O complexo de relação entre as reformas inaugurais do governo

Por Rodrigo de Abreu Pinto

Estão definidas as primeiras batalhas que serão travadas pelo novo governo: a reforma da previdência de Paulo Guedes e o pacote anticrime de Sérgio Moro. Resta definir qual será enviada primeiro, indefinição em que duelam diferentes grupos do corpo ministerial.


A favor da previdência, estão a equipe econômica e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que temem desperdiçar o capital político que inaugura o mandato presidencial ao votar o projeto de Moro, considerado menos importante. De modo contrário, Eduardo Bolsonaro reforçou que melhor seria utilizar a proposta anti-crime como termômetro para “ver como cada parlamentar vai se comportar e aí depois você mandar uma matéria mais sensível como, por exemplo, a Previdência”. Após ser pressionado, Moro defendeu que “as duas questões podem ser tratadas em paralelo e uma não prejudica a outra”.

Provavelmente a controvérsia só será resolvida quando o presidente sair do hospital em definitivo,  muito em função da inabilidade do ministro da Casa Civil em mediar as questões do próprio governo. Até lá, a despeito da disputa efetiva pela prioridade, nos concentremos em compreender certas relações entre as reformas – já que dificilmente podemos pensar numa sem levar em conta a outra – jogando luz sobre a questão antes que sejam votadas. Pensaremos as relações por três óticas distintas.

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Caso se confirmem as informações da minuta divulgada pelo Estadão[1], os dois pontos mais acintosos da proposta são: o aumento do tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos, em cabal descompasso com os regimes de trabalho cada vez mais intermitentes e informais; a desindexação do BPC (pago aos idosos e deficientes que não cumpriram o tempo mínimo de contribuição) em relação ao salário mínimo, estabelecendo o valor do benefício em R$ 750 aos 65 anos. O efeito em conjunto será que o aumento do tempo de contribuição dificultará que ainda mais pessoas se aposentem pelo regime do INSS, ao passo que serão inseridos no cálculo do BPC com valores aquém do piso salarial.

Para medir as consequências dessas alterações, deve-se ter em vista que, nos últimos anos, a previdência se tornou um verdadeiro colchão social que amorteceu os efeitos do desemprego e das reduções no seguro-desemprego e abono salarial. Somente em 2017, aumentou em 12% o número de lares em que mais de 75% do ganho mensal vem dos idosos, de modo que na classe E, onde a situação é mais crítica, praticamente um quarto das famílias estão sob tais condições[2]. Mesmo que o piso ainda seja corrigido de acordo com o salário mínimo, este contexto  Mesmo com o piso da previdência corrigido segundo o salário mínimo, esta situação aumentou a inadimplência do idoso nos últimos dois anos (já são 34,5% dos idosos com contas atrasadas), embora os demais estejam lentamente acertando suas contas com a retomada da economia.

No momento em que os benefícios dos provedores diminuírem, é certo que os dependentes serão menos estimulados a procurarem emprego do que a tomarem o caminho da delinquência, opção mais acessível se considerarmos a facilidade de acesso à armas e a dificuldade de fixação no mercado de trabalho, por exemplo. Se a criminalidade será a saída de emergência, o pacote de Moro é a resposta antecipada a desagregação social causada pelo esgarçamento dos direitos. Nele, destacam-se as novas restrições à progressão de regime e obtenção de liberdade provisória, a maior liberdade do juiz na aplicação das penas, a elevação do tempo de cárcere para determinados crimes, a reutilização do controverso conceito de criminoso habitual, além da generalização dos casos em que o policial poderá “reagir”.

Dentre as 14 leis propostas, estas são aquelas cujo caráter de populismo-punitivista é patente. São leis que alimentam o encarceramento em massa, o endurecimento penal e a letalidade policial, ao subtrair as garantias previstas na legislação que protegem os cidadãos na posição de réus, mas asseguram o propósito de regular o social no momento em que garantias mínimas são debilitadas. Por esta lógica, o aumento do rigor penal é proporcional ao aumento do custo de escape dos jovens para a informalidade urbana (sobretudo ligada ao tráfico de droga e pequeno furto), sob o objetivo de empurrá-los de vez para as cadeias de acumulação flexível. Para as frações excedentes que cometerão crimes independente do preço cobrado, o maior recurso ao encarceramento cumpre o desígnio de armazená-los fisicamente – pouca importa se o cárcere em si retroalimenta o circuito da violência, pois está garantido o espetáculo midiático e contábil do braço armado do Estado.

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Nas últimas duas décadas, a legislação penal foi constantemente alargada via reformas que criaram novos tipos penais, sobrelevaram as penas e endossaram os regimes prisionais. Na mesma medida, os custos econômicos do combate e gestão da criminalidade cresceram sem parar. Um relatório do Governo Federal denominado Custos Econômicos da Criminalidade, lançado em junho de 2018, verificou que os gastos públicos com a criminalidade cresceram 170% entre 1996 e 2015. O mesmo documento reconhecia que “a despeito desses substantivos aumentos reais dos gastos públicos em segurança pública, o retorno social de tal aumento foi limitado”. Afinal, no mesmo período, por mais que o encarceramento tenha crescido sem parar (171 mil para 622 mil presos), principalmente após a Lei de Drogas de 2006, o total de homicídio, por exemplo, subiu de 35 para 54 mil por ano no mesmo período.

O relatório concluía que “num contexto de limitação orçamentária, é essencial balizar as escolhas futuras de políticas públicas de segurança por análises de custo-benefício, priorizando aquelas que tragam maior retorno social para cada real investido”. Agora, quando os defensores da reforma da Previdência ratificam os argumentos fiscais, as propostas de Moro apostam na custosa estratégia do encarceramento que subverte o contexto de limitação orçamentária, sem apresentar nenhuma análise de custo-benefício – na verdade, segundo o ministro, “essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido”. Melhor, portanto, não lidar com eles.

Para contornar esse problema via redução dos custos jurídicos do processo, o ministro da Justiça propôs a adoção do plea bargain, instrumento jurídico norte-americano que envolve confissão de crimes por parte do acusado em troca de uma pena menor. Sem discutir os inconvenientes jurídicos dessa aplicação imediata da pena sem o julgamento do caso, vale sublinhar um efeito da adoção nos Estados Unidos do plea bargain, responsável pela resolução de cerca de mais de 90% dos casos. O instrumento diminuiu os custos judiciais, mas significou um sinal verde para que a polícia e os tribunais atuassem com ainda mais intransigência, aumentando os custos com novos presos e penitenciárias que contrariam as economias processuais.

O processo de encarceramento em massa dos Estados Unidos, local de origem do mantra  neoliberal punitivista, é um exemplo didático do que está realmente em jogo no Brasil. Se a sobreposição petista entre neodesenvolvimentismo e neoliberalismo correspondeu ao paternalismo punitivista (extensão dos direitos sem abrir mão das punições), a purificação neoliberal de Bolsonaro combina retirada dos direitos e acirramento das punições, em consonância ao modelo americano iniciado por Nixon e impulsionado por Reagan. Entre 1970 e 1995, a população carcerária americana praticamente quadruplicou e o AFDC (principal programa social norte-americano cujas regras de inclusão são semelhantes ao Bolsa Família) diminuiu 48% em valor real do auxílio de cada família, além de dificultar o acesso e cortar pela metade o número de pessoas cobertas pelo programa. Paralelamente, o orçamento destinado a saúde e educação também despencaram em proporção ao montante da segurança pública até o limite em que, em meados da década de 90, a privatização das penitenciárias despontou como única solução para suprir o aumento dos gastos públicos e a população carcerária crescente.

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O ataque aos direitos sociais e ao discurso antipunitivista origina-se numa moralização profunda que tinge os impropriamente beneficiados por regimes abonados de previdência ou normas que desinflacionem a pena. Em relação a previdência, são vários os juízos do tipo: o regime de previdência público não incentiva a prudência ou mais-trabalho em nome da poupança, ao contrário do regime de capitalização privado; os que recebem BPC ou aposentadoria rural são indignos, pois agraciados pela aposentadoria financiada por outrem. De modo semelhante, a explicação da criminalidade é retirada da trama das relações sociais em que é produzida, de modo que não é a pobreza ou necessidade que induz ao crime, mas a imoralidade pessoal do criminoso, indiretamente incentivada pela clemência do Estado que não castiga quanto deveria.

De um lado e de outro, a crítica individualista ao Estado que produz pobres ociosos sem responsabilidade individual, ainda assim recompensados independentemente do seu fracasso ou sucesso. “O ódio ao corrupto, o cotista, o movimento de moradia, o assaltante, o mendigo e o bolsista é porque eles furam a fila, uma vez que aproveitam-se de atalhos e proteções na luta pela sobrevivência, recorrem a vantagens competitivas que produzem uma concorrência desleal numa arena onde cada um deveria correr por si[3], escreveu o Passapalavra em artigo recente. Assim produz-se o amálgama entre assistência social, imoralidade e criminalidade que torna tão importante inflacionar a imagem dos presos “pagando sua dívida”, o que se traduz em subtração dos direitos elementares e prisões em “estado de coisas inconstitucional”, conforme o próprio STF.

Para se eleger, Bolsonaro precisou alimentar continuamente clivagens simbólicas e, não por outra razão, suas primeiras reformas estão estruturadas na mesma lógica: cidadãos de bem x bandidos; trabalhadores x dependentes de assistência social. Contudo, para além dos eficientes apetrechos ideológicos, mesmo os fiéis de Bolsonaro são coagidos pelas circunstâncias materiais e rotatividade das despesas. A pobreza da população brasileira produz uma dependência tão profunda em relação a Previdência Social que sua parcela de impopularidade é inflexível. Já o o populismo-punitivista de Moro cauciona sua popularidade pelos elevados índices de criminalidade (já que é naturalizada a ideia de que a repressão é uma política eficaz) e pela espetacularização da violência policial que tais leis homologam.

Desde sua atuação como juiz, o objetivo de Moro não é outro senão ser visto e exibido. Na mesma linha, o seu pacote (principalmente em seu vetor de populismo-punitivista) está mais baseado na institucionalização dos elementos do espetáculo do que na atenção pragmática ao real, já que os gargalos da segurança pública permanecem inalterados. Considerando a reforma da Previdência que irá acompanhá-lo, mais do que nunca são necessários os efeitos do espetáculo de parte das 14 leis de Moro, já que podem compensar a impopularidade daquela. É provável, portanto, que o pacote penal venha somente após a reforma da Previdência para, entre outras funções, dissuadir o humor da população.

Para além do emprego estratégico desse arranjo, mais importante é compreender as relações complexas que as reformas entretém, pois assim tornam-se legíveis as linhas de força do governo Bolsonaro.


[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-vai-propor-idade-minima-de-65-anos-para-homens-e-mulheres,70002707320

[2] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-lares-que-dependem-da-renda-de-aposentados-cresce-12-em-um-ano,70002402366

[3] http://passapalavra.info/2019/01/125118/