Por Marta Harnecker, via marxists.org, traduzido por Erlândia Ribeiro
Lorena Peña, mais conhecida por todos como a comandante Rebeca, tem uma longa história de luta junto ao povo salvadorenho. Proveniente de uma família pequeno-burguesa, aos dezessete anos já trabalhava “para ser independente” e pouco tempo depois começa a militar na organização político-militar salvadorenha Forças Populares de Liberação “Farabundo Martí”, mais conhecida como FPL, e em pouco tempo chegou a ser líder comunitária em vários bairros marginais de San Salvador. Um tempo depois passa a formar parte do Comitê Central dessa organização e permanece sendo a líder da comissão de massas durante quatro anos. Mais tarde lhe atribuem tarefas de segurança. Naqueles anos a conheci. Veio me visitar em Habana, conhecia meus Cadernos de Educação Popular e queria que a apoiasse em suas novas funções. Lhe dei para ler o material que havia preparado para o curso de formação política do Partido Socialista chileno, em que eu militava.
Em 1979 a nomeiam secretária do partido na Frente Ocidental e, pouco mais tarde, dois meses antes da ofensiva de 81, passa a assumir a chefia militar desta frente – não tanto devido aos seus conhecimentos neste terreno, que naquela época eram bastante escassos –, senão graças aos seus dotes organizativos.
Muitas vezes teve que assumir tarefas de direção que estavam acima de sua preparação técnica. No entanto conseguiu ultrapassar isso porque estava convencida de que “se conseguisse comprometer o coletivo política, ideológica e emocionalmente com a tarefa, as coisas caminhariam bem”.
Logo depois da ofensiva de 81, quando se reestruturavam os mandatos, Rebeca deixa a chefia da Frente Ocidental e assume sem problemas a sub-chefia. O mesmo ocorre na Frente Especial de San Salvador, no Paracentral e novamente na Frente Ocidental.
Porém Rebeca, que assume com grande naturalidade o exercício de altos cargos de direção política e militar, aceita com humildade passar de chefe a subordinada.
Teve até agora três companheiros, e por razões que são narradas nesta entrevista, suas relações afetivas fracassaram. Também tem um filho que – devido a sua militância clandestina – não pode viver com ela quando pequeno. Rebeca se limitava a olhá-lo escondido atrás de uma árvore.
Em uma longa conversa realizada em plena guerra, em novembro de 1990, me narrou suas vicissitudes. Preparei a entrevista para sua publicação e esperei em vão suas correções. Já havia perdido a esperança de materializar esse projeto quando, aproximadamente dois anos depois, em maio de 93, a encontrei em El Salvador, no I Congresso da FPL em época de paz. Me confessou que a leitura de seu testemunho a tinha machucado muito. Se perguntou: “Onde está minha vitória pessoal se conto todas essas baboseiras e não faço nada?”. Isso determinou que dedicasse parte importante de seu tempo ao tema da mulher. Hoje Rebeca é uma das principais impulsoras do Movimento das Mulheres “Mélida Anaya Montes”.
Marta Harnecker
Havana, julho de 1993.
O comando, um novo desafio para a mulher
– Em que afeta o casal o feito de que a mulher tenha um cargo de maior responsabilidade que o homem?
– As mulheres com responsabilidade dificilmente encontram algum companheiro que seja solidário com elas. Isso é um denominador comum. Em minha vida, de distintas formas, o problema tem sido o mesmo. Eu fiz um balanço e em nenhum caso a separação foi porque não nos entendemos fisicamente ou por questões de caráter, nada disso.
– Conta um pouco, o que aconteceu com os seus companheiros?
– Com meu primeiro companheiro tudo saiu muito bem até que entrei para o comitê central…
– Quantos anos depois de haver começado a relação com ele?
– Cinco anos. Era meu primeiro namorado. Aos dezesseis anos comecei a andar com ele até que nos casamos. Fazia cinco anos. Nossa relação vinha desde o ensino médio, já estava quase pré-estabelecido que esse iria me acompanhar…
– Quando começou a militar?
– Eu ingressei formalmente em maio de 1973, tinha dezesseis anos.
– E se casou?
– Aos dezoito, em 1974, um ano depois da fraude eleitoral e tive meu primeiro filho aos dezenove. Quando saí grávida estava de aspirante a combatente. Me tiraram tudo isso e me deram como tarefa cozinhar para um grupo de companheiros que vinham a uma escola clandestina, nas temporadas de corte, como se viessem fazer o tribunal, e logo regressavam. Antes de levá-los a escola os espalhavam em alguns locais clandestinos. Eu atendia um local desses, cozinhava para os que chegavam…
– Você acredita que foi uma medida correta da organização a mudança de atividade?
– Eu creio que diante da condição física alguém pode mudar de atividade. Porém o que houve comigo foi que me rebaixaram o nível da atividade. E isso sim creio que não foi correto.
– E você acredita que fizeram intencionalmente?
– Não. Creio que ninguém planejou, estava dentro da lógica.
– E se você fosse chefe? O que teria feito?
– Bom, creio que já quando a gravidez está avançando há que modificar as pessoas de atividade, porém talvez não houvesse mandado como cozinheira, há uma diversidade de tarefas em que, estando nessa situação, se pode contribuir e desenvolver.
Eu nessa época me dediquei a ler muito constantemente, mas nem todo mundo pode ter essa vontade. E o partido deve proporcionar condições para que as mulheres não fiquem presas, porque esse é o ponto crítico de qualquer mulher com militância.
Quando meu filho tinha seis meses tivemos que passar para a clandestinidade. Nesse momento foi quando se dava a inversão da organização até as massas. E como eu havia trabalhado nos bairros marginais desde a época escolar, me colocaram para atender esse setor, que nesse momento era só um nome, porque na realidade não existia. Minha tarefa foi a de organizar a base do partido entre os trabalhadores e grupos de apoio e projetar o grêmio aos bairros marginais… Fui me metendo nisso cada vez mais e quando Vladimir, meu filho, tinha sete meses, os companheiros me perguntaram: “Como pensa em fazer mais tarefas com seu filho?”.
– Seu companheiro não te ajudava?
– A verdade é que Dimas era um homem excepcional; tínhamos turnos de lavagem de fraldas, turnos de insônia, um dia sim e um dia não, cada um trancado em casa para que o outro fosse cumprir tarefas, apesar de que ele levava um processo de desenvolvimento muito mais acelerado que o meu. Porém, com esse sistema, o problema que era dos dois fazíamos um, porque ele também saia um dia sim um dia não.
E então, quando o menino tinha oito meses decidi levá-lo para minha mãe. E só nessas condições pude passar a atender as tarefas no tempo certo.
– Não se apresentou um conflito interno entre a mãe e a combatente?
– Claro! Se separar de um filho é como se amputassem seu braço. Eu não posso explicar a sensação física que a pessoa sente. Toda essa mística cristã me ajudou muito. Os recursos políticos não me fizeram suficiente para tomar essa decisão, porém isso do amor ao povo, de que outros não comem e que você ao menos tem a comida assegurada, foram argumentos que pesaram mais fortemente que o temor de que o matassem junto a mim. Me lembro que, para dar valor a mim mesma até li um escrito de Lenin direcionado a mulheres em que fala da maternidade em sentido histórico-social.
Deixei Vladimir onde morava minha mãe e eu segui na clandestinidade. Assumi de cabeça o trabalho nos barracos e, por conexão, o trabalho operário.
Em 1976 entrei no comitê central. Tinha então vinte e um anos. Éramos sete. As responsabilidades eram múltiplas.
– Sete no comitê central?
– Sim. Era o período em que o partido começou a criar direções integrais por frentes. Eu, por exemplo, que formava parte da direção de San Salvador atendia o setor operário, a comissão de infraestrutura – que era a que fazia os barretines[1] – os hospitais clandestinos, as prisões clandestinas para os sequestros.
Tive em minha responsabilidade a equipe central de saúde, que era um hospital móvel; uma espécie de sala de cirurgia com seus médicos e sua equipe, com mecanismos clandestinos de comunicação para se mover quando fosse necessário. Ao mesmo tempo, estava na educação. Quando te conheci, Marta, e revisei seus programas de educação política, estava nessa tarefa. Era uma loucura tudo aquilo, porém como tinha menor nível de complexidade que hoje, podia responder.
Meu companheiro não entendeu esse processo, e então nossa relação começou a ter crises. O interessante é que, em termos de tempo, eu passava fora de casa igual antes, só que agora ele não podia me controlar, porque eu ia a um Estado, ia a outro, ao interior do país, as vezes podia voltar para dormir, as vezes não. Tinha mais responsabilidades. Ele começou a não entender isso e a colocar o elemento da dúvida a respeito do que eu sentia por ele, em tudo o que eu fazia: se chegava tarde, era por desinteresse; se eu ia cedo, era por desinteresse…
E depois começou a acontecer uma coisa que nunca havia acontecido. Me dizia: “Você é ingênua, deveria entender que anda com homens.” Esses “homens” eram os comparsas. Quando trabalhava com um companheiro me advertia: “Você deve ter cuidado, porque acho ele estranho…” A situação ia ficando cada vez mais pesada.
– Ou seja, tinha ciúmes…
– Ciúmes, porém ciúmes de todos e cada um dos companheiros. Isso parece divertido no começo, porém logo é angustiante. Pode parecer divertido que tenham ciúmes de você com um e outro, porém quando isso é uma fonte de conflito permanente, de questionamento das suas atividades, de que você precisa começar a pensar que cada tarefa que vai fazer significará um debate, um problema; que as iniciativas que você toma com os companheiros, implicam em sugar mais o seu tempo, repercutem nos problemas da casa, então isso começa a virar um conflito. E se além disso começa a transcender e o problema já não é percebido somente por você, mas começa a ser sentido pelas pessoas ao redor, então seus próprios companheiros, para não criarem problemas, começam a se retrair. E você começa a entrar numa confusão nas relações com todo mundo…
Então o que aconteceria afinal de contas? Ou eu seguiria meu caminho revolucionário, de trabalho com os companheiros e me tornaria independente, ou seria uma revolucionária medíocre e uma boa companheira para o meu esposo. Assim especificamente foi me apresentado esse cenário. Eu conversei com ele. Quando comecei já iniciou uma discussão até que tomei a decisão de me separar, passaram dois anos; dois anos de debate, de crítica e de autocrítica… E acontecia algo interessante: no debate, ele se defendia, porque ele sabia que teoricamente eu tinha razão. Mas passavam quinze dias de normalidade e a história era a mesma, e cada vez mais pesada. Interferia no meu trabalho. Ele queria conhecer todos os meus esconderijos para saber onde me buscar. Eu não podia lhe dar esses dados, porque com isso rompia a compartimentação e, para demonstrar o absurdo de seus requerimentos, pedi que ele me desse os dados dos esconderijos que ele frequentava. Negou argumentando sobre a compartimentação. Então eu perguntei porque ele deveria respeitar essas normas e eu não. Nesse momento atribui esses problemas a origem campesina de Dimas, já que o machismo no campo salvadorenho é muito acentuado.
Ao fim já não se tornava somente um problema de opção política, senão de afeto, porque isso quebrava a minha motivação de convivência. Em novembro de 78 nos separamos…
Anos depois falamos sobre isso, porque continuamos sendo muito amigos, ele concordava comigo e então caia na risada e me dizia: “Talvez não houvesse entendido muitas coisas se não tivesse me deixado…” E coincidíamos os dois que sua atitude se devia a uma marcada influência campesina no sentido do machismo, da dominação da mulher, encoberta sobre outro conceito: “Você é boba e os companheiros são malandros”, “Tenha cuidado, você não compreende como o mundo é”; porém no fundo era isso. O que mais me pesou foi que ele já não me controlava, porque antes eu estava ocupada vinte e quatro horas do dia, porém como dependia da organização em que ele estava, ele sabia o que eu fazia vinte e quatro horas por dia. Isso mudou logo quando estávamos no mesmo nível: para cada pessoa lhe davam seu trabalho e era Marcial quem tinha o controle. Ele concordou que havia influências desse tipo e muita incompreensão da sua parte, e que isso levou a que tronáramos[2].
Em meados de 79 eu me juntei com um especialista. Nos dávamos muito bem. Não tínhamos problemas, trabalhávamos em áreas distintas… Eu trabalhava no Occidente e ele trabalhava em San Salvador. Nos víamos eventualmente a cada quinze dias ou uma vez ao mês, ele ia ao Occidente ou eu vinha a San Salvador. Isso foi antes da ofensiva de 81. Estávamos a mil maravilhas… Para a ofensiva, lhe mandaram a San Vicente e me mandaram ao Occidente. Passamos um bom tempo sem nos vermos. Até que em meados de 82 eu era secretária do partido e ele era chefe dos fornecimentos e da logística. Nos dávamos muito bem porque seu chefe era outro. Porém logo me deram a chefia dessa frente, o Paracentral, e passei a ser sua chefe. Aos oito meses nos separamos. Ele dizia que toda a imagem que tinha de mim como mulher se perdia só de saber que eu era sua chefe. Ele sentia que não podia se entender comigo da mesma maneira.
– No fundo a relação começou a não dar certo porque ele não suportava ser seu subordinado…
– Sim…
– Você acredita que isso se dava porque ele se preocupava com o que os outros iriam achar?
– Claro! Entre outras coisas… Olha era esse o tempo das unidades regulares. Você sabe que aqui era que se davam as vozes de comando, que o chefe cumprimentava formalmente. Quando ele chegava as reuniões do estado maior, em que estavam todos os chefes, ele não sabia se me beijava ou agia formalmente, para te dar um pequeno exemplo. E não faltavam piadas, e nem restavam dúvidas. Eu não ficava incomodada porque, por fim, eu não era a que estava nessa situação, mas ele sim. E se adicionarmos que grande parte de nossas práticas nesse tempo giravam em torno de tarefas: “Já está nas minas? Já estão atirando? Já está com as calças do batalhão, os racionamentos operativos, os embutidos, os líquidos?” Imagina a situação! E isso era todos os dias. As vezes ele dizia: “Não posso cumprir com tal tarefa” e eu tinha que dizer: “Tem que cumprir”.
Lembro uma anedota que desenha bem o grau crítico em que estava nossa relação. Ao fim de 82 mandei uma nota em que perguntava: “Você vem agora?” e ele me respondeu: “É uma ordem ou o que?”
E se a isso adicionarmos que, no momento mais alto da crise, damos tudo de Marcial e Ana Maria. Nesse momento, além disso, nos entregam o Plan CONARA[3]. Você lembra desse plano, em San Vicente, que durou seis meses? Tínhamos que conduzir oito mil pessoas de população civil perseguida. Imagina isso durante quatro meses, era uma confusão, com um menino morto por semana em cada município, por fome, por falta de comida… Então que cabeça eu tinha para resolver esse assunto? Nenhuma, sinceramente. Talvez ali eu tenha falhado. Isso terminou ali, foi bem doloroso…
O triste é que quando eu me juntei com este companheiro, ele era um professional já era grande dentro da organização, com muita visão, com muito desenvolvimento cultural; aparentemente não tinha problemas com meus critérios independentes, me ajudou muito nesse sentido. Eu dizia então: “Talvez o problema seja a minha classe e que eu me entendo melhor com alguém da camada pequeno-burguesa.” Porém, ainda assim ele era de uma classe e eu de outra, o problema seguia sendo o mesmo: o choque entre a relação pessoal e a relação de trabalho.
Depois dessa experiência disse a mim mesma: “Não volto a me juntar com ninguém, ou terei que pensar muito bem; terei que fazer grandes reflexões.” Inclusive tirei uma conclusão engraçada, que hoje não acredito – mas até então acreditava –: “Eu estou fora de série, e não tenho interesse como mulher de servir aos que estão na série atual.” Estava contente com o que fazia e dizia: “Vitória é fazer o que ninguém acredita que é correto ainda que nem sempre goste.” Não sei se estou me explicando direito. Para outra mulher pode ser vitória não perder a relação ainda que pague por isso um monte de coisas; mas para mim, vitória é poder ser revolucionária e fazer um homem que me entenda nessa dimensão e que caminhemos juntos. Por isso, apesar da relação ter acabado, eu considerava que o que tinha acontecido era uma vitória.
Passei três anos em que não queria nem ouvir falar de relacionamento.
– Não te pesava a solidão?
– Cheguei a valorizá-la nesses três anos. Li mais e aprendi a me relacionar melhor com as pessoas. Então compreendi que também tem suas vantagens estar sozinha. Para mim foram três anos impressionantes nesse sentido, aprendi bastante. Eu imagino que você já tenha passado por isso, que quando está sozinha tem outro clima as relações. Eu encontrava qualidades na solidão também…
Inclusive cheguei a pensar que uma coisa é se relacionar com alguém e outra é ser companheira dessa pessoa. Há diferenças. Talvez pelo moralismo na organização, as pessoas tendiam a crer que se dormisse com alguém era porque estava pensando seriamente nisso, necessariamente… Eu acredito que é um erro isso, olha. No fundo é moralista, cumprir com o requisito de acompanhar e depois cumprir com o requisito de separar, porque se simplesmente resolve dormir com alguém, é uma louca. Eu refleti sobre todas essas coisas e cheguei a pensar que uma coisa é dormir com alguém e, outra é fazer um projeto de vida em comum. Porém estando em Guazapa, olha que divertido, me encontrei com um velho amigo e companheiro de luta. Éramos grandes parceiros. E um belo dia disse: “Bom, e eu o que faço pensando no companheiro, se veio, se foi, o que é isso?” E ele também. Foi uma relação muito boa enquanto estivemos juntos. E mais, ele teorizava de que era importante que as companheiras tivessem seu próprio nível de desenvolvimento, etc.
– Mas qual era a relação orgânica com você?
– Ele era meu chefe. Era de um núcleo de comissão política que estava ali, a verdade é que fazíamos tudo coletivamente, ainda que com a divisão dos trabalhos. E para mim não havia problema de que ele fosse meu chefe. Eu me sujeitava com facilidade ao que ele me mandasse. Porém tive que sair para o exterior por problemas de saúde e durante o checape médico detectaram que eu estava grávida.
– Você queria ter esse filho? Não pensou em interromper a gravidez?
– Olha em nenhum momento pensei em interromper a gravidez, porque sim queria ter outro filho. Nesse momento a guerra se tornava tão longa, não enxergava que fosse terminar logo e pensava que estava ficando velha e que se esperasse mais não poderia ter outro filho. Então sim havia me decidido que se essa possibilidade me acontecia a iria aproveitar.
– Agora, nas outras relações pesaram os problemas de sujeição, de comando, de tarefas; neste caso não havia problemas de ciúmes, nem de tarefas, então, qual foi o problema?
– Minha filha tinha um mês de nascida e ele manifestou: “Bom, eu estou sozinho e acaba que você está lá”. E eu lhe disse: “Sim, eu estou aqui com a nossa filha.” “Sim, mas eu estou sozinho”, me responde “e aqui há uma mulher que eu gosto…” Se assim deseja, é um pouco de instabilidade afetiva, porém, uma vez mais, também é a incapacidade de esperar a companheira, que para desenvolver-se deve cumprir tarefas que implicam que deixe sozinho seu companheiro. Então me parece ser o mesmo fenômeno.
Eu sinto que há um problema de estabilidade, mas também de valores aí, ou seja, as duas coisas…
Olha, a única coisa que gosto em todo este relato, é que o companheiro foi capaz de me avisar o que estava pensando em fazer, ainda que fosse muito cruel. Tínhamos um trato, e era que eu não perdoaria mentiras. Ele sabia que se me enganasse então, esqueça, ia me fazer em pedaços. Eu parto do princípio de que não dou motivos para que me enganem, e não porque sou uma pessoa boníssima, senão no sentido que eu também sou muito clara.
Quando regressei a frente, havia comentários entre as companheiras, que tal companheiro te deixa e se casa, que o outro te deixa e se casa; e as companheiras diziam: “Não há porque buscar tarefas longe do companheiro, não há que ter filhos, porque ter filhos é perder o companheiro.”
Eu nunca havia refletido sobre isso, talvez era insensível a esse tipo de assunto, porém me pus a pensar que é certo, que pelo menos em El Salvador e nas FPL, todas as mulheres comandantes somos solteiras ou separadas ou viúvas. E a que não é, já estará para ser. Não temos companheiros.
É um comum denominador, foi uma experiência que eu vivi. E olha que a assumo com alegria, porque tampouco alguém tem que fazer o papel de amargurada com tudo isso… Nem tampouco anti-homem, anti-casal, porque cada qual sabe em sua própria pele qual foi a sua experiência. Não pretendo tirar uma lição de tudo isso, porém sim acredito que não é tão fácil desenvolver com naturalidade o comando feminino.
Dessa forma cheguei a conclusão de que se não é absolutamente possível fazer compatível a vida familiar com o trabalho político, nesse caso de uma companheira que tem responsabilidades de liderança, é muito difícil, porque na prática ainda está estabelecido que se você quer ter estabilidade tem que limitar seu desenvolvimento como pessoa, como revolucionária, como política, ao nível que não te dê independência sequer com relação ao seu companheiro.
Isso é assim na prática, porém ninguém o formula assim. Lê os estatutos, nossos folhetos de moral, tudo o que quiser, as pessoas não dizem isso, porém na prática é assim que funciona. Se bem que nenhum partido tem uma política discriminatória desde o ponto de vista teórico, mas na prática é outra coisa.
Referências
[1] Lugares secretos destinados a esconder armas e equipamentos militares.
[2] Fracassáramos.
[3] Plano nacional de Restauração de Áreas. Plano militar com fachada cívica.