Por Ramon Oliveira da Silva Leite[1] e Wellington Lima Amorim[2]
O presente artigo busca interpretar as razões pelas quais o filósofo esloveno Slavoj Žižek, em seu resgate da filosofia hegeliana, utiliza o conceito de retroatividade como ponto central de sua reinterpretação de Hegel. Para tal, é preciso questionar se no próprio Hegel há espaço para justificar a importância da retroatividade como sendo o cerne de sua dialética. A reflexividade como retroação abriria o caminho para uma compreensão peculiar da tese hegeliana da substância como sujeito, desfazendo certos lugares comuns da filosofia de Hegel – a relação entre necessidade e contingência, a especificidade da reconciliação dialética e o momento do Saber Absoluto.
A EXPOSIÇÃO DO ABSOLUTO
O projeto filosófico de Hegel de exposição do Absoluto teve como um dos grandes objetivos afastar a filosofia da função irremediavelmente negativa relegada por Kant. A filosofia de Hegel não visa simplesmente ser um discurso sobre as condições de possibilidade do objeto, mas um conhecimento efetivo sobre este.[3] Isto significa não um conhecimento que opere apenas com representações, mas um conhecimento que seja a exposição da verdade efetiva do objeto. Mas como Hegel lida com tal pretensão? Para prosseguirmos com nossa questão, recorramos ao prefácio da Fenomenologia do Espírito:
Segundo minha concepção – que só deve ser justificada pela apresentação do próprio sistema -, tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância, ma também, precisamente, como sujeito. [4]
O famoso trecho da Fenomenologia parece expressar diretamente uma noção mais complexa do Absoluto do que aquela concepção descrita no início da sessão sobre a efetividade na Ciência da Lógica[5] – um abismo, ou a “noite em que todos os gatos são pardos”. [6] Aqui o Absoluto não seria simplesmente substância, mas ao mesmo tempo sujeito. A explicação desta célebre fórmula hegeliana se encontra no parágrafo seguinte:
Aliás, a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só à medida que é o movimento do pôr-se-a-si- mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se-outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim. [7]
A relação aqui apresentada entre substância e sujeito acontece de um modo específico, ou de um modo mais concreto. O ponto fundamental é que esta efetividade que constitui a identidade especulativa substância/sujeito, só é verdadeira “à medida que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo”. Ora, se o projeto filosófico de Hegel envolve a busca por exprimir a verdade efetiva dos objetos, ou em outras palavras, a tentativa de expor o objeto por ele mesmo, implica que devemos lidar com um tipo de objeto que se permita essa exposição – um objeto que se constitua a si mesmo. E qual tipo de objeto pode expor a si mesmo? Só pode ser um objeto que é ao mesmo tempo um sujeito. [8] Trata-se, para Hegel, não só a tarefa de combater o esvaziamento da filosofia promovido por Kant, mas também afastar a noção schellingiana de um Absoluto apreendido via intuição, ou de forma imediata, sem a mediação do Conceito. [9] Portanto, a noção chave apresentada na citação anterior é a de reflexão, onde só à medida que essa substância tem a capacidade de voltar-se para si mesma, se constitui o “verdadeiro”. Porém cabe ressaltar que esse “voltar-se sobre si mesma” é o que Hegel chama de negação, no caso, a autorrelativa. Mas o que exatamente isso implica?
Basicamente, tal problemática envolve uma noção bastante peculiar da chamada “reconciliação dialética”, que é requerida diante do problema da cisão entre o sujeito e o seu mundo instaurado pela modernidade. [10] A ideia de que haveria uma positividade primordial de fundo, uma unidade originária que seria recuperada no final desse processo de negação, nos parece equivocada. Exatamente porque a existência da substância/sujeito só se dá pelo movimento de negação autorrelativa, na verdade, ela é esse próprio movimento de negação. Aqui o problema de uma origem se esvazia, já que não há nada anterior a esse movimento no qual a substância “como sujeito é negatividade pura e simples”. Daí a necessidade um olhar mais atento para o status da reconciliação dialética. E a noção chave está justamente no atributo reflexivo dessa substância/sujeito, do qual Slavoj Žižek traduzirá o termo por retroatividade. Este é o recurso que permite ao filósofo esloveno a estruturação de um programa teórico de resgate da filosofia hegeliana na qual se tenta evitar uma certa noção de reconciliação forçada. Mas quais os motivos que levam essa escolha teórica de apresentar a reflexão como retroatividade? Façamos uma digressão.
MEDITAÇÕES SOBRE RUÍNAS
Em suas Lições sobre a Filosofia da História, Hegel expõe duas importantes questões de seu sistema, a saber, sua concepção de memória e História. “Os Persas são o primeiro povo histórico, porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu.” [11] Hegel aqui relaciona o ato de desaparecer e deixar para atrás ruínas ao advento da História. As sociedades históricas seriam aquelas que deixariam suas ruínas para trás e onde tal ato de desaparecimento, de alguma maneira, não seria simplesmente sinônimo de uma pura decadência, mas evidência de um processo profundo de transformação.[12] Este processo de desaparecimento como evidência do surgimento de algo novo[13], para Hegel, é o surgimento da própria da História. Paulo Arantes usa a expressão “meditação sobre ruínas”[14] para se referir a este processo.
Em nossa língua, a palavra história une o lado subjetivo ao lado objetivo e significa tanto a narrativa histórica quanto o acontecimento, os atos e os fatos. Esta união de duas significações não deve ser considerada como uma simples contingência externa. É preciso pensar que a narrativa histórica aparece ao mesmo tempo que os atos e os acontecimentos históricos propriamente ditos: é um fundamento interno comum que os faz surgir simultaneamente.[15]
Ou seja, quando o registro escrito do passado passa a ser um problema no interior das sociedades, quando o passado aparece dotado de objetividade ao mesmo tempo que uma subjetividade procura interpretá-la, adentra-se no terreno da História. Essa conjunção não é simplesmente acidental. Paulo Arantes nos mostra que o surgimento da forma estética da prosa, coincide com esse processo e é parte central do mesmo. Ele sugere que a prosa seria “o reconhecimento, anterior a toda vontade de saber, da necessidade de demorar no campo do não-sentido circunstancial para poder captar o sentido, de cuidar do acúmulo aleatório dos fatos insignificantes, para deixar amadurecer e vir à luz sua significação”.[16] Ao contrário da poesia que se relaciona mais com a interpretação e a criação, a prosa tem como meta a objetividade.
Portanto, a forma prosaica, ao se furtar das interpretações arbitrárias dos fatos, ao procurar tratar dos acontecimentos contingentes como eles aparecem, transforma-se em tomada de consciência, “tornando os materiais da experiência” em “pontos de partida do saber e do querer.”[17] A prosa da História nesse ponto, proporciona a Erinnerung (rememoração), a libertação da predominância de um conteúdo puramente determinado pela imaginação, e assim torna-se uma “comemoração pensante”.[18] A História concebida como tomada de consciência, explicita então esse processo “que conduz o indeterminado ao determinado, da imediação à distância objetivante; essa operação constitutiva é, portanto, inseparável da atividade de rememoração.” [19] A meditação sobre as ruínas explicitaria essa função que Hegel atribui à História. Aqui as ruínas são tratadas como uma alegoria da degradação temporal, da constante supressão das coisas pela História.
Tudo parece condenado ao desaparecimento, nada permanece. Todos os viajantes experimentaram essa melancolia. Quem viu as ruínas de Cartago, de Palmira, de Persépolis, de Roma, sem refletir sobre a caducidade dos impérios e dos homens, sem cobrir-se de luto por essa vida passada poderosa e rica? Não se trata, como diante do túmulo dos seres que nos foram caros, de um luto que se associa às perdas pessoais e à caducidade dos fins particulares: trata-se de um luto desinteressado diante de uma vida humana brilhante e de civilidade.[20]
Hegel continua acrescentando que tal contemplação das ruínas provocaria uma dor profunda, fruto de uma melancolia que insiste em transformar o que é perecível numa determinação imperecível. Ou seja, a melancolia como um apego a objetos irremediavelmente perdidos. Nisso, a dialética presente nesse processo de luto produz também a crítica do apego melancólico ao passado. No vocabulário hegeliano, o passado que aparecia como apenas “em-si”, como um “puro ser”, não é capaz de dizer nada sem a atividade do sujeito. Nesse ponto, este passado como puramente objetivo tem de ser mediado pela elaboração conceitual. Através dessa meditação sobre as ruínas é possível transformar o trabalho de luto em um trabalho do conceito. Ou seja, quando se abandona a melancolia provocada pela identificação com o que foi perdido, o luto torna-se “desinteressado”, abrindo espaço para uma elaboração racional.
O indivíduo, cuja substância é o espírito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta a adquirir uma ciência superior, percorre os conhecimentos preparatórios que há muito tem dentro de si, para fazer seu conteúdo presente; evoca de novo sua rememoração, sem no entanto ter ali seu interesse ou demorar-se neles.[21]
O trabalho do conceito nos libera assim da fixação melancólica do passado, abrindo novas possibilidades, proporcionando outros investimentos.[22]
[…] o poder do tempo, que se desenha desde o início como perda e ruína, deve ser subordinado ao poder do Conceito, onde a perda é metamorfoseada em ganho, onde o que desaparece dá testemunho de sua pertinência à História.[23]
Ora, o que nessa atividade de avaliar o que desapareceu é pertinente ou não à História, é o aspecto crítico contido na atividade de rememoração. Através dessa atividade crítica e produtiva de uma subjetividade que elabora o campo da experiência, um campo que aparece como imediatamente objetivo, mas que se esvai constantemente, é que Hegel pôde então localizar um espaço para novas possibilidades.
PROGRESSO E TEMPORALIDADE
Ao tratar do tema da passagem do tempo tanto como uma experiência vivida e interpretada subjetivamente, quanto uma experiência objetiva dotada de lógica interna, Hegel pôde constituir uma noção bastante peculiar do conceito de História. O desaparecimento dos povos evidenciado pelas ruínas, que marca o início da História, é um processo de progressão. Porém, quando pensamos no termo “progresso” na filosofia, normalmente somos remetidos à ideia de uma teleologia, de estágios que se seguem uns aos outros rumo à uma perfectibilidade suposta. No entanto, levando em conta o desaparecimento evidenciado pelas ruínas, ou seja, o conceito de História para Hegel, este tipo de progresso não seria uma espécie de destinação, mas uma forma de pensar a origem, ou seja, aquilo que pressupõe uma impossibilidade de permanecer.[24] Dito de outra forma, ao nos defrontarmos com o problema da passagem do tempo, a origem de um processo histórico é aquilo que não pôde manter-se, aquilo que, exatamente por ser processo, teve de se desdobrar em “figuras” diferentes de como apareceu no início. O progresso seria então a tomada de consciência de um tipo temporalidade atravessado pelo desaparecimento e não mais por uma repetição silenciosa.[25] Vladimir Safatle comenta:
[…] este desaparecimento não é a afirmação sem falhas da necessidade de uma superação em direção a perfectibilidade. Na verdade, há uma pulsação contínua de desaparecimento no interior da história. Esta pulsação contínua é, de uma certa forma, o próprio telos da história. Assim, ela realiza sua finalidade quando este movimento ganha perenidade, quando ele não é mais vivenciado como perda irreparável, mas quando a desaparição, paradoxalmente, nos abre para uma nova forma de presença, liberada do paradigma da presença das coisas no espaço.[26]
Por isso Hegel dirá que “a duração, enquanto tal, não é algo superior ao desaparecimento. Os montes não valem mais do que a rosa, que, todavia, fenece.”[27] Essa inquietude é característica de uma temporalidade bastante peculiar. É justamente essa inquietude do tempo que o processo histórico instaura, que abre o espaço necessário à elaboração conceitual, à atividade da rememoração. Mas o que exatamente é essa temporalidade que o processo histórico inaugura? Do que se trata, em última instância, este processo histórico? Sim, para Hegel, o advento da História, com “H” maiúsculo, trata-se de uma História Universal, ou seja, a história da realidade como um todo. Mas se esta História é Universal, esta não marcaria a instauração de um regime único de tempo, de uma única destinação à toda a sociedade humana? Já vimos que este progresso é intimamente ligado ao desaparecimento, e não à uma sucessão de estágios rumo à perfeição. Por conseguinte, Hegel dirá em suas Lições sobre a Filosofia da História:
A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado, permanecem simultâneos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua profundidade presente.[28]
Ou seja, se lermos ao pé da letra a tese hegeliana a respeito da existência de uma “História Universal”, como um caminho único que toda a humanidade deve percorrer, perderemos de vista a dimensão complexa do tempo inscrita no presente. O círculo de degraus hegeliano explicita justamente essa complexidade na qual os momentos passados, que estão atrás, também fazem parte do presente, estão vivos. A unidade que esses momentos aparentemente desconexos ganham, é uma unidade constantemente colocada em xeque. Safatle comenta que o espaço-tempo que a “História Universal” põe não é o de um sistema fechado, sempre governado por uma necessidade oculta, mas “um sistema aberto a um desequilíbrio periódico, onde acontecimentos contingentes, inicialmente indeterminados, reconfiguram o sentido dos demais anteriores”.[29] Ela é atravessada por um processo dialético que está sempre reconfigurando o sentido desses momentos.
Notamos assim que a temporalidade que o advento da História em Hegel instaura, é a noção de uma “contemporaneidade alargada”, de um presente que está sempre “colocando o passado em movimento”, como se o passado ainda estivesse acontecendo no próprio tempo presente. É por isso que a figura do círculo de degraus não nos alude à um fechamento, mas apenas uma forma de ilustrar como essa multiplicidade de experiências temporais não são indiferentes umas às outras. Explicita um processo em que o mundo vive uma mudança na forma de experienciar o tempo, na qual tal multiplicidade de temporalidades é posta em relação.
Mais uma vez, remetendo a nosso ponto de partida, essa concepção peculiar de temporalidade presente na questão da memória, de uma atividade de rememoração que “coloca o passado em movimento”, nos reafirma uma concepção não objetivista. O passado que imediatamente aparece como estático, ao ser trabalhado pela atividade de rememoração, captando a complexidade característica do presente, é capaz de fazer emergir diversos acontecimentos que, só de uma perspectiva linear de tempo, pareciam passados.
Mas como exatamente esse processo dialético impede que a multiplicidade de experiências temporais seja reduzida a um único plano geral, a um círculo fechado? O resultado desse processo não revela sempre uma necessidade subjacente inexorável governando o curso dos acontecimentos? Como exatamente a “comemoração pensante”, a atividade de rememoração, consegue abrir novas possibilidades nesse contexto? A visão padrão da dialética hegeliana não é a de um discurso filosófico que aprisiona todo conteúdo particular, todos os acontecimentos contingentes a um único resultado?
A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO COMO REMEMORAÇÃO
A Fenomenologia do Espírito trata basicamente de uma polêmica com a teoria do conhecimento, e em suma, do problema da verdade, do status dessa verdade – objetiva ou subjetiva? Hegel busca demonstrar a insustentabilidade de uma espécie de saber a priori que garanta a veracidade de nosso conhecimento e que garanta a coesão do próprio campo experiência.
Segundo uma representação natural, a filosofia, antes de abordar a Coisa mesma – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade, – necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento com que se domina o absoluto, ou um meio através do qual o absoluto é contemplado. […] se o conhecer é o instrumento[…], logo se suspeita que a aplicação de um instrumento não deixe a Coisa tal como é para si, mas com ele traga conformação e alteração. Ou então o conhecimento não é instrumento de nossa atividade, mas de certa maneira um meio passivo, através do qual a luz da verdade chega até nós; nesse caso também não recebemos a verdade como é em si, mas como é nesse meio e através dele.[30]
Hegel aqui critica um saber que pressupõe sempre uma distância entre ele mesmo e a verdade, como se entre esses polos passasse uma “clara linha divisória”. Ao postular essa distância, ao tratar o conhecimento, ou como um instrumento, ou como um meio, a verdade, aquilo que é em-si, é modificado. Por isso, a teoria do conhecimento quando busca o “modo-de-atuação” desse instrumento ou meio, para assim “descontar” essa alteração feita na Coisa, “volta à estaca zero” – a distância entre esse saber e a verdade continua a mesma. Ou seja, na visão de Hegel, a teoria do conhecimento não auxilia, mas impede a obtenção da verdade. Em contraste, para Hegel, “o conhecer não é o desvio do raio: é o próprio raio do qual a verdade nos toca.” Portanto, o caminho para o conhecimento já é conhecimento. Sobre essa questão, Slavoj Zizek comenta:
[…] a coincidência hegeliana entre o movimento rumo à verdade e a verdade em si significa, […] que já houve um contato com a verdade: a própria verdade deve mudar com a mudança do saber, o que equivale a dizer que, quando o saber não corresponde mais à verdade, devemos não apenas ajustar adequadamente o saber, mas sim ajustar os dois polos – a insuficiência do saber, a sua falta em relação à verdade, indica radicalmente uma falta, uma não consumação no cerne da própria verdade.[31]
Hegel mostra, na introdução da Fenomenologia, que a teoria do conhecimento, ao querer excluir os erros no processo de constituição de seu saber, erra totalmente o alvo. Esse “medo de errar”, característico do método, então se transforma em medo da própria verdade.[32] Para Hegel, ao contrário, o caminho do conhecer, o caminho da própria filosofia, é operar a crítica desse saber que tem como base uma “representação natural”. O saber que opera por representações, é justamente esse que delimita uma linha entre o nosso saber e a verdade. Contra a teoria do conhecimento, e em especial, uma concepção de verdade como objetividade pura e estática, Hegel opõe a dialética, que é este caminho no qual a consciência “se desacostuma” de suas “representações naturais”, daquilo que nos aparece imediatamente como dotado de validade. No processo dialético, há uma experiência feita sobre o nosso conhecer. Esse caminho do conhecimento, ao qual Hegel designa na Fenomenologia por “caminho do desespero”, é uma espécie de sistema de erros da consciência.[33] Num primeiro momento, a consciência, partindo de uma representação natural, postula um dado saber. Ao aplicar esse conhecimento na realidade, percebe que é apenas um mero conceito, e, portanto, abstrato, carente de determinação. Porém, esse erro é acolhido, e o “nada” que restou dessa experiência se mostra não como “puro nada”, mas como um “nada determinado”, uma ausência resultante da desconstituição daquela figura do saber e, portanto, é uma ausência que possui um conteúdo. Esse processo de “negação determinada”, de mediação do conceito com a realidade, processo no qual a verdade aparece como perda de um objeto anteriormente posto, é o que chamamos de processo dialético. Esse movimento de realização do conceito como perda, como destruição de uma identidade previamente estabelecida, é justamente o que abre espaço para novos ganhos. É o processo de luto do qual falávamos – uma meditação sobre as “ruínas da experiência.” A consciência que se debruça sobre a experiência que vive, que medita sobre suas ruínas, assim “submete o poder do tempo ao poder do conceito”, pode se livrar da melancolia dessa perda e se habilita à novas possibilidades.
O essencial aqui é que este ganho só pode ser postulado a posteriori, depois do ocorrido, depois da própria experiência. A filosofia como a “coruja de minerva que só alça voo ao entardecer”[34], indica que, como Slavoj Žižek colocou, “para Hegel, a análise dialética é sempre a análise de eventos passados.”[35] A peculiaridade deste processo reside justamente no papel produtivo que a memória exerce. Safatle nos diz que a “experiência da consciência cujo trajeto é descrito pela fenomenologia é, a princípio, uma certa forma de rememoração do processo de formação em direção à ciência”.[36] A sugestão que gostaríamos de colocar é o que Hegel chama de Aufhebung (suprassunção), essa capacidade de “negar” e ao mesmo tempo “conservar” em outro nível as diversas figuras de saber desfeitas pela consciência, é uma operação de rememoração. Se a operação dialética é “sempre a análise de eventos passados”, então só uma atividade de rememoração é capaz de percorrer cada figura, cada erro, e reformular o que aconteceu, trazer à luz sua significação. É particularmente claro que, na Fenomenologia, todas as passagens de uma figura da consciência à outra são operadas por uma atividade de rememoração que constantemente reconfigura o sentido dos acontecimentos. A consciência imersa na experiência busca conhecer o mundo. Movida por suas representações naturais, esta postula um saber, um conceito que é uma identidade estabelecida. Esta consciência então enuncia esse saber. Porém, a própria consciência “estorva a inércia” dessa enunciação[37], dessa identidade. Perturba a quietude de seu saber, e olha para trás, rememora o que aconteceu. Ao rememorar, a consciência não apenas descreve, mas elabora o ocorrido e vê que a figura do saber que tinha postulado se esvaneceu, porém, abrindo espaço para outra figura. No primeiro capítulo da Fenomenologia, por exemplo, essa consciência imersa na experiência rememora e torna-se capaz de rever o “isto” que era seu conceito da Coisa, como abstrato e carente de determinação. Percebe também que não é mais o “isto” que expressa a singularidade que quis apreender, mas o “aqui” e o “agora”, que por sua vez se desfaz numa multidão infinita de momentos. A “casa” que a consciência apontava como sendo o “aqui”, e o “meio-dia” como o agora, se esvaem, pois, a consciência rememora e percebe que estes não podem permanecer como eram no momento de sua enunciação.[38]
Tais soluções para os impasses postos pela experiência só podem ser vislumbrados quando a memória entra em cena e interioriza profundamente o que se passou operando uma releitura do processo. Como já vimos, Hegel insiste que tal rememoração não é simplesmente uma subjetivação de algo previamente dado, como possa talvez indicar as recorrentes expressões: “já-pensado”, “já-sempre” posto, como se a consciência descobrisse uma verdade anterior a sua própria atividade, anterior a experiência. Antes, a Erinnerung (rememoração) envolve um profundo sentido conceitual, é uma “comemoração pensante” no qual ficam evidentes os resultados da ação da temporalidade concreta, da qual já abordamos. Portanto, aqui, o sujeito não é passivo, mas ativo diante da objetividade, pondo-a em movimento. Certamente, este processo dialético não é uma atividade na qual o sujeito se posiciona de maneira aleatória. O momento em que este se põe diante do imediatamente dado, ou seja, o momento da objetividade, é um momento necessário. Mas certamente esta necessidade não permanece estática, ou em outras palavras, não exclui a sua relação com a contingência.
NECESSIDADE E CONTINGÊNCIA NO INTERIOR DA DIALÉTICA
Hegel caracteriza a contingência como “necessidade exterior”[39], um acontecimento que parece não ter sua causa em si mesmo. No polo oposto, a necessidade, seria interior, imanente. Porém, como lembra Safatle, essa exterioridade não seria mero erro, mas é acolhida como momento necessário, “resultando do fato da imanência não estar imediatamente posta”, mas de ser “construída retroativamente, a partir de acontecimentos contingentes”.[40] Žižek, em Menos que Nada, nos dá uma explicação dessa lógica:
[..] quando Hegel descreve o progresso da aparência contingente “exterior” para a essência necessária “interior”, ou seja, a “autointeriorização” da aparência por meio da autorreflexão, ele não está descrevendo a descoberta de uma Essência [verdade[41]] interior preexistente, algo que já estava aí (isso seria justamente uma “reificação” da Essência), mas um processo “performativo” de construir (formar) o que é “descoberto”. Como o próprio Hegel afirma na Lógica, no processo da reflexão o próprio “retorno” ao Fundamento oculto ou perdido gera aquilo para que se retorna. Portanto, não é só a necessidade interior que é a unidade do si e a contingência como seu oposto, pondo necessariamente a contingência como seu momento; a abrangente unidade de si é também a contingência e seu oposto, a necessidade. Em outras palavras, o processo pelo qual a necessidade surge da necessidade é um processo contingente.[42]
Para Hegel, a definição de Conceito é a unidade que ele estabelece com o objeto. Essa unidade, no entanto, contém tanto identidade como diferença. O conceito de alguma coisa não pode ser completamente igual à própria coisa, pois assim, deixaria de ser conceito. A unidade que o conceito estabelece, portanto, é uma unidade atravessada radicalmente por uma diferença, uma diferença irredutível no cerne da necessidade conceitual. Se lembrarmos da fórmula elementar do conceito, “C=C+O” (o conceito é a unidade de si mesmo com o objeto, ou, a identidade entre a identidade e a não-identidade), onde “C” é o espaço da necessidade, e “O”, o mundo dos objetos, da experiência, o espaço do que é contingente, podemos entender melhor essa inversão proposta. A passagem citada anteriormente diz respeito ao movimento do conceito em sua busca pela verdade, que de início aparece como uma essência, (em-si). A inversão que Žižek propõe dessa lógica do conceito, é que, a necessidade conceitual em Hegel é sempre “manchada” por uma contingência. Assim, como coloca Žižek, “a necessidade não se configura como princípio positivo que sempre supera a contingência por meio de um descortinamento de uma essência pré-existente à nossa atividade”. Antes, “no processo dialético, a coisa torna-se “o que foi sempre-já”, ou seja, o conceito de uma coisa não é dado com antecedência: ela surge, forma-se em um processo contingente aberto – a essência [a verdade] eternamente passada é um resultado retroativo do processo dialético.”[43] Não é por isso que Hegel é tão enfático no final do terceiro capítulo Fenomenologia ao dizer que “por trás da cortina dos fenômenos, só existe o que colocamos lá”?[44]
Para Hegel, o “processo objetivo” do mundo, sempre inclui a atividade da subjetividade. A subjetividade é então, interna à objetividade, é sua lacuna constitutiva. Por esse motivo é que Hegel insiste inúmeras vezes no prefácio da Fenomenologia, que o verdadeiro deve ser concebido como “não apenas como substância, mas também como sujeito”; que “a substância é essencialmente sujeito”, que “o sujeito é a substância verdadeira”. É nessa lacuna da subjetividade, inscrita na objetividade, que reside o espaço da liberdade, da abertura de novas possibilidades no processo histórico. Porém, o que exatamente a Erinnerung rememora? Vimos no tópico anterior que esse saber efetivo só se constitui pela desconstituição das figuras do próprio saber, um saber com base em representações naturais. Se no decorrer do processo dialético, este só avança quando desconstitui estas representações, podemos afirmar que o que a Erinnerung internaliza não obedece à forma da representação de um sujeito. “O saber, ao contrário, está dirigido contra a representação assim constituída, contra esse ser-bem-conhecido” diz a Fenomenologia. E acrescenta: “o bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido”.[45] Certamente a representação não é a própria coisa, está aonde a coisa não está. Por conseguinte, recorramos ao prefácio da Fenomenologia:
A morte […] é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima.[…] Porém não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser.[46]
A morte aponta justamente para essa experiência que não se submete aos contornos auto-idênticos da representação. No processo dialético, o conceito, que busca se efetivar na realidade, produz sua negação. A identidade previamente estabelecida, morre, e só através dessa morte, da exposição dessa fragilidade das imagens do mundo, é possível “limpar o terreno” para novos ganhos. Certamente, quando falamos que, em Hegel, a concepção de memória tem como atributo central a desconstituição de identidades, estamos lidando com a identidade enquanto princípio lógico, atrelado às questões teóricas do conhecimento. Alguém poderia então replicar dizendo que quando falamos de identidade, na teoria social, este conceito estaria ligado à uma ordem de cunho psico-sociológico. Não estaríamos nos apressando demais em relacionar estes dois campos tão diferentes? A resposta é: não, porque é exatamente esse o ponto Hegel.
Não basta apontar por alto as diversas citações na Fenomelogia acerca de processos concretos do mundo histórico social no meio do caminho do saber que a consciência percorre. Mas cabe lembrar que, na passagem da sessão que trata da “Consciência”, do problema do conhecimento, que vai do capítulo um ao capítulo três da Fenomenologia, à parte referente à “consciência-de-si”, capítulo quatro, que trata das chamadas “teorias do reconhecimento”, Hegel nos dá uma lição muito importante. O que a consciência experiencia é que antes dela se lançar ao mundo e se relacionar com objetos, ela se relaciona com outras consciências, se relaciona com sujeitos. Ou seja, antes de conhecer, nós (nos) reconhemos.[47] Por toda a sessão dedicada à consciência-de-si, fica claro que o mesmo movimento dialético operante na questão do conhecimento, também opera no âmbito do reconhecimento, ou seja, do movimento de desconstituição de representações e identidades.
Por conseguinte, Satafle comenta que, quando Hegel fala da vida do espírito que suporta a morte e se conserva nela, se faz referência ao “processo de internalização disso que não se submete ao mundo da representação”. Essa internalização é a Erinnerung que “rememora a própria morte, a própria negatividade, a forma vazia do tempo que dissolve toda determinidade”[48], uma memória que é a internalização do próprio devir histórico.
Talvez com isso, possamos responder ao diagnóstico recorrente, dado desde Nietzsche até Adorno, passando por Marx, na qual o estabelecimento da “história universal”, bem como o próprio pensamento hegeliano, seja uma “glorificação do existente”[49] na qual o “Espírito do Mundo” seja uma “catástrofe permanente”.[50] Como tentamos sugerir até aqui, o processo dialético, como uma atividade da Erinnerung (rememoração), promove uma reabertura do que está em jogo no presente, uma reabertura de possibilidades no próprio seio da “necessidade” do passado.
O passado tratado como um “objeto petrificado” é naturalizado. Diante disso, é preciso insistir que, contra a teoria do conhecimento, aquela que investiga as condições de possibilidade da experiência, ou seja, de algo anterior à própria experiência, mas que não é afetado por ela, Hegel opõe a dialética, a exposição da gênese daquilo que nos aparece como anterior, como imediatamente estanque, como dotado de naturalidade. Tal exposição da gênese é que desconstitui o que aparece como natural, “desfaz o acontecido”. A dialética como essa exposição, como processo de rememorar, não é simplesmente relatar ou descrever o que se passou, mas elaborar o que ocorreu à luz do presente. Como mostra Safatle:
Rememorar é ainda agir, e não simplesmente chegar depois que a realidade já perdeu a sua força. Antes, é mostrar como o passado está em perpétua reconfiguração, redefinindo continuamente as possibilidades do presente e futuro. [Antes de ser uma quietude em relação ao existente[51]] seremos mais fieis a Hegel se afirmarmos que o passado é o que está perpetuamente ocorrendo, pois ele não é composto de uma sucessão de instantes que são desconexos entre si. Ele é composto por momentos em retroação.[52]
DE KANT À HEGEL
Depois dessa digressão, podemos ver como não só como a categoria de Erinnerung (memória) é um ponto de extrema importância em várias partes da filosofia hegeliana, mas entrever o motivo pelo qual Slavoj Žižek, em seu programa teórico, atribui importância central à retroatividade no cerne da reflexão dialética. Porém, quais são as consequências desse artifício teórico? A desconstituição de representações a que fazemos referência certamente aponta para a passagem do Entendimento à Razão, oposição que classicamente demarcou a diferença entre Kant e Hegel na história da filosofia. De acordo com a vulgata filosófica o Entendimento seria a forma elementar de análise, de fixar diferenças e identidades, reduzindo a riqueza da realidade à um conjunto abstrato de características. A Razão dialética, por sua vez, suplementaria a unilateralidade do Entendimento, situando cada fenômeno em uma rede que recuperaria o movimento fluido da realidade, sua complexidade dinâmica. Porém, Slavoj Žižek chama atenção de como Hegel é ambíguo nesse ponto:
Decompor uma representação em seus elementos originários é retroceder a seus momentos que, pelo menos, não tenham a forma da representação já encontrada, mas constituam a propriedade imediata do Si. Decerto, essa análise só vem a dar em pensamentos, que por sua vez são determinações conhecidas, fixas e tranquilas. Mas é um momento essencial esse separado, que é também inefetivo; uma vez que o concreto, só porque se divide e se faz inefetivo, é que se move. A atividade do dividir é a força e o trabalho do entendimento, a força maior e mais maravilhosa, ou melhor, a potência absoluta. O círculo, que fechado em si repousa, e retém como substância seus momentos, é a relação imediata e portanto nada maravilhosa. Mas o fato de que, separado de seu contorno, o acidental como tal – o que está vinculado, o que só é efetivo em sua conexão com outra coisa – ganhe um ser-aí próprio e uma liberdade à parte, eis aí a força portentosa do negativo: é a energia do pensar, do puro Eu[53]
O Entendimento aqui, justo em sua capacidade de dissociação, é celebrado nos termos do Espírito. Isso acontece porque se recordarmos a definição de Espírito na Fenomenologia, “em sua verdade simples, é consciência, e põe seus momentos fora-um-do-outro”.[54] Žižek então defende que a Razão não é simplesmente a ultrapassagem do limite posto pelo Entendimento, mas que em certo sentido, a Razão é menos que o Entendimento.[55] O erro do Entendimento seria pressupor que existiria um além substancial que garantisse a coesão do campo dos fenômenos, a ilusão de que a inconsistência dos fenômenos se deve ao limite do nosso conhecimento determinado pela finitude da subjetividade, como se “lá fora” existisse um campo pleno positivo onde essas inconsistências desapareceriam. Nisso, Hegel diria que o Entendimento é de certa maneira como Kant – “leve demais em relação às coisas,” pelo “medo de estabelecer nas coisas em si seu violento movimento de dissociar as coisas”.[56] Aqui a Razão seria o próprio Entendimento em seu aspecto produtivo, implicaria um “movimento de subtração”, a “remoção de um lastro metafísico”.[57] Žižek defende que esse poder de “negatividade” pode ser exemplificado nos termos da relação entre “insight e cegueira”:
De que maneira essa noção surge da confusa rede de impressões que temos de um objeto? Pelo poder da “abstração”, de cegar-se para a maioria das características do objeto, reduzindo-o a seus aspectos constitutivos principais. O grande poder da nossa mente não é ver mais, mas ver menos da maneira correta, reduzir a realidade a suas determinações conceituais – somente essa “cegueira” gera um insight do que as coisas realmente são.[58]
É importante ressaltar que o movimento descrito pelo trecho da Fenomenologia nos parece análogo à forma básica da reconciliação dialética. No caso da passagem do Entendimento à Razão, o Entendimento, que opera com representações (o que marca uma distância da coisa), opera uma cisão. A Razão então só pode redobrar essa cisão, colocando nas coisas em si esse caráter inconsistente, faltoso.
SABER ABSOLUTO COMO LIMITE
Porém Hegel é realmente capaz de alcançar seu objetivo – exprimir a verdade efetiva dos objetos? Ainda sobre a relação entre Kant e Hegel, Žižek continua insistindo numa espécie de diferença sutil, mas significativa, que exprime de maneira direta o seu programa teórico de recuperação da filosofia hegeliana. Afinal, somos capazes de conhecer a coisa-em-si?
A divisão dos objetos em fenômenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode, pois, ser aceita em sentido positivo, embora os conceitos admitam, sem dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais, porque não é possível determinar um objeto para os últimos, nem portanto considerá-los objetivamente válidos. […] O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sensibilidade, antes limita a sensibilidade, em virtude de denominar númenos as coisas em si (não consideradas como fenômenos). Mas logo, simultaneamente, impõe a si próprio os limites, pelos quais não conhece as coisas em si mediante quaisquer categorias, só as pensando, portanto, com o nome de algo desconhecido.[59]
Žižek usa essa citação para defender que o movimento de passagem de Kant para Hegel seria simplesmente entender a tese sobre o “uso negativo dos númenos” de maneira mais literal que o próprio Kant. O conceito de númeno não seria nada mais do que a “pura negatividade, isto é, da autolimitação dos fenômenos enquanto tais”.[60] O nosso entendimento só conhece por meio de representações, e assim postula um limite externo de nossa sensibilidade, consequentemente veta nosso acesso à um outro domínio de objetos. Porém, se essa divisão entre fenômenos e númenos for tomada como a de dois domínios positivos de objetos, isso pressuporia que o entendimento estaria na posição de uma metalinguagem, residindo acima dessa divisão. A única maneira de conciliar a percepção dessa divisão com o fato de o sujeito residir dentro do campo fenomenal é postular que a limitação dos fenômenos não é externa, mas interna, ou seja, não há um domínio transcendente positivo no qual residam os númenos – “os fenômenos com suas inconsistências, suas autolimitações, são ‘tudo o que existe.’”[61] Para Žižek, esse é o ponto fundamental do seu programa teórico – a apresentação de uma “ontologia incompleta”, “falha”, possível justamente através de Hegel, resguardando a noção de liberdade:
No momento em que concebemos a inconsistência e a autolimitação da realidade fenomenal como secundárias, como efeito da incapacidade do sujeito de experimentar o Em-si transcendental da maneira como ele “realmente é”, o sujeito (enquanto autônomo-espontâneo) torna-se mero epifenômeno, sua liberdade torna-se uma “mera aparência” condicionada pelo fato de os númenos lhe serem inacessíveis […]. Em outras palavras, a liberdade do sujeito só pode ser ontologicamente fundamentada na incompletude ontológica da realidade em si.[62]
Essa parece ser, em Žižek, a chave para entendermos o enigma do Saber Absoluto de Hegel. Esta seria justamente a posição na qual não existe metalinguagem. Não se trata da ideia ridícula de uma consciência capaz de “saber tudo”, mas pelo contrário, de reconhecer uma espécie de limitação final irredutível. Aqui, o jogo de comparação entre o “Em-si” e o “Para nós” chega ao fim e assim termina a responsabilidade dialética.[63] Este é o ponto sintomático que marca a distância de Hegel de um “mobilismo” puro e simples. O Saber Absoluto constituiu aqui a grande “pedra no sapato” de muitos detratores de Hegel e inclusive de pensadores que abraçam a dialética, mas sem o seu “fechamento traumático”. Ele é um ponto onde se reconhece a impossibilidade de sairmos do campo de nossa subjetividade e apreender as coisas como elas são sem a nossa própria participação, e este limite é absoluto justamente porque não se pode dar mais a desculpa de que ele é relativo simplesmente à limitação da nossa capacidade de descobrir mais dados sobre o mundo.
[…] tentamos traçar a linha entre como as coisas aparecem para nós e como elas são em si mesmas, fora da relação que têm conosco: distinguimos as propriedades secundárias das coisas (que só existem para nós, como a cor ou o sabor) de suas propriedades primárias (forma etc.), que caracterizam as coisas como elas são em si mesmas; no fim dessa estrada está o puro formalismo matemático da física quântica como o único Em-si (totalmente não intuitivo) que nos é acessível. O resultado, no entanto, torna visível ao mesmo tempo o paradoxo subjacente a todas as distinções entre o Em-si e o Para-nós: o que pomos como o “Em-si” das coisas é produto do trabalho de pesquisa científica realizado durante séculos – em suma, é preciso muita atividade subjetiva (experimentação, criação de novos conceitos etc.) para chegar ao que é “objetivo”. […] O que Hegel chama de “Saber Absoluto” é o ponto em que o sujeito assume plenamente essa mediação, quando abandona o projeto inatingível de assumir uma posição a partir da qual ele poderia comparar sua experiência subjetiva e o modo como as coisas são independentemente de sua experiência – em outras palavras, Saber Absoluto é um nome para a aceitação da limitação absoluta do círculo de nossa subjetividade, da impossibilidade de sairmos dela.[64]
Aqui Hegel nos impediria de nossa arrogância (disfarçada de humildade) de relativizar a nós mesmos, insistindo na ideia padrão de abordar a realidade sempre de maneira assintótica – uma aproximação incessante da verdade, mas que nunca a toca porque seu pressuposto é de que a verdade é um “lá fora” plenamente constituído. Desse modo, com a dissolução dessa ideia padrão (ou como Hegel teria colocado, da “má-infinitude”) promovido pela posição do Saber Absoluto (a “verdadeira infinitude”, o movimento oposto que inclui a lacuna na Coisa mesma), não haveria como nos mantermos minimamente distantes ou seguros de nosso próprio lugar no mundo.[65] Com isso em mente é que devemos ler a tese central da Substância como Sujeito – não é o primeiro momento da certeza sensível, a coincidência da pura singularidade com a pura universalidade, análogo a esse momento final de reconhecimento do sujeito como princípio mediador da realidade? A passagem descrita na Lógica, do Conceito subjetivo para o Conceito puro, enquanto tal, é reveladora, já que incorre na própria individualidade, na singularidade do sujeito, irredutível à toda a mediação universal. Justamente o aspecto que Kierkegaard evoca contra Hegel, o próprio o habilita radicalmente:
A individualidade não é apenas o retorno do Conceito para si mesmo, mas imediatamente sua perda. Pela individualidade, em que o Conceito é interno a si mesmo, torna-se externo para si mesmo e entra na efetividade. […] O indivíduo, enquanto negatividade que se refere a si, é identidade imediata do negativo consigo; é um ser-para-si. Ou é a abstração que determina o Conceito, em consonância com seu momento ideal de ser, como um imediato. Desse modo, o indivíduo é um qualitativo um ou isso.[66]
Hegel mostra aqui como o Conceito enquanto tal passa a existir efetivamente na forma do Eu, que em sua singularidade absoluta coincide com a abstração radical. Žižek aqui nos alerta para o perigo da interpretação idealista comum, na qual sugere que esse movimento especulativo “cria” o indivíduo de carne e osso. O que esse movimento cria é o “eu” enquanto “ponto de referência vazio e autorrelativo no qual o indivíduo se experimenta como um ‘si mesmo’”.[67] Ou seja, a singularidade irredutível do sujeito (aquele do cogito cartesiano ou da apercepção transcendental kantiana, livre de qualquer fundamento substancial, a negação absoluta de qualquer conteúdo determinado) coincide com a universalidade porque, como puro Eu, não se distingue de todos os outros eus existentes.[68] Quando Hegel diz então que na “individualidade” não só acontece “o retorno do Conceito para si mesmo, mas imediatamente sua perda”, se deve ao fato de que o puro Eu liberta-se da alteridade de todas as determinações particulares, ao mesmo tempo que surge como um “isso” efetivamente existente, ou um indivíduo empírico contingente consciente de si mesmo, um “ser-para-si”.[69] A rememoração (Erinnerung), essa retroação que é capaz de “desfazer o acontecido” pelo próprio processo de “reter” o passado, só pode ter um papel fundamental aqui:
Nessa figura o espírito tem de recomeçar igualmente, com espontaneidade em sua imediatez; e [partindo] dela, tornar-se grande de novo – como se todo o anterior estivesse perdido para ele, e nada houvesse aprendido da experiência dos espíritos precedentes. Mas a rememoração [Er-innerung] os conservou; a rememoração é o interior, e, de fato, a forma mais elevada da substância.[70]
No momento derradeiro da Fenomenologia Hegel revela o papel fundamental da retroatividade, da rememoração. Porque ela é exatamente a forma mais elevada da substância? Lembremos do parágrafo dezoito do prefácio da Fenomenologia – a substância/sujeito só existe “à medida que é o movimento de pôr-se-a-si-mesmo”, ou como já pontuamos no início, à medida que é a negação de si mesma, reflexão, retroatividade. Ora, não é a rememoração exatamente esse “curto-circuito” entre relembrar e esquecer?
O esquecimento não é o oposto da atividade de recordar, mas mostra-se aqui como sua realização mais radical: o oblívio leva a própria memória a um ponto além de seu começo. Esquecer, anular o passado, tornar tudo “não acontecido”, é exatamente lembrar de um momento antes de tudo ter acontecido, anular a inexorabilidade do destino, remontando o começo, ainda que só na imaginação e na representação: agir como se pudéssemos assumir o controle de novo, como se pudéssemos abandonar o legado das gerações passadas, como se pudéssemos recusar o trabalho de luto da sucessão cultural, como se pudéssemos nos livrar de nosso patrimônio, reescrever nossas origens, como se cada momento, até mesmo aqueles que há muito se esvaíram, pudessem se tornar um começo radicalmente novo – inaudito, improvisado, obliterado.[71]
Este não é o “retorno a si” que coincide com a própria negação de si mesmo? Se sim, a memória ou a retroatividade é responsável justamente por esse ponto final, por “limpar o terreno” para que um recomeço seja possível. O ato de “pôr os pingos nos is” do Saber Absoluto é essa operação da retroatividade presente em todo o circuito da Fenomenologia, levada às últimas consequências. “Reconhecer a rosa na cruz do presente”[72] talvez sirva aqui de referência – o reconhecimento de que o fechamento do campo é coextensivo à sua própria abertura.[73]
Desse modo, podemos ver como Žižek constitui seu programa teórico de resgate da filosofia hegeliana. Através da interpretação do caráter reflexivo da substância/sujeito como retroatividade, o que emerge é um sujeito que rememora a perda de todo o fundamento, que rememora a negatividade que lhe é própria, um sujeito que só existe como o nome da lacuna interna da própria a realidade. Nisso, a reconciliação dialética só pode surgir não como um escamoteamento forçado da cisão do sujeito com o seu mundo, mas como uma mudança puramente formal onde o problema vira a própria solução – a cisão, a lacuna, longe de nos separar completamente da realidade, atesta justamente nossa proximidade com ela pois é exatamente assim que a realidade se manifesta. A coisa-em-si aparece, e por isso, a lacuna entre nós e a objetividade é uma lacuna interna à própria objetividade. Desse modo, a reconciliação dialética não pode acabar com a cisão, pois isso significaria destruir a própria reconciliação – “somente uma cisão infinita pode dar lugar a uma reconciliação infinita”.[74] É nesse ato de assumir plenamente a cisão, que a reconciliação emerge. Uma mudança sutil, mas que faz toda a diferença. Por fim, para Žižek, é esse próprio caráter inconsistente da realidade, exposto pela filosofia de Hegel, onde se configura o espaço de nossa liberdade.
[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ. E-mail: [email protected]
[2] Dr. em Ciências Humanas. Universidade Federal do Maranhão/Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
[3] HEGEL, FE I, §5.
[4] Ibid., §17.
[5] HEGEL, Ciência da Lógica 2. A Doutrina da Essência, p. 191-6.
[6] HEGEL, FE I, § 16
[7] Ibid., §18.
[8] Devo as considerações desta seção à palestra ministrada por Rodnei Nascimento intitulada “Žižek e a filosofia”, última parte do Curso de introdução à obra de Slavoj Žižek, promovido pela Boitempo Editorial em março de 2013.
[9] Ibid., § 17.
[10] Ver o estudo de Hegel sobre a “Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling”.
[11]HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 215
[12] Ibid., p.245; p.283.
[13] ARANTES, P. E., Hegel a ordem do tempo, p. 163-4.
[14] Ibid., p.162.
[15] HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p.164; trad. p. 193.
[16] ARANTES, P. E., Hegel a ordem do tempo, p.156
[17] Ibid., p. 156-7.
[18] HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p.165.
[19] ARANTES, P. E., Hegel a ordem do tempo, p.157-8.
[20] HEGEL, G.W.F.; Vorlesungenüber die Philosophie der Geschichte, p. 34-5; trad. p. 54
[21] HEGEL. FE I, §28.
[22] ARANTES, P. E., Hegel a ordem do tempo, p.164-5.
[23] Ibid., p. 211.
[24] SAFATLE, Vladimir. Curso “História, Memória e Sofrimento”, aula 8, p. 2
[25]Levando em conta as clássicas acusações da dialética hegeliana como um pensamento teleológico, deveríamos ter em mente que a tese hegeliana da “história universal” como “progresso da consciência da liberdade”, deve ser interpretada à luz dessa relação inextrincável entre “progresso” e desaparecimento.
[26] Ibid.
[27] Apud ARANTES, Hegel a ordem do tempo, p. 212.
[28] HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104
[29] SAFATLE, Vladimir. Curso “História, Memória e Sofrimento”, aula 8, p. 4.
[30] HEGEL, FE I, §73.
[31] ZIZEK, S. Le plus sublime des hysteriques: Hegel passe. Paris: Le point hors ligne, 1988, p. 13-62.
[32] HEGEL, FE I, §74.
[33]Devo esta consideração ao curso online da Revista Cult sobre a dialética hegeliana ministrado pelo professor Vladimir Safatle.
[34] HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, p. 37.
[35] ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. p. 130.
[36] SAFATLE, Vladimir. Curso “Fenomenologia do Espírito de Hegel” p. 30.
[37] HEGEL, FE I, § 80.
[38] Ibid., §§ 90 – 106.
[39] HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 29.
[40] SAFATLE, Vladimir. Curso “História, Memória e Sofrimento”, aula 8, p. 4.
[41] Adição minha.
[42] ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. p. 319-20.
[43] Ibid., p. 321.
[44] HEGEL, FE I, § 165.
[45] Ibid., §31.
[46] Ibid., §32.
[47] Devo esta consideração ao curso online da Revista Cult sobre a dialética hegeliana ministrado pelo professor Vladimir Safatle.
[48] SAFATLE, Vladimir. Curso “Fenomenologia do Espírito de Hegel” p. 35.
[49] MARX, Karl; O Capital – volume I, São Paulo: Boitempo, p. 91.
[50] ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p.266.
[51] Adição minha.
[52] SAFATLE, Vladimir. Curso “História, Memória e Sofrimento”, aula 8, p. 6.
[53] HEGEL, FE I § 32.
[54] Ibid., § 444.
[55] ZIZEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético., p. 121.
[56] Ibid.
[57] Ibid., p. 113.
[58] Ibid., p. 124.
[59]KANT, Crítica da razão pura (trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Frandique Morujão, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994), p. 270.
[60] ŽIŽEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético., p. 126.
[61] Ibid., p. 128.
[62] Ibid., p. 127-8.
[63] Ibid., p. 238.
[64] Ibid., p. 239.
[65] Ibid.
[66] HEGEL, Hegel’s Science of Logic (trad. A. V. Miller, Atlantic Highlands, Humanities Press International, 1989), p. 618.
[67] ŽIŽEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético., p. 215.
[68] Ibid., p. 214-5.
[69] Ibid.
[70] HEGEL, FE II, §808.
[71] COMAY, Rebecca. Mourning Sickness, cit., p. 147-8.
[72] HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito, p.38.
[73] ŽIŽEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético., p. 242.
[74] Hyppolite J., Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, p.207.
REFERÊNCIAS
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ARANTES, P. E., Hegel – A ordem do tempo; São Paulo: Polis, 2000.
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_____, G.W.F., Ciência da Lógica 2. A Doutrina da Essência; trad. Christian G. Iber e Federico Orsini, Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2017.
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KANT, I., Crítica da Razão Pura. trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Frandique Morujão, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1994.
MARX, Karl; O Capital – volume I, São Paulo: Boitempo. 2013.
NASCIMENTO, Rodnei. “Žižek e a filosofia”, Curso de introdução à obra de Slavoj Žižek. Disponível em:< https://youtu.be/LYiTm6L23Hg>, São Paulo: Boitempo, 2013.
SAFATLE, Vladimir. Curso “Fenomenologia do Espírito de Hegel”, 2007.
_____, Vladimir. Curso “História, Memória e Sofrimento”, USP, 2013.
ŽIŽEK, S. Le plus sublime des hysteriques: Hegel passe. Lepoint hors ligne, 1988.
_____, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013.