Por Fran Alavina
Na ocasião em que se comemora mais um ano de existência do Lavra Palavra abre-se uma oportunidade de se pensar uma experiência do pensamento crítico coletivo no meio da babel virtual. Uma reflexão que se presta não apenas ao caráter elogioso de uma efeméride, mas que tenta reconstituir um exercício continuo de resistência.
Há mesmo de se perguntar mais uma vez: o que quer o Lavra Palavra? Ora, quem sabe o que quer, deve também saber de si, uma vez que o desejo é o afeto constitutivo não só das carências, mas também das realizações: do que se é enquanto se almeja e do que se torna no ato da realização. É também preciso saber contra o que se cria, ou seja, saber daquilo que não se quer, e contra o qual se luta.
Pode-se afirmar que estamos ante um “laboratório” de experimentação de conceitos e de restabelecimento dos usos públicos da razão. De fato, tais coisas podem parecer banais e até mesmo frívolas, mas a verdade é que vivemos no meio da desrazão e somos atropelados a todo instante pelas idiossincrasias mais perversas. O debate está reduzido a polêmicas nutridas por uma excitação que busca na revolta aparente a satisfação de um imenso vazio de sentido. Perdidos no denso deserto do pensamento fácil, não apenas dizer, mas lavrar a palavra é uma atividade que exige cada vez mais de poucos. O laboratório dos conceitos descamba, então, para um diagnóstico.
Daí se indagar: o que é isto que podemos denominar de pensamento fácil, que é o alvo contra o qual a atividade de lavrar a palavra mira suas armas críticas? Neste caso, é melhor caracterizar do que definir. O pensamento fácil contenta-se apenas com a forma, aliás ele é a realização mais perversa da sociedade da imagem, pois enquanto tal é uma imagem simulada do pensamento, um simulacro da razão. Nele, a forma deixa de ser uma expressão do conteúdo, pois quase não há mais conteúdo algum. Quanto mais a publicidade faz do conteúdo diferenciado uma estratégia discursiva do consumo, há sempre menos conteúdo. Os conteúdos são um reportório do mesmo: a manutenção da atual ordem de coisas. Denunciar o pensamento único, mas não se deixar abater pelo pensamento fácil estando em seu próprio meio: uma árdua tarefa, pois o meio onde nasce, cresce e parece não morrer o pensamento fácil é isto que se chama de virtual ou ciberespaço.
O virtual tornou-se uma forma única, hegemônica, que submete quase que indefinidamente tudo àquilo que atrai para dentro de si. Ele retira a imagem da imaginação, furta do corpo o prazer e a sensibilidade, fossiliza a linguagem. A palavra está então reduzida a uma instância desprovida de caráter criador, posto que mera repetição mecânica. A pobreza dos falares é a indigência das capacidades expressivas. Não se podendo mais expressar, resta então a concorrência da exibição. É, assim, pelas visualizações que se mede as novas capacidades: exibição da concorrência.
A circulação das imagens é a circulação de um novo tipo de mercadoria, pois a mercadoria já não é mais sem a sua imagem. As vitrines estão obsoletas no mundo da transparência egoíca. Tudo ver e ser visto para tudo poder sentir: é o novo imperativo categórico ao qual chegamos. Como são os sujeitos que se exibem, estes, por um novo modo de servidão voluntária se tornam mercadoria. Vendem-se sem receber, e se exploram quando pensam estar no auge da realização.
Ora, nesta caracterização o leitor atento deve ter percebido que não falamos ainda de pensamento. Mas, o que falta ao pensamento fácil ensejado pelo virtual é justamente o pensar. Furtados da imaginação, expropriados da linguagem, desprovidos de expressão e naufragando a sensibilidade fora de seus corpos, o pensamento pode então ser vendido como algo vulgar, basta se submeter à forma. Porém, pode haver pensamento onde não há mais imaginação, linguagem e sensibilidade?
É, por isso, que uma crítica da vulgaridade hodierna e das perversidades cotidianas não pode se abster de pensar os riscos aos quais está exposta. Mas não se arriscar é se render sem pelejar. Que a resistência seja então o mais forte dos afetos! Que voltando ao pensamento, possamos reaver nossa imaginação, expressar nosso descontentamento e criar por meio de uma nova sensibilidade. Isto é querer mais o pensamento que forma do que a forma do pensamento: é preciso então continuar lavrando a palavra!
3 comentários em “Palavras de uma lavra: três anos de resistência ao pensamento fácil”
Parabéns aos colegas de Lavra Palavra. Quando possível, reproduzimos com os devidos créditos e citação de fonte e seu link, o material interessantíssimo que vocês colocam à disposição do público.
Recebam um grande abraço do Portal Desacato.
R.F.
Fran, o pensamento massificado, o pensamento curto, fala de praça pública, e aí a praça pública hoje são as redes sociais, é resultado do baixo nível de leitura, logo da falta de uma informação filosófica, científica e teológica, para citar três ciências (não no sentido positivista). Lendo este texto que requer atenção entre sujeito e predicado, identificando sobre o que o verbo fala, o analfabeto funcional não compreenderá. Mas o texto retrata bem hoje a ignorância conceitual, histórica, política e filosófica de temas e fatos que são esmagados pelo solipsismo do opinismo individual. Daí a miséria intelectual estar presente nas redes sociais, diria também, na mídia tradicional como as tvs e rádios. Somos uma sociedade em que o médico, geralmente só entende de saúde, de corpo humano, ou o dentista que só entende de dente ou boca humana, se arvorarem a emitir opiniões sobre determinados temas e assuntos em que não dominam cientificamente. Doutor sendo contra o comunismo sem saber bem o que isso é na teoria ou mesmo na prática e por aí se vai as idiossincrasias opinativas. A nossa campanha presidencial baseou-se em fake news, e ampliaria dizendo, baseou-se em concepções teóricas falsas, relatos históricos mentirosos. E a mentira foi o cabo eleitoral do vencedor fascista que ludibriou os ignaros com suas verborragias políticas, históricas etc. No mais, parabéns pela leitura.
Errata: por aí se vão as idiossincrasias… pela leitura social.