Prefácio de “A Personalidade Autoritária: Estudos sobre Preconceito” de T. W. Adorno

Por Max Horkheimer, traduzido por Thiago Marques Leão

O texto ora apresentado foi escrito por Max Horkheimer, Diretor do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, como Prefácio para o livro “A Personalidade Autoritária: Estudos sobre Preconceito” (The Authoritarian Personality, Studies in Prejudice) [1] de Theodor Adorno (et al).O livro, publicado em 1950, retoma sua atualidade e relevância sociológica e política, enquanto tentamos compreender a psicologia que estrutura a adesão popular ao autoritarismo de extrema-direita, nas democracias ocidentais contemporâneas. Trata-se de uma pesquisa “psicossociológica” sobre um novo “tipo antropológico” próprio das sociedades modernas industrializadas: o “homem autoritário”. Diferente dos intolerantes e autoritários “raízes” ou da “velha-guarda” (old style, como diz Horkheimer no original), o “homem autoritário” de Adorno tem características típicas da modernidade industrial e traz elementos fundamentais para pensar a Contemporaneidade. É nesta obra que os autores desenvolvem a famosa (mas pouco discutida fora do ambiente acadêmico) “Escala F” para medição indireta de tendências fascistas, autoritárias e/ou antidemocráticas entre indivíduos. Ao apresentarmos este texto, seguindo a intenção dos autores, buscamos apresentar elementos de renovada atualidade e pensamento teórico consistente que talvez deem instrumentos para atuar concretamente sobre a sociedade atual e sua cultura ideologicamente orientada, na qual o “homem autoritário” contemporâneo parece encontrar solo fértil. O livro busca compreender os fatores psico-sociais que possibilitam que o homem autoritário ameace substituir os tipos individualista e democrático – e no plano político o autoritarismo ameace as formações neoliberais e social-democratas – bem como pensar de que maneira essa ameaça pode ser contida. É neste sentido que apresentamos esta despretensiosa tradução na expectativa de que desperte interesse na densa e rica discussão que o livro (e a Teoria Crítica como um todo) traz à tona, apesar das reservas (questionáveis) de parte da Esquerda com relação às leituras adornianas (nota do tradutor).


Este é um livro sobre discriminação social. Mas seu propósito não é simplesmente acrescentar algumas descobertas empíricas a um corpo de informações já bastante extenso. A temática central do trabalho é um conceito relativamente novo – o surgimento de uma espécie “antropológica”, que podemos chamar de homem autoritário. Em contraste com o intolerante tradicional, o homem autoritário parece combinar as idéias e habilidades típicas da sociedade altamente industrializada com crenças irracionais ou anti-racionais. Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e sempre temeroso de não ser igual aos outros, intransigente sobre sua independência, mas inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade. A estrutura de caráter que abarca estas tendências conflitantes já atraiu a atenção dos pensadores políticos e filósofos modernos. Este livro aborda o problema com os meios da pesquisa psicossociológica.

As implicações e valores do estudo são práticos tanto quanto teóricos. Os autores não acreditam que existe um atalho que leve à educação, que elimine a longa e, muitas vezes, sinuosa estrada da pesquisa árdua e da análise teórica. Também não pensam que o problema das minorias na sociedade moderna, e mais especificamente o problema dos ódios raciais e religiosos, possam ser tratados com sucesso seja por campanhas de propaganda em defesa da tolerância, seja pela refutação apologética dos seus erros e mentiras. Por outro lado, a atividade teórica e a aplicação prática não estão separadas por um abismo incontornável. Muito pelo contrário: os autores estão imbuídos da convicção de que a elucidação científica, sistemática e sincera de um fenômeno de tamanho significado histórico pode contribuir diretamente ao melhoramento da atmosfera cultural da qual o ódio se alimenta.

Trata-se de uma convicção que não deve ser recusada como se fosse uma ilusão otimista. Na história da civilização, tem havido muitos momentos em que as ilusões coletivas não foram curadas pela propaganda, mas, em última análise, porque acadêmicos, com seus métodos discretos mas insistentes de trabalhar, estudaram o que há na raiz da ilusão. Sua contribuição intelectual, atuando no contexto do desenvolvimento da sociedade como um todo, foi decisiva.

Gostaria de citar dois exemplos. A crença supersticiosa na feitiçaria foi superada nos séculos dezessete e dezoito, depois que os homens começaram a viver sob influência dos resultados da ciência moderna. O impacto do racionalismo cartesiano foi decisivo. Essa escola filosófica demonstrou – e as ciências naturais que a seguiram fizeram uso prático desse conhecimento – que a crença anterior no efeito imediato dos fatores espirituais no domínio corporal, até então aceita, era uma ilusão. Quando este dogma cientificamente insustentável foi eliminado os fundamentos da crença na magia foram destruídos.

Em um exemplo mais recente, basta pensar no impacto do trabalho de Sigmund Freud sobre a cultura moderna. Sua importância primordial não está no fato de a pesquisa e o conhecimento psicológicos terem sido enriquecidos por novas descobertas, mas que, por cerca de cinquenta anos, o mundo intelectual, especialmente o educacional, tornou-se cada vez mais consciente da conexão entre a repressão de crianças (dentro e fora de casa) e a ignorância geralmente ingênua da sociedade a respeito da dinâmica psicológica tanto de crianças como de adultos. A penetração na consciência social em geral da experiência, cientificamente adquirida, de que os eventos da primeira infância são de primordial importância para a felicidade e o potencial de trabalho do adulto promoveu uma revolução na relação entre pais e filhos que seria considerado impossível há cem anos atrás.

O presente trabalho, esperamos, encontrará um lugar nesta história da inter-dependência entre ciência e ambiente cultural. Seu objetivo final é abrir novos caminhos em uma área de pesquisa que pode se tornar de importância prática imediata. Busca desenvolver e promover uma compreensão dos fatores psicossociais que tornaram possível ao tipo autoritário do homem ameaçar substituir o tipo individualista e democrático, predominantes no século passado (séc. XIX) em meio à nossa civilização, e dos fatores pelos quais essa ameaça pode ser contida. A análise progressiva desse novo tipo “antropológico” e de suas condições de crescimento, com uma diferenciação científica cada vez maior, aumentará as chances de um contra-ataque genuinamente educativo.

Confiança na possibilidade de um estudo mais sistemático sobre os mecanismos de discriminação e, especialmente, de um tipo de discriminação caracterológica, não se baseia apenas na experiência histórica dos últimos quinze anos, mas também nos desenvolvimentos dentro das próprias ciências sociais, nas últimas décadas. Esforços consideráveis e bem sucedidos têm sido feitos neste país (EUA), assim como na Europa, para levantar as várias disciplinas que tratam do homem como um fenômeno social, em um nível organizacional de cooperação que tem sido uma tradição nas ciências naturais. O que estou pensando não são meramente arranjos mecânicos para unir o trabalho realizado em vários campos de estudo, como em simpósios ou livros didáticos, mas a mobilização de diferentes métodos e habilidades, desenvolvidos em distintos campos da teoria e da pesquisa empírica, para um programa comum de pesquisa.

Tal fertilização cruzada de diferentes ramos das ciências sociais e da psicologia é exatamente o que ocorreu no presente volume. Especialistas nas áreas de teoria social e psicologia profunda, análise de conteúdo, psicologia política, sociologia política e testes projetivos reuniram suas experiências e descobertas. Tendo trabalhado juntos em cooperação mais próxima, eles agora apresentam como resultado de seus esforços conjuntos os elementos de uma teoria do tipo autoritário do homem na sociedade moderna.

Eles não desconsideram que não foram os primeiros a estudarem este fenômeno. Reconhecem com gratidão a sua dívida com os notáveis ​​perfis psicológicos do indivíduo preconceituoso previstos por Sigmund Freud, Maurice Samuel, Otto Fenichel e outros. Essas brilhantes percepções eram, de certo modo, os pré-requisitos indispensáveis ​​para a integração metodológica e a organização da pesquisa que o presente estudo tentou, e achamos alcançado em certo grau, em uma escala que antes não era acessível.

Institucionalmente, este livro representa um empreendimento conjunto do Berkeley Public Opinion Study e do Institute of Social Research. Ambas as organizações já haviam deixado sua marca nos esforços para integrar várias ciências e diferentes métodos de pesquisa. O Berkeley Public Opinion Study e se dedicou ao exame do preconceito a partir da psicologia social e havia encontrado a estreita correlação entre o preconceito manifesto e certos traços de personalidade destrutiva de natureza niilista, ligadas a uma ideologia irredutivamente pessimista do intolerante. O Institute of Social Research foi dedicado ao princípio de integração teórica e metodológica desde seus primeiros dias na Universidade de Frankfurt, e publicou vários estudos que emergiram dessa abordagem básica. Em um volume, sobre autoridade e família, o conceito de “personalidade autoritária” foi apresentado como um elo entre as disposições psicológicas e as inclinações políticas. Pereguindo esta linha de pensamento, o Instituto formulou e publicou em 1939 um amplo projeto de pesquisa sobre o antissemitismo. Cerca de cinco anos depois, uma série de discussões com o falecido Dr. Ernst Simmel e com o professor R. Nevitt Sanford, da Universidade da Califórnia, estabeleceu a base do presente projeto.

Quando finalmente organizada, a equipe de pesquisa era liderada por quatro membros sêniores, Dr. R. N. Sanford, do Berkeley Public Opinion Study e Dr. T. W. Adorno do Institute of Social Research, que eram os diretores, Dr.ª Else Frenkel-Brunswik e Dr. Daniel Levinson. A colaboração deles era tão próxima, talvez eu devesse dizer democrática, e o trabalho tão igualmente dividido entre eles que ficou claro desde o início que eles deveriam dividir igualmente a responsabilidade e o crédito pela presente publicação. Os principais conceitos do estudo foram desenvolvidos pela equipe como um todo. Isso é verdade, acima de tudo, para a ideia da medição indireta de tendências antidemocráticas (fascistas), a escala F. Algumas divisões de trabalho não poderiam ser evitadas, no entanto, e se mostrou aconselhável ter os vários capítulos assinados por membros individuais da equipe. O processo efetivamente de escrita envolve necessariamente um envolvimento mais íntimo com os materiais sob análise e, portanto, a medida mais específica de responsabilidade. No entanto, permanece o fato de que cada um dos quatro membros seniores contribuiu para cada capítulo e conclui que o trabalho como um todo é totalmente coletivo.

É interessante observar as atribuições primárias de cada um dos membros da equipe durante o processo real de pesquisa. O Dr. Sanford concebeu a maneira como as várias técnicas deveriam ser combinadas e planejou os procedimentos de pesquisa. Muito de seu tempo foi dedicado a estudos de casos detalhados, especialmente à etiologia dinâmica da personalidade preconceituosa. Adorno introduziu dimensões sociológicas relacionadas a fatores de personalidade e conceitos caracterológicos concomitantes ao autoritarismo. Ele também analisou as seções ideológicas das entrevistas por meio de categorias da teoria social. O Dr.ª Brunswik formulou algumas das primeiras variáveis ​​de personalidade da pesquisa. Com base em seu trabalho anterior, ela realizou a categorização e quantificação sistemáticas e dinamicamente orientadas do material da entrevista. O Dr. Levinson era o principal responsável pelas escalas AS, E e PEC, pela análise da Ideologia em termos psicológicos, pela análise das Questões Projetivas, pelo designe estatístico e procedimento.

Três capítulos monográficos, um sobre a apresentação geral da metodologia e dos resultados de uma das principais técnicas, o Teste de Apercepção Temática, e dois lidando com grupos “críticos” foram escritos por Betty Aron, Maria Levinson e William Morrow. Todos os três estavam permanentemente na equipe de estudo e completamente familiarizados com seu progresso.

O projeto não poderia ter sido realizado sem o apoio generoso e inteligente do Comitê Judaico Americano. Em 1944, o Comitê, sentindo a necessidade de uma sólida base de pesquisa para o suporte financeiro e organizacional que planejava dar aos estudos cooperativos, de um tipo que este livro é exemplo, decidiu criar um Department of Scientific Research. Desde o início, o Departamento foi concebido como um centro científico para estimular e coordenar o trabalho dos principais cientistas na sociologia e na psicologia do preconceito e, ao mesmo tempo, como um laboratório para avaliar os programas de ação. Embora os membros da equipe de pesquisa do Departamento estejam constantemente sob pressão para resolver os problemas que se lhes apresenta o trabalho cotidiano de uma extensa organização que luta pelos direitos democráticos em várias frentes, eles nunca se esquivaram da responsabilidade de promover programas básicos de pesquisas. Este volume simboliza essa ligação entre formação democrática e pesquisa basal.


NOTAS:

[1] Original disponível em http://www.ajcarchives.org/main.php?GroupingId=6490.


* Thiago Marques Leão é doutor em Ciências pela USP, pós-doutorando e Docente junto à Faculdade de Saúde Pública da USP, pesquisador do Grupo de Pesquisa Teoria Social, Mudanças Contemporâneas e Saúde e membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII-SP).

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