qualquer objetivo ético, como os seus divulgadores o fazem crer. Eles têm por objetivo o desenraizamento, se possível definitivo, da ideia de uma alternativa global, mundial, sistêmica, ao capitalismo. Nós passamos do dois para o um. Isso é fundamental. Não é a mesma coisa quando sobre uma mesma questão, existem duas ideias em conflito, ou não há senão que uma. E esta unicidade é o ponto-chave do triunfo subjetivo do capitalismo.

2) O enfraquecimento dos estados

Os Estados não são definitivamente, hoje, senão os gestores locais desta ampla estrutura global. Eles são uma espécie de mediação, além do mais instável, entre a lógica geral que eu venho de descrever e as situações particulares, definidas por países, coligações, federações, Estados… Isso depende do caso. E é preciso muito para dizer a norma do poder seja representada pelos Estados e por eles apenas. Claro, ainda existem polos estatais constituídos ou que manifestam ainda um certo vigor, grandes polos do tipo EUA e China. Mas, mesmo nestes casos, o processo é aquele que acabamos de descrever. Estes grandes polos não são portadores de outra coisa. Como eu os recordei, as grandes empresas têm o tamanho de Estados médios. Aliás, é muito impressionante que os próprios bancos tenham se tornado conjuntos tão consideráveis, que nós admitimos, como um axioma, que sua queda é impossível: “Too big tofail”. Muito grande para cair. Isto é que muitas vezes é dito sobre os grandes bancos norte-americanos. Isto significa que a macroscopia econômica supera a capacidade do Estado. Isso é o que eu chamo de enfraquecimento dos estados. Não somente os estados foram amplamente transformados no que Marx já pensava deles, a saber, “os fundamentos do poder do capita”. Mas eu não sei se Marx jamais imaginou que ele tinha tanta razão ao ponto que, depois de trinta anos, a realidade lhe deu. Não somente os estados são os fundamentos do capital, mas há cada vez mais uma espécie de discordância entre a escala de existência das grandes empresas e a escala de existência dos Estados, que faz com que a existência das grandes empresas seja diagonal para os estados. O poder dos grandes conglomerados industriais, bancários ou comerciais não coincide nem com a esfera estatal, nem mesmo com aquela das coalizões de Estados. Esse poder capitalista atravessa os Estados como se ele fosse de uma vez independente e comandante.

Isso me leva ao meu terceiro ponto, isso quer dizer às novas práticas imperialistas.

3) As novas práticas imperialistas

Como vocês sabem, o imperialismo antigo, aquele do século XIX esteve inteiramente sob o controle da ideia nacional, do Estado-nação. Sua organização global resultava de uma divisão do mundo entre as nações poderosas, que eram feitas em reuniões como a reunião de Berlim em 1885, onde nós cortamos a África como um bolo e onde nós dizíamos isso é para a França, isso, para a Inglaterra, isso, para a Alemanha, etc. E onde nós instalamos um poder metropolitano de gestão direta dos territórios, naturalmente com a presença de grandes empresas predatórias de matérias-primas e da cumplicidade eventual de alguns notáveis locais.

E depois houve as guerras mundiais, houve as guerras de libertação nacional, houve a existência do bloco socialista apoiando as guerras de libertação nacional. Em suma, tudo progressivamente eliminou, durante os anos 40 a 60 e seguintes, a esse regime de administração direta que foi chamado colonialismo em sentido estrito, ou seja, a instalação de um poder metropolitano nas regiões dominadas.

Apesar disso, as tarefas soberanas de proteção das empresas, o controle dos circuitos de matérias-primas ou das fontes de energia, tiveram que continuar a ser assumidas em parte por meio do Estado. Elas não poderiam ser assumidas apenas pelos mercenários das empresas. Então há por anos, até mesmo por décadas, uma atividade militar incessante dos Estados Ocidentais. É preciso lembrar que as intervenções militares da França na África durante os últimos quarenta anos, houve mais de cinquenta! Nós podemos dizer que houve um estado quase crônico de mobilização militar na França para manter seu quadrado na África… E ocorreram, como se sabe, grandes expedições, conflitos gigantescos, a guerra da Argélia, a Guerra do Vietnã e depois finalmente a destruição do Iraque, e em seguida o que se passa nesse momento.

Assim o ponto não é o fim das intervenções imperialista, absolutamente não. A questão incide sobre a diferença na modalidade de interferência imperialista. A questão permanece sempre: O que fazer para proteger os nossos interesses em áreas distantes? A propósito da intervenção no Mali, eu li em um jornal particularmente sério, que esta intervenção foi um sucesso, porque nós tínhamos conseguido “proteger os interesses do Ocidente”. Foi dito assim, com toda a inocência. Assim, em Mali, nós protegemos os interesses do Ocidente… Não se protegem primeiro os malianos, aparentemente. Além disso, eles cortaram seu país em dois. A defesa do ocidente o obriga. Assim, mesmo se as modalidades mudam, a necessidade de intervenções imperialistas continua a ser urgente, tendo em vista a dimensão dos interesses capitalistas em jogo: urânio, petróleo, diamantes, madeiras preciosas, metais raros, cacau, café, bananas, ouro, carvão, alumínio, gás. E assim por diante.

Eu penso que o que aparece pouco a pouco, é a ideia de que em vez de assumir a difícil tarefa de constituir Estados sob a tutela da metrópole, ou até mais, dos Estados diretamente metropolitanos, a possibilidade é muito simplesmente a de destruir os estados. E vocês vêm a coerência desta possibilidade com a desestatização gradual do capitalismo mundializado. Nós podemos tudo criar, em determinadas zonas geográficas cheias de riquezas latentes, zonas francas, anárquicas, onde não há mais Estado, onde, consequentemente, não se tem mas que discutir com esse monstro terrível que é sempre um Estado, mesmo se ele é fraco. Nós podemos esbarrar no risco permanente que um Estado prefira um outro cliente, ou outros aborrecimentos comerciais. Em uma zona onde todo o poder estatal verdadeiro desapareceu, todo o pequeno mundo das empresas irá operar sem muito controle. Haverá uma espécie de semianarquia, os bandos armados, controlados ou incontroláveis, mas os negócios podem assim mesmo continuar, e mesmo melhor do que antes. É preciso bem se dar conta que, contrariamente ao que é dito, ao que se conta, as empresas, seus representantes, os agentes gerais do capital, podem perfeitamente negociar com grupos armados, e de certa forma mais facilmente que com os Estados constituídos. Não é verdade que a anarquia estatal e as crueldades inimagináveis que vêm com ela estejam necessariamente em contradição formal com a estrutura do mundo tal como ele é hoje.

Todos podem constatar que já faz um bom tempo que nós falamos em destruir o Daech (Estado Islâmico), mas na realidade, até o presente, nada de realmente sério foi feito, exceto pelos curdos que estão presentes no local e têm seus próprios interesses na região. Todo mundo diz: “Ou lá lá, enviar trezentos mil homens pra lá? Talvez seja melhor continuar a limitar mais ou menos a coisa, reconduzi-la a um regime normal de negociação…” Afinal, o Daech é um poder comercial, uma empresa de negócios competente e multiforme! Ela vende petróleo, ela vende obras de arte, ele vende muito algodão, é uma grande potência produtora de algodão. Ela vende muitas coisas para todo mundo. Porque para vender alguma coisa, é preciso ser dois. Não é o Daech que compra seu algodão.

Para designar estas novas práticas imperialistas, à saber destruir os Estados, em vez de corrompê-los ou substituir-se a eles, eu sugeri a palavra “zoneamento”. Eu propus dizer que ao imperialismo fabricava pseudo-países fracionados não importa, mas que tinham o estatuto de países sob a tutela da metrópole, nós podíamos substituir, na África, no Oriente Médio ou em certas regiões da Ásia, zonas infraestatais, que são, na realidade, zonas de pilhagem não estatatizadas. Nessas zonas, será preciso intervir militarmente de vez em quando, mas sem ter a carga realmente da gestão integral e pesada dos Estados coloniais, nem mesmo ter de manter no local, pela corrupção, um bando de cúmplices locais que se aproveitam das funções que nós lhes concedemos para se entregar à pilhagem das riquezas.

Recapitulemos. Temos uma estrutura do mundo contemporâneo dominada pelo triunfo do capitalismo global. Temos um enfraquecimento estratégico dos Estados, até mesmo um processo em curso de deterioração capitalista dos Estados. E em terceiro lugar, temos novas práticas imperialistas que toleram e até mesmo incentivam, em algumas circunstâncias, o despedaçamento ou mesmo a destruição dos Estados.

Nós não podemos ignorar essa hipótese, se nós nos perguntamos, por exemplo, qual foi o interesse verdadeiro da expedição na Líbia. Nós destruímos completamente um Estado, criamos uma zona de anarquia onde toda a gente se queixa ou pretende se queixar, mas depois disso tudo os americanos fizeram a mesma coisa no Iraque, e os franceses novamente em Mali e no centro da África. Me parece mesmo que a completa destruição da Iugoslávia, para a qual foram necessárias pesadas intervenções ocidentais, e que retalhou o país em uma dezena de pedaços, quase todos muito doentes e corrompidos, já dava sinal das práticas de zoneamento. Em áreas importantes, a prática foi de destruir Estados, para colocar em seu lugar, praticamente, quase nada, isto é, acordos frágeis entre minorias, religiões e bandos armados diversos. Nós substituímos