A “proletarização” do PCB: pequena crônica de um golpe burocrático (1930-1934)

Por Alvaro Bianchi, via Blog Junho.

No final dos anos 1920 o jovem Partido Comunista do Brasil (PCB) começava a romper seu isolamento político. O percurso não havia deixado de ser acidentado. A direção do partido era inexperiente, tinha agudos traços burocráticos e uma forte tendência ao alinhamento automático com a fração stalinista na Internacional Comunista. Ainda assim, os êxitos eram inegáveis. A criação do Bloco Operário e Camponês (BOC) havia lhe permitido apresentar-se abertamente no cenário político, eleger Octavio Brandão e Minervino de Oliveira como intendentes no Rio de Janeiro, então a capital do país, e recrutar para o partido um número crescente de trabalhadores.[1]


Mas em julho de 1928, o 6º Congresso da Internacional Comunista consolidou a vitória da fração stalinista e promoveu um giro sectário, abraçando a política de “classe contra classe”. Esse giro foi consolidado no 10º Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista, em julho de 1929, o qual anunciou que: “Em países onde existem fortes partidos socialdemocratas, o fascismo assume a forma particular de social-fascismo” (ECCI, 1965b, p. 44). A socialdemocracia passou, assim, a ser considerada “o principal suporte do capitalismo” (ECCI, 1965b, p. 47) e sua ala esquerda “o inimigo mais poderoso do comunismo no movimento operário e o principal obstáculo para o crescimento das atividades militantes nas massas de trabalhadores” (ECCI, 1965b, p. 48).[2]

Os efeitos dessa política começaram a se sentir imediatamente na América Latina. Em setembro de 1929 o jornal La Correspondencia Sudamericana publicou uma carta aberta na qual eram denunciados os “perigos de direita” que ameaçavam os comunistas latino-americanos e criticava a política do BOC. Essa carta foi o documento base para a convocação do III Pleno do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCB), em outubro. A reunião corroborou as críticas do Secretariado Sul Americano ao BOC,  aprovou o lançamento de uma candidatura própria nas eleições vindouras e votou a expulsão da célula de trabalhadores gráficos que atuava no jornal O Paíz, exclusão esta que marca no PCB “o predomínio da intolerância e o fim do debate democrático interno” (DEL ROIO, 1990, p. 138). A consequência organizativa do giro sectário foi a chamada “proletarização” dos partidos da Internacional Comunista.

Caça aos intelectuais

Para aplicar as nova as diretrizes na América Latina realizou-se em Buenos Aires, nos meses de abril e maio de 1930, uma reunião do Secretariado Sul Americano, chefiado pelo lituano August Guralsky, cujo sugestivo era Rústico. Participavam da reunião os brasileiros Astrojildo Pereira, Octavio Brandão, Plinio Mello e Aristides Lobo. O Secretariado rotulou a política eleitoral do PCB e o Bloco Operário e Camponês como direitista, acossando a direção dos comunistas brasileiros. Brandão, autor de Agrarismo e industrialismo (BRANDÃO, 2004 [1924]), primeira tentativa de análise marxista da formação social brasileira tornou-se o principal alvo do Secretariado. Em sua torturada autobiografia, Brandão contou: “Na Conferência de Buenos Aires, tentei resistir à linha política terrivelmente falsa e ‘esquerdista’ de Revolução Socialista imediata. Estava sozinho. Fui transformado e, bode expiatório de todas as culpas e ameaçado de expulsão” (BRANDÃO, 1978, p. 380).

Em todos os partidos da Internacional dirigentes experientes foram substituídos por operários, muitas vezes sem o preparo necessário para as novas funções e mais dóceis às determinações da direção moscovita. Na reunião de abril, Brandão fez uma autocrítica formal para não ser expulso, mas Astrojildo Pereira foi mais longe e incumbiu-se de implementar o giro político e organizativo imposto pelo Secretariado Sul Americano. Brandão não perdoou seu companheiro e mais tarde registrou: “na Conferência de Buenos Aires, Astrojildo Pereira  tratou de escapar às responsabilidades. Capitulou sem luta” e mais tarde “prestou-se a tudo” (BRANDÃO, 1978, p. 380).

Brandão não exagerava, a capitulação de Pereira foi registrada em uma carta autocrítica endereçada ao Secretariado na qual ele registrou sua adesão incondicional à nova política da Internacional:

“A delegação brasileira manifesta-se completamente de acordo com a linha política deste Plenun relativa à proletarização de nossos partidos e sua direção. Sobretudo para o PCB, que deve realizar uma reviravolta radical em toda a sua política e seus métodos de trabalho conforme com a linha da Resolução da IC. (…) Praticamente essa proletarização deverá efetuar-se por uma autocrítica severa dos erros e debilidades do partido decorrentes de uma linha política falsa, libertando-o definitivamente da ideologia pequeno-burguesa que o tem dominado até aqui  (…) e por uma consequente modificação na composição social do CC a ser renovado em próxima Conferência do partido, segundo um critério que assegure absoluta preponderância de proletários ligados diretamente às grandes empresas e provados pelos últimos combates de classe” (apud DEL ROIO, 1990, p. 145).

A aplicação das novas diretrizes foi imediata. Seguindo a orientação do Secretariado e do Comitê Executivo da Internacional Comunista, Astrojildo Pereira tomou a iniciativa na Comissão Central do partido realizada no dia 22 de junho de afastar Leôncio Basbaum, Fernando Lacerda, Paulo Lacerda e Octavio Brandão da direção do partido, substituindo-os por operários. Além de serem excluídos do bureau, Paulo Lacerda e Leôncio Basbaum foram afastados do centro da vida política do partido e enviados para São Paulo onde as forças dos comunistas eram muito reduzidas. Plinio Mello foi expulso sob a acusação de “trotskista” e “prestista”, juntamente com Josías Carneiro Leão e Luís de Barros. Em dezembro, Aristides Lobo desligou-se do partido.

Faltava, entretanto, substituir o próprio Pereira da secretaria-geral. Isso aconteceu em janeiro de 1931, quando Heitor Ferreira Lima, retornando de um estágio de três anos em Moscou, assumiu o comando do partido. Mas ele ficou pouco tempo no posto. Em junho de 1931, foi enviado para o Nordeste e afastado do trabalho cotidiano da direção, fato que contrariava o disposto nos estatutos do partido que impedia que o secretario do partido, regularmente eleito fosse removido do cargo sem justificativa plausível (LIMA, 1982, p. 148). Com o afastamento de Ferreira Lima, o último elo da antiga direção foi rompido e o posto de secretário-geral do partido foi assumido pelo médico Fernando de Lacerda, “maltrapilho, enfrentando a pobreza resolutamente, e trovejando contra o intelectualismo” (DULLES, 1977, p. 366). A desarticulação do antigo grupo dirigente, permitiu a Lacerda ocupar o lugar de “intelectual do antiintelectualismo, dando início ao período de predomínio do ‘obreirismo’” (DEL ROIO, 1990, p. 199).

Ao lado de Lacerda atuava de maneira cada vez mais aberta a sinistra Ines Guralski, cuja presença na direção de fato do PCB merece uma nota. Esposa de August Guralski ela havia chegado ao Brasil no início de 1931. Segundo conta Heitor Ferreira Lima em suas memórias, Ines falava “fluentemente o espanhol, era sectária e autoritária como seu marido, muito preocupada na luta contra o prestismo entre nós, mas sem nada conhecer de nossos assuntos nem de nosso passado” (LIMA, 1982, p. 146). Em sua luta contra os “desvios de direita” Ines utilizou de métodos sórdidos, revelando a correspondência pessoal de Astrojildo Pereira a outros dirigentes partidários para fazê-lo crer um covarde que teria nascido para “escrever sobre a revolução e não participar dela” (LIMA, 1982, p. 146).[3] Foi ela, também, juntamente com Lacerda, a responsável pelo afastamento de Ferreira Lima da secretaria-geral.

Nos meses subsequentes a direção do PCB foi submetida a uma dura repressão e sofreu seguidas baixas, motivadas por prisões, fugas e exílios. Com uma saúde muito debilitada, Lacerda não conseguia manter o funcionamento efetivo do Comitê Central. Leoncio Basbaum, que havia passado alguns meses em Montevideu, fugindo da polícia, relatou ao Secretariado Sul Americano a fragilidade da direção do PCB e seu sectarismo. Voltando ao Brasil, instalou-se em São Paulo e, juntamente com Augusto Besouchet, começou a reorganizar o comitê regional. Em janeiro de 1932 começaram a ser realizadas reuniões para reconstruir o Comitê Central. A companheira de Fernando, Ercina de Lacerda, foi convocada para as reuniões apesar da oposição de Basbaum, o qual argumentou que ela possuía menos de um ano de partido e não reunia as qualidades necessárias para o posto.

Argumentando que que estava “doente do coração”, Lacerda se recusou a permanecer na secretaria-geral do novo Comitê Central. Com sua renúncia abriu o caminho para a nomeação de José Villar, codinome Miguel, um operário com pouco mais de um ano nas fileiras do partido. Praticamente não ha registros na história do PCB a respeito de Villar. Aparentemente ficou poucos meses em seu posto e não cumpriu nenhum papel relevante na direção, a não ser servir como exemplo na luta contra os intelectuais do partido. Por detrás de Villar, Fernando de Lacerda, agora apoiado por sua esposa, continuava sua campanha.

A sessão plenária do CC do PCB, realizada em janeiro de 1932 aprofundou o curso obreirista do partido. Leôncio Basbaum, que na época era o secretário-geral da regional São Paulo opôs-se a Fernando de Lacerda sobre a questão sindical e sobre o papel dos intelectuais no PCB. Ele e sua esposa Ercina reagiram fortemente à oposição e propuseram que os intelectuais não tivessem direito a voto no partido. A proposta foi aprovada, mas a seguir, a esposa do médico argumentou que “ajudava o marido, costurava suas camisas e tinha um avô que fora camponês”. Com esses pretextos, Ercina foi promovida a operária e passou a votar nas reuniões (DULLES, 1977, p. 395).

Apesar das sucessivas depurações, os conflitos não cessaram. Ercina continuou ativa em sua luta contra os intelectuais do partido. Em suas memórias, Basbaum conta que ela passou a aliciar trabalhadores e leva-los para as reuniões do Comitê Central, argumentando que eles deveriam ter direito a voto porque o PCB era um “partido operário e democrático e todo operário tem direito a voto”. Basbaum reagiu levando seu próprio séquito para as reuniões e em pouco tempo estas se tornaram inviáveis. O CC votou, então, que apenas seus membros poderiam assistir as reuniões, resolução que teria levado Ercina às lagrimas e a acusar o dirigente da regional São Paulo de ser “contra as mulheres” e de ter um “conceito burguês sobre as mulheres e o comportamento feminino” (BASBAUM, 1978, p. 115-116).

Com o recrudescimento dos conflitos internos o Secretariado Sul Americano decidiu intervir mais uma vez. Enviando o argentino Gonzáles Alberdi, para “observar” a direção brasileira. O argentino desembarcou no Brasil provavelmente no início de abril de 1932 e rapidamente tomou posição contra o casal Lacerda. Depois do fracasso da ação do PCB no 1º de maio, a qual resultou na prisão de um grande número de militantes, Fernando de Lacerda foi acusado de ter ideias “puramente anarquistas” e de promover o “espontaneísmo” no partido (DULLES, 1977, p. 396-397). As críticas de Alberdi contra a direção dos Lacerda foram devastadoras. Fernando foi afastado do Politburo, Ercina designada para trabalhos burocráticos, como sempre desejou Basbaum, e o operário Caetano Machado designado novo secretário-geral do partido. O padeiro Caetano Machado, que gostava de fechar o punho e gritar “eu odeio os intelectuais” havia conquistado a dócil admiração dos fracos espíritos que se reuniam no Comitê Central, mas também não permaneceu muito tempo no cargo. Foi substituído pelo gráfico Duvitiliano Ramos na conferência nacional realizada em meados de 1932 e este, por sua vez, cedeu o lugar ao tecelão Domingos Brás, antes do final desse ano.

Com Machado, Ramos e Brás o obreirismo chegou a seu ápice no PCB. Mas foi Brás quem comandou o ataque contra o último resquício da presença dos intelectuais na direção do partido. Em novembro desse ano o jornal A Classe Operária publicou um longuíssimo artigo, assinado com o pseudônimo de Brado., no qual era a anunciado que o Pleno do Comitê Central havia votado, “por unanimidade” uma resolução expulsando Astrojildo Pereira do partido, acusado de “traidor e renegado da causa do proletariado”.[4] O artigo prosseguia afirmando que o ex-secretário-geral do partido havia se passado “inteiramente para o outro lado da