Euclides da Cunha e a greve

Por Gonçalves Machado, via Fundamentos, transcrito por Vinícius Azevedo

[Texto originalmente publicado em Fundamentos: Revista de Cultura Moderna, número 27, maio de 1952, p. 32. O autor havia publicado o texto “Euclides da Cunha Socialista”, iniciado na página 14 da edição anterior, número 26, em março de 1951. Pesquisando nos arquivos da Hemeroteca Digital Brasileira, mantida pela Biblioteca Nacional, salta aos olhos que o referido texto é o único da edição que não foi digitalizado. Na imagem, retrato de Euclides da Cunha por Cândido Portinari (1944).]


É ainda de ontem a frase áspera que os homens da situação politica do País repetiam com ênfase e entusiasmo, pois que a aprenderam da boca de um chefe da Nação: “A questão social no Brasil é uma questão de polícia”.

E era mesmo. Não que, numa caminhada avassaladora, tivéssemos resolvido os problemas do trabalhador nacional. Não que houvéssemos extinguido, numa magia circense de alta categoria, a diferença entre dominantes e explorados. Não que a ação governamental propiciasse um nível de planície calma e acariciadora para todas as classes da sociedade brasileira, de forma que qualquer agitação do trabalhador fosse ato de desajustado, de criminoso, com o objetivo único e exclusivo de perturbar a paz reinante no seio de Abrahão do nosso povo.

Nada disso. Muito pelo contrário. A questão era uma questão de polícia, só porque assim entendiam os poderes governamentais, levando para a alçada policial os desentendimentos entre patrões e empregados, as reivindicações do trabalhador e até as reclamações mais justas, mais perfeitas no estricto senso jurídico.

O direito de greve, direito que, com a liberdade de imprensa e de pensamento e a indiscriminação ideológica, forma a base tríplice em que se assenta a democracia, ainda em 1935, na Câmara Federal, deputados de partidos, que desfraldavam ufanos a bandeira democrática, negavam-no peremptoriamente, havendo mesmo um representante paulista feito esta afirmação: “considero a greve um fato e não um direito – fato abrogador do direito”.

Nessa mesma ocasião, outro deputado falava em greve de tática, bolchevista, o que provocou o revide imediato do eminente jurista Antonio Covelo, com estas palavras: “O meu nobre colega não poderá definir e apontar-me de acordo com qualquer das escolas, que traçam as diretrizes dos diferentes ramos do socialismo, desde os mais moderados até os mais avançados, o que seja uma greve de caráter bolchevista. Mesmo as greves de caráter revolucionário trazem, no fundo, um problema de ordem econômica. Há greves que constituem um meio de reparação de injustiças; outras que se destinam a reparação de prejuízos, e outras que visam o equilíbrio de interesses entre patrões e operários; todas, porém, fundam-se no princípio da liberdade de trabalho”.

Sempre, pois, e ainda mesmo neste avançadíssimo ano de 1952, ignorando ou fingindo ignorar a marcha do mundo, há vozes que se levantam, há razões que se engendram, há falsidades sociológicas que se manipulam, tudo num esforço tortuoso de negar a greve como um direito, mas ninguém conseguiu ainda elaborar um argumento forte, convincente, que mostre não ser a greve o caminho mais direto e o instrumento mais operante, para as conquistas dos que trabalham, dos que suam, dos que constituem a grande maioria das populações: homens que o homem explora.

***

Estas observações, a respeito de coisas da idade coetânea, fazem o cronista reportar-se aos primórdios do século. E então lhe vem a mente o pensamento de Euclides de Cunha, tão moderno, tão atual, em contraste tão frizante com as ideias de antanho de muitos homens de hoje. Euclides da Cunha é, pode-se dizer, uma personagem de 1952 antecipada para 1900, de quem o seu crítico lusitano, José Pereira de Souza, escreveu:

E, todavia, poucas mentes haverá, em nossas letras, luso-brasileiras, mais sisudas do que a do dr. Euclides da Cunha, espírito decididamente sério, a quem as grandes, minazes incógnitas solicitam, das que compreendem o tempo e o espaço, ultrapassam as fronteiras e sobrepujam a continuidade histórica, impondo-se às civilizações. Fisionômica é, destarte e por tal teor, o capítulo intitulado ‘Um velho problema’. Este velho problema é o problema novo, é o problema eterno, problema social.

Recapitula o dr. Euclides da Cunha as aspirações utópicas, de que emergiram os livros sonhadores e hiperbólicos, ‘cujos títulos são como títulos de poemas’, e traça uma síntese nervosa da tremenda crise revolucionária francesa desde o recôndito das consciências até as explosões da praça pública; ele rememora as amplitudes concedidas ou recusadas no direito de propriedade e recorda-nos os pareceres a propósitos, seja o ‘rígido’ Camus, seja o ‘romântico’ Saint-Just, seja o incomparável Mirabeau. Seguidamente as suas preocupações convergem para a teoria do socialismo, afirmadas e expostas nas grandes construções doutrinárias, características do século XIX, quer ‘as estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos’, quer ‘as alienações de Proudhon’, quer ‘as tentativas bizarras de Fourier’, quer, enfim, o soçobro completo da política de Luis Blanc. Em resumo, assistimos ao desenrolar duma evolução teorética cujo temo final é Karl Marx, pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico – remata o dr. Euclides da Cunha – começou a usar uma linguagem firme, compreensível, positiva’”.

É pensador desse vulto que nos ocorre realmente, quando tantos pigmeus aí vivem, deblateram e pontificam. E quando ainda agora se ouve falar no fato greve, como abrogação do direito e quando se procuram definições especiosas para uma classificação ‘à la diables’ do direito de greve, não há como não ir buscar um escritor de outros dias, para tirar-lhe da obra eternamente moderna, que ‘sobrepuja a continuidade histórica, impondo-se às civilizações’, palavras eloquentes, vivas e de precisão rigorosa, que parecem ditas hoje, mas que foram escritas no começo deste século. Essas palavras lá estão, como um versículo de bíblia, no “Um velho problema” [1], concluindo pensamento de Euclides, quando ele fala na arregimentação política e econômica dos trabalhadores:

Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços…”


1 Texto de Euclides da Cunha publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 1º maio 1904. Disponível em: https://bit.ly/3RJp1QW. Acesso em 26 jun. 2024.

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