Por Alex Martins Moraes
Em vez de outorgar parcelas iguais para culturas múltiplas e diferenciadas, por meio das quais as pessoas são reconhecidas como parte da humanidade de maneira indireta através da mediação de identidades culturais e coletivas, a universalidade humana descobre-se no ponto de ruptura de um evento histórico. É nas descontinuidades da história quando as pessoas cujas culturas foram forçadas até um ponto de ruptura compreendem que sua existência pessoal não é idêntica às coletividades culturais e conseguem, assim, expressar uma humanidade que vai mais além dos limites culturais.
Susan Buck-Morss, A história universal
Antropologias da revolução
Igor Cherstich, Martin Holbraad e Nico Tassi propõem uma antropologia da revolução. Eles desenvolvem seu enfoque no livro intitulado Anthropologies of Revolution. Forging Time, People, and Worlds (University of California Press, 2020). Ali, definem a problemática fundamental de uma agenda de pesquisa que se propõe a compreender os “fenômenos revolucionários” em diferentes “contextos etnográficos” a partir de sua relação com diversas configurações sociais, cosmologias, mitologias, práticas rituais, noções de tempo, espaço, poder e personalidade. Situadas nestes “contextos”, as revoluções seriam encaradas não apenas como “fenômenos políticos”, mas também, e, sobretudo, como “processos de transformação social em grande escala que penetram profundamente no tecido da vida das pessoas […] inter[agindo] com formas e estruturas localizadas […]” (Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 4). Em vez de delimitar de antemão a natureza e o escopo das revoluções, os autores pretendem partir de uma compreensão “ampla”, “flexível” e “intuitiva” a seu respeito. Neste sentido, haveria revolução sempre e quando se verificam “grandes turbulências destinadas a uma mudança total da ordem política, o que frequentemente implica um conflito no qual […] a própria constituição do mundo é posta em jogo” (ibid.: 9). A “antropologia da revolução” ambiciona colocar em evidência, precisamente, a dimensão “cosmogônica” de seu objeto: que mundos as revoluções desafiam e que mundos elas pretendem criar? Tal questão precisa ser respondida localmente, partindo-se da premissa segundo a qual “revolução” constituiu uma categoria situada e, portanto, variável de acordo com as “circunstâncias sociais e culturais” vigentes em cada momento e lugar.
A antropologia da revolução encontra seus antecedentes teóricos numa linhagem disciplinar que decidiu analisar as políticas radicais sobre o pano de fundo do ethos tribal, do parentesco, do ritual e da religião. Ponto alto dessa estirpe, Victor Turner avaliou a Revolução Mexicana de 1810, protagonizada por Miguel Hidalgo sob o signo de Nossa Senhora de Guadalupe, como uma suspensão das estruturas coloniais vigentes através da instauração de uma liminaridade que encontrou na Virgem Morena a expressão simbólica da communitas[1] subjacente entre índios, mestiços e criollos (ibid.: 26). Depois do grito de independência, em meio a uma desordenada campanha militar, as forças de Hidalgo sofreram graves revezes diante das tropas da coroa espanhola. Como consequência, Hidalgo foi removido do comando militar e a insurgência perdeu seu caráter mítico, ao passo que as hierarquias coloniais eram restabelecidas na ante-sala de uma independência negociada com a metrópole. Nesse processo, Turner divisou a oscilação trágica entre liminaridade e estrutura, este “fado” incontornável “de todas as communitas espontâneas na história” (Turner, 1969: 132 apud Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 27).
Para os autores de Anthropologies of Revolution, a noção de liminaridade ajudaria a especificar as condições de possibilidade dos processos revolucionários em geral. A teoria do ritual seria, então, uma metalinguagem promissora para desenvolver o relato antropológico das revoluções, sempre e quando descentrarmos a “oscilação trágica” vaticinada por Turner e aceitarmos que a liminaridade pode engendrar um vislumbre poderoso de outro mundo; um vislumbre capaz de projetar sobre a estrutura social que deveria absorvê-lo a força disruptiva de quem outrora experimentou uma transcendência liminar e agora se dispõe a atualizá-la como força antagônica às instituições estabelecidas. Em termos teóricos e etnográficos, Maurice Bloch (1992) teria aberto caminho a esta reavaliação da communitas ao analisar como, por volta de 1863, os súditos merina de Madagascar, descontentes com a submissão dos reis aos invasores ingleses e franceses, declinavam de participar das performances reais de circuncisão. De modo desafiante, eles recusavam-se a deixar suas tarefas agrícolas e começavam a ser possuídos massivamente por espíritos ancestrais. Segundo a interpretação de Bloch, esta postura emulava a primeira etapa do ritual de circuncisão, na qual a morte do rei menino era evocada pelo ato de despi-lo dos seus atributos “femininos” e investi-lo de uma jovialidade masculina, tributária da linhagem de seus ancestrais agnáticos. Ato seguido, o ritual entrava numa segunda etapa em que a potência conquistada através da conexão com os ancestrais era realizada pela via de um retorno violento ao mundo, marcado pelo consumo da “vitalidade” de plantas, animais e mulheres e por eventuais campanhas militares contra grupos vizinhos. Bloch sugere que os súditos rebeldes replicaram a primeira etapa do ritual, mas não passaram à segunda fase, limitando-se a negar a autoridade dos reis e a afirmar a autoridade dos antepassados através da participação mediúnica em seu mundo atemporal. No entanto, segundo os autores de Anthropology of Revolution, nada, salvo sua eventual debilidade militar, impediria que os súditos merina dessem um passo mais e investissem violentamente contra os colonialistas franceses e ingleses, efetuando a culminação das cerimônias de circuncisão. Essa ativação revolucionária dos poderes violentos do ritual teria sido observada por David Lan (1985) entre as populações de língua shona da região de Dande, no norte do Zimbábue, durante a guerra de libertação nacional da década de 1970.
Lan acompanhou as relações tecidas entre os rebeldes do Exército de Libertação Nacional do Zimbábue (ZANLA) e os habitantes de Dande, cujos chefes costumavam amparar suas capacidades mágicas e seu controle territorial no beneplácito outorgado por reis ancestrais (mhondoro) que se manifestavam através de certos médiuns espirituais. A partir do final do século XIX, a administração colonial britânica restringiu o poder das chefaturas locais. Mais tarde, o governo da Rodésia reivindicou autoridade sobre a distribuição das terras, o que forçou a conversão dos shona em trabalhadores assalariados a serviço dos proprietários brancos. Neste contexto, os líderes tribais foram se tornando espécies de funcionários do governo, incumbidos de recolher impostos da população em troca de salários e outras regalias. Ditas circunstâncias determinaram uma drástica retração da autoridade e da legitimidade dos chefes, razão pela qual as pessoas comuns começaram a recorrer diretamente aos espíritos ancestrais – e aos seus respectivos mediadores – para operar diversas funções rituais consideradas de suma importância coletiva. Isto incrementou substancialmente a autoridade dos médiuns enquanto porta-vozes dos mhondoro que, por sua vez, mostravam grande aversão a tudo o que se relacionasse com o mundo branco. Estariam dadas, portanto, as condições para uma confluência dos shona – patrocinada pelos médiuns – com os rebeldes do ZANLA, que se propunham a expropriar os colonialistas e a redistribuir a terra entre os camponeses, fazendo cumprir, de certo modo, o mandato dos mhondoro. Ao serem vistos como cumpridores de uma ordem ancestral, os guerrilheiros conquistaram a simpatia dos shona. Estabeleceu-se, assim, uma aliança insólita na qual as apostas progressistas inerentes ao discurso socializante do ZANLA intersectaram-se com a voz de antigos reis para potencializar um movimento revolucionário duradouro com impacto decisivo no debilitamento do regime racista da Rodésia.
O livro de Cherstich, Holbraad e Tassi abunda em exemplos desse tipo. A Revolução Bolivariana é apresentada a partir da inscrição de Hugo Chávez no panteão dos próceres libertadores venerado no culto de María Lionza; o Proceso de Cambio boliviano é interrogado em referência à noção aimara de Pachakuti (Inversão do Mundo) que, em tensão com o relato “convencional” de uma emancipação progressiva, reivindica a potência atual de um submundo indígena destinado a prevalecer e a organizar a totalidade das relações sociais; o caso cubano é lido nos termos dos praticantes de religiões afro-caribenhas, para os quais a permanência da revolução depende de uma constante remessa de força vital (axé ou aché) assegurada por diferentes práticas sacrificiais; no Egito, o debate teológico sobre a predestinação divina do curso da história teria operado uma mediação entre o sagrado e o temporal, de modo a legitimar a participação das pessoas nos acontecimentos da Praça Tahrir, em 2011; na Líbia, a retomada do clamor autonômico tribal permitiu que o coronel Kadaffi conceitualizasse seu regime como um “governo das massas”, assente na celebração de constantes assembleias entre as diversas unidades políticas que povoavam o território nacional.
As experiências revolucionárias mais emblemáticas do século XX também são convocadas para exemplificar as potencialidades da antropologia promovida na obra que nos ocupa. Tanto na Rússia quanto na China, o impulso revolucionário teria se nutrido de tradições religiosas e metafísicas como o catolicismo ortodoxo e o confucianismo. O primeiro estaria explícito na importância atribuída por Lênin às práticas de “revelação”. Na ritualística ortodoxa, a revelação consiste em reconhecer os próprios pecados e em reiterar publicamente um compromisso de conversão religiosa. No leninismo, tal prática define a denúncia de certas condições de vida e de trabalho, conjugada à sinalização pública dos responsáveis pelo mal-estar popular, com vistas a promover a agitação das massas. Já o confucianismo encontraria prolongamentos na cosmogonia revolucionária chinesa sob o conceito de Homem Novo, produto de uma profunda reforma moral conduzida por indivíduos virtuosos, dispostos a converter-se num exemplo para as massas. O Homem Novo reapareceria no Ocidente como categoria central da Revolução Cubana, desta vez associado a uma lógica da redenção mediada pelo renascimento do indivíduo em uma nova fé ou verdade que guarda analogias com a salvação em Cristo.
As revoluções analisadas por Cherstich, Holbraad e Tassi definem noções de pessoa, de autoridade, de consciência e de inconsciência das quais emanariam critérios para a transformação do que se encara como “a realidade”. Segundo os autores, é em decorrência de seu movimento totalizante que as revoluções deveriam ser pensadas como práticas cosmogônicas “por direito próprio”, ainda que condicionadas à “ressignificação” das chamadas “noções convencionais” de revolução social (marxismos e anarquismos) e dos mitos e rituais localmente disponíveis. De fato, nossos autores acreditam que o mito e o ritual podem “produzir revoluções” ou, no mínimo, “inspirar ideias únicas de transformação revolucionária” (Cherstich, Holbraad e Tassi, 2020: 136). Listo, sumariamente, algumas constatações que, ao longo do livro, vão pautando essa linha argumentativa principal:
– “Separar o estudo das revoluções de um enfoque estreito nos acontecimentos e explorar etnograficamente suas permutações em diferentes aspectos da vida social é, talvez, uma consequência da qualidade holística e global da pesquisa etnográfica” (39).
– “[No Irã, na Rússia, na China e em Cuba] o projeto político de transformar as pessoas em sujeitos revolucionários alinhou-se de uma ou de outra forma com ideias locais sobre o que as pessoas são, como estão constituídas e como se relacionam com os demais, incluindo poderes transcendentes e entidades divinas” (90).
– “[com relação ao maoísmo contemporâneo na Índia] observamos como as concepções convencionais de revolução […] estão sendo reconfiguradas e alteradas por meio de categorias religiosas e políticas hindus” (146