Por Inês Maia
Que faz, na superfície, a militância hegemônica atual? Desde a redemocratização – e antes apesar dela do que a partir do seu precedente – toda a militância aceita tem feito um atentado contra o velho conceito de política.[1] Sob a aparência de uma crítica ao modelo de vida, a visão de mundo, em suma, a cultura burguesa, se oculta a adaptação às únicas possibilidades do funcionamento da vida financeirizada, ou melhor, uberizada, ou melhor, precarizada – quer dizer: um atentado contra o pressuposto fundamental da invenção e da possibilidade de uma verdadeira política.
A militância hegemônica atual – sendo um ceticismo niilista, e amando a melancolia como forma de vida – é, abertamente contrária a qualquer possibilidade de criação e capacidade de transpor as limitações impostas pela cultura neoliberal: embora, diga-se para ouvidos mais sutis, de maneira nenhuma abra mão do jogo democrático liberal apodrecido há, pelo menos, pouco mais de dez anos. Se, a verdade não pode estar no que existe atualmente, todo esse ativismo se assentou na vida mentirosa, degradada, do populacho pequeno-burguês.
Tentou-se então, com astúcia e tenacidade dignas de nota, enxergar uma coesão, um solo firme, nesse terreno pantanoso. Ergueram a identidade como último bastião do qual supostamente seria possível armar algum contragolpe. Ledo engano. Segundo o jovem crítico e favelado, o identitarismo tornou-se, ele próprio, a última esfera rentável no processo de circulação dos afetos consumistas[2]. A esquerda não é mais comunista, ela tornou-se consumista, diz o sábio no vagão do trem as seis horas da tarde.
A incapacidade de leitura, do esforço demorado, da paciência do conceito, permite que ardorosos defensores – e não leitores de Judith Butler – a enxerguem como o bastião do identitarismo. Nada mais enganoso. Do mesmo modo, no terreno sorumbático das redes sociais, também, velhos marxistas de 20 anos, acusam a professora da Universidade da Califórnia de Identitária pós-moderna. Do lado de fora da bolha encharcada de baboseira, membros de alguma seita do evangelismo optam por queimar seu livro. Nas três consciências de nosso tempo há algo em comum: ninguém lê. Ninguém lê nem mesmo a bíblia que amarela no salmo 91 envergonhada pelos Malafaias e Felicianos que denotam uma crise radical na grande Ideia ocidental.
Esse pequeno artigo tem apenas um compromisso: fazer uma humilde leitura introdutória do livro “A vida psíquica do poder: teorias da sujeição”. Como estamos na época de mitos, desmitificar a vida espiritual e material tornou-se tarefa revolucionária. As mistificações são muitas, independente do espectro político.
Há duas questões centrais na análise de Judith Butler: a) A forma pela qual o indivíduo vem-a-ser sujeito; b) e sendo a condição de sujeição o estágio fundante do sujeito a pergunta se desdobra: “qual é a forma psíquica que o poder adota (no sujeito sujeitado)?”[3]
Nesse caminho o projeto da crítica fica delineado: como pensar a teoria do poder conjuntamente com a teoria da psique?
Na escavação proposta, o projeto é tão sútil, múltiplo, refinado, excitável, quanto o abandono durante muito tempo da hipótese que lhe corresponde fora incipiente, tosco e rudimentar – um atraente contraste que às vezes se faz visível e toma corpo nas críticas que se dirigem contra Butler. Considerando aquilo que designa seu objeto, a autora sabe que algumas pedras se encontram no caminho, e, delas, ou se faz escadas ou se tropeça. Aliás pedras não, rochas!
É assim que se debruça na Fenomenologia do espírito de Hegel para retomar uma antiga tradição e subverter os conceitos batidos da velha dialética do senhor/escravo. Passa por Nietzsche demostrando como a consciência voltada sobre si mesma instaura a má consciência e os dispositivos de repressão e regulação são necessariamente fundantes para permanência e continuidade do sujeito. Tendo Freud como permanente pano de fundo, discute a interpelação althusseriana e todo seu arcabouço, por fim, medita na teoria do poder de Foucault que é o solo de suas análises.
Não se trata, como pareceria à primeira vista, contudo, de uma amálgama própria à experiência pós-moderna. Toda a tradição de pensadores, a que recorre, lhe fornece como recompensa uma noção de sujeito que parte da impossibilidade de realização imediata do desejo.
A questão determinante é: como o poder ao se instaurar na lacuna dilacerante que é o sujeito em devir, agora sujeitado ao refreamento do desejo e subordinado a voz soberana, é também aquilo que o mantém? – Noutros termos, é aquilo que o torna possível? A sujeição se torna, nesse processo, aquilo que possibilita o referencial e o sustenta.
Deveríamos com todo o rigor, admitir que aqui já está o novelo de lã que nos conduzirá até a concepção performática de Judith Butler (que em termos muito grosseiros, pode ser compreendido como o ato fundamental que instaura o sujeito e sua capacidade de transformar a relação de poder). Devagar, porém. Essa concepção é importantíssima e, a despeito das críticas ao suposto binarismo de Simone de Beauvoir – nas entrelinhas de Butler – acaba por chegar igualmente à mesma conclusão de que o sujeito não é, o sujeito torna-se.
Quem tiver acompanhado a história particular da noção de sujeito encontra em sua evolução um fio condutor para compreender os processos mais sutis e mais comuns de todo o desdobramento moderno: num e noutro caso desenvolveram-se primeiro as hipóteses que recolocavam o indivíduo sobre a sina do cerceamento ao desejo, a interpelação, o recalque, e a subordinação às práticas discursivas.
Por isso, o ordenamento e formulação conceitual de um imenso domínio de delicado trato levam Judith Butler a se deparar com a noção de interpelação de Althusser e segundo ela: “a doutrina de interpelação, no pensamento de Althusser, prepara o terreno para as ideias posteriores de Foucault a respeito da ‘produção discursiva do sujeito’”[4].
Quão próximos da noção de sujeição estão esses pensadores, com suas semelhanças e diferenças, aparentemente gritantes e formalmente inconciliáveis, é o que será posto à prova pela crítica.
O fato é que tanto a resignação do escravo hegeliano – Butler brilhantemente subverte a noção utópica do marxismo tradicional ao afirmar a distopia hegeliana ao final da dialética do senhor/escravo – quanto a aceitação da ordem pelo indivíduo interpelado althusseriano, não explicam a introjeção da culpa na psique do sujeito. Diante dessas limitações, segundo Butler, é Foucault que dá o passo decisivo ao recusar o soberano do discurso interpelativo em prol de uma noção de discursos que estejam para além da palavra falada.
Sem nos alongar quanto as especificidades vislumbradas em cada autor – mesmo porque excederia, em muito, nossa introdução – é precisamente nesse ponto que a pensadora percebe que a possibilidade de sujeição se dá pelo poder discricionário dos discursos que por sua vez ao serem absorvidos são também reproduzidos por esse sujeito sujeitado.
O apego a sujeição é, portanto, obra das relações de poder e a operação do poder é revelado nos efeitos psíquicos que se traduzem na consciência. Fiel a noção de poder em Foucault, cujo embrião é a luta de vida e morte do escravo hegeliano, Butler mostra com as relações de subordinação opera no terreno da psicanálise.
Não é só a subordinação que é condição para a realização do desejo, mas na chave Freud-Foucault, Butler chega à conclusão de que o desejo pela própria subordinação é necessário para manter a estrutura psíquica do Eu. Na chave foucaultiana, portanto, a oposição a subordinação reitera a própria sujeição. Poder e resistência são antagonismos recíprocos que dependem um do outro para se manter. Como então escapar desse círculo vicioso?
Podemos afirmar que aqui, no entanto, Butler dá um passo além em relação a Foucault, pois, ao invés de recorrer ao Si da antiguidade pré-cristã como suplemento romântico – uma era em que o homem foi feliz – a autora de “A vida psíquica do poder”, por meio do recurso psicanalítico descobre que o ato de apropriação do poder envolve uma alteração do poder “de modo que o poder assumido ou apropriado atue contra o poder que lhe possibilitou ser assumido.”[5] Há um excesso não-normativo.
Essa curva argumentativa de Butler é fundamental porque será por meio dela que se proporcionara a demanda por uma efetiva resistência que ultrapasse as limitações da normatividade impressas nas relações de poder. Aqui também se traduz o elemento fundamentalmente político que atua nas entrelinhas da autora.
Ora, é justamente nessas operações psíquicas atreladas as relações de poder que se executam as (de)formações de gênero. É a introjeção da subordinação e a capacidade de subordinar que, ao fundamentar o sujeito, possibilita Butler lançar luz no processo melancólico que fornecem as identificações que formam o Eu. E nesse passo Freud é decisivo em suas investigações.
Para Freud, o que se tem como resultado da melancolia, é o fato de que há uma identificação com o objeto perdido, um apego incorporado como identificação que preserva o objeto impossível de se alcançar. Em termos grosseiros, a melancolia é um luto mal resolvido. “A identificação melancólica”, sintetiza Butler, “permite a perda do objeto no mundo externo precisamente porque possibilita uma maneira de preservar o objeto como parte do Eu”.[6]
O objeto perdido, não mais existindo do mundo externo, será incorporado a psique que o internaliza a fim de recusar a perda. Assim também é a construção do “masculino” e do “feminino” que exige a perda de certos apegos sexuais. A heterossexualidade não é apenas a proibição da homossexualidade interna aos elementos da psique, mas também a adoração dessa proibição. Noutros termos, o sujeito heterossexual apela para a heteronormatividade. “A heterossexualidade é cultivada através de proibições, e essas proibições tomam os apegos homossexuais como um de seus objetos, forçando, assim, a perda desses apegos.”[7]
O desenvolvimento do apego ao sexo oposto é efetivado pela identificação repudiada (uma contradição no cerne da identidade sexual que ao mesmo tempo que repudia o outro, torna-o identificação e objeto de desejo). A tentativa sempre afirmada da heterossexualidade em diferenciar-se do Outro oposto é sempre uma angústia para ser afirmada pois o querer “será sempre assombrado pelo medo de ser o que ele [ela] quer”.[8]
A proibição da homossexualidade, ao se tornar uma operação definidora de toda uma cultura heterossexual elide a capacidade de luto e o amor daí advindo só ocorre sob o signo da proibição, da renegação, do não visto. A masculinidade e a feminilidade portanto surgem dessa incapacidade de realização do pranto de um amor impossibilitado e, por isso, “o próprio gênero é composto precisamente do que permanece inarticulado na sexualidade.”[9]
Ora, a possibilidade de luto pela perda desse apego é a fundamentação proposta para algo que esteja para além do gênero. Esse ponto é onde se encontra a reviravolta de Butler e a sua maior contribuição para nossas lutas diárias. Se concebermos a resistência feminista utilizando a referência central do gênero – da identificação da masculinidade contra a feminilidade – fatalmente adotamos uma posição binária marcada pela estrutura simbólica masculino/feminino e estaremos as voltas com uma resistência que fomenta a tirania patriarcal.
No entanto, se, ao contrário, pensarmos a resistência como um excesso resultado da forma violenta na qual a intervenção patriarcal/capitalista forçou uma identidade estanque – não-relacional – fechada em si mesma, nossa posição se torna uma não-posição, isto é, uma trans-posição, pois se coloca em xeque o registro simbólico e a possibilidade de prantear os apegos sexuais perdidos.
Isto é tudo. Entender isso já basta para dirimir os apelos identificatórios que grassaram na esquerda brasileira. Naturalmente, teríamos críticas a Butler já que ela, ao contrário de Fanon, ignora a possibilidade de uma reestruturação radical da ordem simbólica em sua totalidade. Mas, isso daria um ensaio maior e mais denso que essa curta apresentação de sua obra. Se esta apresentação ajudou a desembaralhar a confusão, então serviu também para desmistificar a fantasia de monstro dada a Butler. Fantasia causada sobretudo pela ignorância que entrou na moda.
Companheirxs, leiam!
[1] Aqui somos auxiliadas por um pequeno livro de Rancière (in: RANCIÈRE, J. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 2018).
[2] https://diplomatique.org.br/contra-o-retorno-as-raizes-identidade-e-identitarismo-no-centro-do-debate/
[3] Cf: BUTLER, J. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017 p.10
[4] Idem, p. 13
[5] Idem, p. 21
[6] Ibidem, p. 143
[7] Idem, p. 145
[8] Idem, p. 146
[9] Idem, p. 149
1 comentário em “Um monstro chamado Judith Butler”
Estou acompanhando sempre esse site, graças, sobretudo, a autora desse texto. É muito difícil encontrar um artigo que dialogue frontalmente com concepções dificílimas como a de Judith Butler e consiga fazer uma ponte entre a teoria dela e a prática que promove. Acho que essa crítica (resenha sei lá) cumpriu esse papel. Agora gostaria de fazer uma questão. A heterosexualidade parece não apenas introjetar a sujeição como impor ela. Essa questão da impossibilidade do luto não tem a ver, por exemplo, com a recorrente tentativa de eliminação LGBTQI promovida por um ódio que na verdade oculta uma identificação libidinal com o objeto que ser eliminar? Se puder responder essa hipótese Inês fico grata!