Por Pedro Mauad*
No exato momento em que começo a escrever este texto (02 de Abril de 2020) o ‘coronavírus’ já infectou mais de um milhão de pessoas e matou mais de cinquenta mil em todo o mundo. São poucos os países em que não há nenhum caso confirmado, algo em torno de 30 de um total de 193 países.Assim como o capitalismo, esse vírus é, podemos dizer, global; e não devemos tratar por simples coincidência o que é, na verdade, expressão de como nossa economia de mercado globalizada é refletida na velocidade e alcance de contaminação do vírus corona. A seu modo, então, a COVID-19 já ocupa um lugar de destaque na história humana: essa doença fez o mundo parar, de norte a sul e de leste a oeste.
Alain Badiou em um texto ‘sobre a revolução russa de 1917’[1] realiza um recorte bastante curioso das revoluções na história humana. Ele pensa o tempo da espécie humana ao longo da História em comparação com o tempo do que entendemos por natureza e afirma o que todos sabemos: o tempo de existência humana é brevíssimo em comparação com o tempo de outras espécies. Sua conclusão, porém, não se detém aí, pois, com isso, ele defende, na contramão dos inúmeros diagnósticos sobre o apocalipse da sociedade e da espécie humana, que talvez toda a história até hoje não tenha sido mais que um começo, o preâmbulo de uma humanidade porvir. O curioso não é apenas certa ousadia em afirmar um futuro humanizado quando tudo que se impõe a nossa imaginação é o colapso, o esgarçamento do tecido social, o fim da espécie e etc., mas a ideia de que até agora só vivemos um primeiro período curtíssimo de nossa história. Impossível não lembrar aqui a famosa expressão de Frederic Jameson, ‘é mais fácil imaginar o fim do mundo do que do capitalismo’. Pois esse é o ponto de Badiou: trata-se, para ele, de inverter essa equação e afirmar, sem medo, de que é necessário e urgente imaginarmos o fim do capitalismo para não termos que presenciar o fim do mundo. Desse modo, Badiou traça uma conexão entre a Revolução Francesa e a Revolução Russa e atesta: as ideias de humanidade e sociedade presentes nas duas revoluções, mas principalmente na segunda, representam um marco na história humana e são o indício de uma nova sociedade em gestação que deixará para trás os, por assim dizer, paradigmas sociais vigentes desde uma outra revolução fundamental para nossa espécie, a saber, a Revolução Neolítica, que ocorreu entre 15 mil e 5 mil anos atŕas. Tais paradigmas sociais, que conhecemos bem, são: as opressões de gênero, classe e raça, as desigualdades econômicas que sustentam tais opressões e a forma cada vez mais privatista, individualizada e lucrativa de nos relacionarmos com o aquilo que nos é comum enquanto espécie e também com todo o restante da natureza. Daí as reivindicações basilares de ambas as revoluções: qualquer pessoa no mundo independente de gênero, raça e classe é um ser humano e, portanto, deve ser considerado um cidadão e ser tratado como tal (algo inédito até a revolução francesa); e na revolução comunista de 1917, a reivindicação de que aquilo que é comum a todos deve ser incessantemente pensado, organizado e objeto da ação coletiva. Esses seriam, para Badiou, os fundamentos de uma humanidade ainda por realizar-se, mas que já teria em germe, graças a essas revoluções, as ideias que permitiriam essa humanidade se efetivar. Uma observação importante a ser feita, dado as inúmeras polêmicas que envolvem ambas as revoluções: Badiou faz essas análises tendo por objeto os períodos revolucionários em suas efervescências políticas disruptivas, em seus momentos de profunda transformação da ordem social e das ideias que movem os sujeitos revolucionários, deixando de lado as sedimentações políticas posteriores que foram atravessadas por diferentes conflitos e contradições que acabaram se distanciando e neutralizando a radicalidade dessas ideias. É como se o tempo de realização das ideias obedecesse a uma ordem temporal diferente daquela em que existem e vivem algumas gerações de indivíduos. Para o espanto ou desespero de alguns, o platonismo de Badiou é muito mais radical e revolucionário do que pensam seus incansáveis mas já impotentes críticos.
Com isso em vista, podemos nos colocar a seguinte questão: o que podemos aprender com a atual pandemia do vírus corona?
Primeiro, por mais que sua nocividade não seja tão potente quanto sua capacidade de contaminação, essa pandemia já deixou claro, assim como outras catástrofes naturais, a fragilidade não só dos humanos como um todo diante do que chamamos convencionalmente de ‘natureza’, mas também do sistema político-econômico em que vivemos, as democracias capitalistas. Maior do que a certeza de que em algum momento essa pandemia acabará, é a consciência da recessão e crise econômica que nos aguarda (o que sem dúvidas trará mais mortes e convulsões sociais). Além disso, o que chamamos de natureza não pode ser compreendida de modo separado das nossas formas de produção e consumo[2]. Há uma dialética intrínseca entre esses dois polos: o capital, como disse David Harvey[3], ‘modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, e o faz em um contexto de conseqüências não intencionais (como as mudanças climáticas) e no contexto de forças evolutivas autônomas e independentes que estão remodelando perpetuamente as condições ambientais.’ Assim, o desastre nunca é exclusivamente natural, e sim relacionado dialeticamente com as estruturas sociais de organização e reprodução da vida.
Segundo, as respostas que nosso sistema é capaz de dar para uma crise endêmica dessa magnitude, estão completamente aquém do necessário. O consenso (neo)liberal sobre a economia e fiador de toda ideia de futuro se mostrou completamente impotente para lidar com problemas desse porte, sendo obrigado a recorrer aquilo que nos últimos 50 anos ele se dedicou a criticar e destruir: a intervenção político-estatal na sociedade e na economia e a importância dos serviços públicos. Basta olharmos para os números de infectados e mortes nos países asiáticos em comparação com os países europeus e os EUA. Os países em que o Estado é mais atuante na economia e, consequentemente, também na sociedade de um modo geral, estão conseguindo lidar com muito mais eficácia que os países desenvolvidos do ocidente, onde até mesmo itens básicos de proteção estão em falta para a população e, inclusive, para as equipes médicas. O preço das máscaras e do álcool em gel regulado pelo mercado subiu para níveis obscenos depois que parte da população em pânico começou a comprar todo o estoque desses produtos. Enquanto isso, China e Cuba estão enviando ajuda médica e equipamentos para os países mais afetados pelo vírus.
Terceiro, e como argumentou muito bem Slavoj Zizek[4], no atual estágio das sociedades humanas, cada vez mais os problemas são de ordem global, não mais local ou regional, tornando cada vez mais obsoleta e impraticável ações que partam de governos nacionais isolados. Um golpe não só no liberalismo econômico com suas medidas de austeridade, mas também nos governos neofascistas de extrema-direita que concebem a nação como um bem acima de tudo e de todos. Uma ação verdadeiramente eficaz para os atuais problemas do mundo, como argumentou Zizek, deve abranger a mobilização local de pessoas dentro e fora do controle estatal, bem como coordenação e colaboração internacionais fortes e eficientes entre os órgãos públicos. Ao contrário disso, o que vemos são países fechando suas fronteiras, até mesmo na união européia, acreditando que com isso, cada um por si conseguirá resolver sozinho os problemas de uma epidemia global. É bem provável que isso seja usado para que futuramente cada líder use dos esforços realizados durante essa crise para se autopromover individualmente enquanto líder e coletivamente enquanto nação, escamoteando que as medidas de cooperação internacionais entre Estados e povos teria uma eficácia muito maior.
Quarto, não podemos encarar essa pandemia sob o mito de que os vírus são democráticos, que ricos e pobres serão igualmente vítimas da COVID-19. Certamente diferentes classes sociais serão infectadas, mas quem irá sobreviver com condições adequadas de tratamento serão aqueles que tiverem dinheiro para pagar. Como bem observado por Harvey, a ‘força de trabalho que deve cuidar do número crescente de doentes é altamente seccionada por gênero, raça e etnia na maior parte do mundo. Nisso reflete as forças de trabalho baseadas em classe encontradas em, por exemplo, aeroportos e outros setores logísticos. Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e tem o peso de ser a força de trabalho que está com o maior risco de contrair o vírus por meio de seus empregos ou de ser demitida sem ter garantias por causa da contenção econômica imposta pelo vírus.’ Sem contar nos inúmeros trabalhadores informais que não poderão fazer quarentena sob o risco de ao deixarem de trabalhar para não contrair o vírus, morrerem de fome junto com suas famílias. O vírus até pode ser democrático, mas a possibilidade de viver ou morrer ao contraí-lo reproduz perfeitamente as desigualdades da sociedade capitalista.
Tudo isso nos mostra que nosso presente demanda, mais do que qualquer outro momento da história, as ideias fundamentais das duas revoluções que para Badiou anunciaram o futuro da humanidade. Portanto, podemos dizer que em 2020 a forma neoliberal de globalização não regulamentada e de livre mercado, com sua tendência a crises e pandemias, começou a morrer. Cabe não simplesmente à nós, indivíduos singulares, mas às ideias que teremos enquanto coletivo humano para responder e enfrentar essa crise, a imaginação e efetivação de uma outra forma social de produção e reprodução que reconheça a interdependência social e a primazia da ação coletiva.
[1] Alain Badiou ‘Petrogrado, Xangai: as duas revoluções do século XX’, págs.33 a 50.
[2] Para uma rica reflexão sobre isso, ver o texto do coletivo anti-capitalista chinês ‘Chuang’ em http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-o-mundo-natural/
[3] https://jacobin.com.br/2020/03/politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/
[4] https://tradutoresproletarios.wordpress.com/2020/03/17/zizek-monitorar-e-punir-sim-por-favor/?fbclid=IwAR0IoiFI5x8xRRqmU8OL3hM-nTS1pBsY-SKJecZUbd-LIWPk6QM-0foKLDs
*Pedro Mauad é mestrando em filosofia pela FFLCH.