Por Lara Apolonio Rossetto
O poder da ambiguidade na definição do aparelho escolar como monopólio do saber
Introdução
Esse escrito pertence a outra época. Com efeito dá testemunho, em parte, de opiniões que já não são passíveis de serem defendidas (In: Althusser, 1999).
Althusser não escreveu essa passagem. Mesmo assim, ela se encontra estampada na aba de seu livro “Sobre a Reprodução”, provavelmente redigida pelo editor. Apesar de não ser segredo que “Louis Althusser foi, e ainda é, um dos teóricos mais polêmicos e odiados na história” (Rossetto, 2023a), é espantoso perceber que a publicação de seu próprio livro é feita com ressalvas ao seu conteúdo.
Embora salte aos olhos, o comentário não é inconsistente com os escritos do autor. O próprio Althusser frequentemente renegava seus escritos, chegando a afirmar ter ficado “obcecado com o pensamento aterrorizante de que [meus] textos iriam me expor ao público como quem eu realmente era, um charlatão e nada mais […] tive um ataque de pânico tão grande que falava apenas em destruí-los (mas como?) e então, finalmente, em destruir a mim mesmo” (Althusser, 1993, p.148-149, tradução nossa). Louis Althusser, um autor tão polêmico que até mesmo sua obra se autodeprecia, tão odiado que suas próprias palavras desmerecem sua teoria. No entanto, ainda que seja contra intuitivo, essa aversão ímpar a Althusser, em sua aparente universalidade, pode ser um indício do poder de sua teoria1.
O fato de ser, justamente, a aba de “Sobre a Reprodução” que apresenta uma ressalva tão brutal não pode ser considerado irrelevante. Afinal, o livro contém o texto mais famoso do autor: “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado” (I-AIE), publicado originalmente em 1970, na revista La Pensée. De início, supunha-se que esse texto era apenas um ensaio solitário em meio à vasta obra de Althusser. Porém, após a morte do autor, foram encontrados os manuscritos de onde I-AIE foi retirado, com algumas modificações. São esses manuscritos, publicados postumamente em sua totalidade, que compõem “Sobre a Reprodução”.
A conturbada história de publicação faz com que renegar o livro, mesmo que para defender Althusser2, seja uma manobra relativamente simples. Por não ter sido concluído, o texto inacabado apresenta lacunas irreparáveis (indicadas, em parte, pelo próprio autor na publicação original de I-AIE3), está repleto de contradições e faria parte, segundo Althusser, de um projeto mais abrangente, que não foi desenvolvido. Por conta disso, não é difícil descartar todas as lacunas e contradições de “Sobre a Reprodução” como erros de percurso, que nada teriam a ver com a teoria althusseriana, nem com suas ideias principais, separando (para usar as palavras de Althusser) o “punhado de terra que contém em seu interior um pedaço de ouro puro”4 (Althusser et al., 2016, p.34, tradução nossa).
Esse processo de descarte, como destacou Althusser, é essencial para qualquer leitura que pretenda apresentar um texto como absolutamente coerente. É imprescindível que, para tal, qualquer contradição seja suprimida. Contraditoriamente, o próprio autor realiza esse mesmo procedimento, que tanto denunciou em sua obra. Talvez em uma tentativa de se defender da acusação de que seus escritos eram difíceis de serem lidos, “o livro inteiro, como muito do que Althusser escrevia na época, tinha a intenção de ser pedagógico: em vez de tentar mostrar ao leitor que existe uma dificuldade residual, ele tenta, pelo contrário, convencê-lo de que as dificuldades foram resolvidas” (Balibar, 2022, tradução e grifos nossos). Essa tentativa de ser mais didático não só levou o autor a apresentar algumas concepções inacabadas como se constituíssem uma teoria fechada, como também o fez simplificar suas ideias e omitir o que oferecia de mais precioso, sua filosofia. Tal operação é ainda mais estranha se considerarmos que o título inicial do livro “Sobre a Reprodução” era “O que é a filosofia marxista-leninista?”.
Descolado de seus outros escritos, o texto sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIEs) é frequentemente entendido, principalmente por seus críticos, a partir de pressupostos filosóficos estranhos a Althusser, fazendo com que seus termos ganhem significados que não cabem em sua teoria e, assim, fornecendo munição para que o restante de sua obra seja julgado e descartado através de conceitos absolutamente incompatíveis com a linha dominante que guia seus textos. Por conta disso, e inversamente, também não seria difícil a nenhum althusseriano deserdar os escritos que compõem “Sobre a Reprodução” como deturpações da filosofia brilhantemente exposta na vasta obra de Althusser, publicada em vida.
Seja nas mãos do próprio Althusser, de seus críticos ou de seus apoiadores, esse procedimento de descarte, em qualquer uma de suas “variações” (ignorar e mascarar as contradições presentes no texto como se não existissem, renegá-las para defender o restante de sua obra ou utilizá-las para invalidar a teoria althusseriana por completo), não apaga a existência das passagens, por mais contraditórias que sejam, nem as lacunas irreparáveis de “Sobre a Reprodução”, que acabam por animar o escrito mais famoso desse autor tão controverso.
É comum defender Althusser utilizando trechos em que, muito eloquentemente, o autor articula ideias completamente opostas àquelas que seus críticos o acusam de seguir. “Sobre a Reprodução” apresenta, talvez, um dos exemplos mais claros.
Ao considerar a obra como coerente, coesa e harmoniosa, a maior parte dos críticos de Althusser seguem os mesmos “três pilares: a crítica do funcionalismo, a crítica da agência e a crítica da tragédia” (Backer, 2022, p.5, tradução nossa). Tais pilares, junto do frequente rótulo de estruturalista, se baseiam na acusação de que o autor teria excluído a luta de classes de sua análise por focar na reprodução.
A defesa é razoavelmente simples: não é difícil comprovar que a teoria althusseriana considera a luta de classes como o aspecto central do marximo5, a partir de qualquer uma de suas obras, incluindo “Sobre a Reprodução”. Entretanto, apesar de válida, essa defesa esconde que, de fato, nessa obra, Althusser anuncia que fará exatamente isto: segundo o autor, seus manuscritos seriam parte de um projeto maior, compondo apenas um primeiro volume, dedicado especificamente à questão da reprodução, relegando o tema da luta de classes a um segundo, que nunca foi escrito. A leitura de seus críticos é comprovada “ao pé da letra”6 na obra althusseriana. Mas nenhum texto é uno, nem coerente.
Afirmar que é o próprio texto de Althusser que permite a interpretação de seus críticos não exclui o fato de que estes últimos, ao considerarem que o apagamento da luta de classes seria uma característica do pensamento althusseriano, ignoram uma parte constitutiva desse mesmo texto: entrelaçada à anunciação de separação entre reprodução e luta de classes sobrevive a recusa em postular que esses conceitos são mutuamente excludentes. Se, por um lado, a defesa da teoria althusseriana frequentemente apaga a parte do texto em que Althusser vai contra seu próprio corpo teórico, sua própria filosofia, seus próprios postulados, em nome de uma coerência inventada para comprovar a genialidade e maestria do autor; por outro, seus críticos fazem, em sua grande maioria, o percurso inverso, ignorando o que esses althusserianos consideram e considerando aquilo que ignoram. Desse modo, tentam apagar o fato de que Althusser percebeu que se encontrava em uma encruzilhada, mesmo que não fosse capaz fugir dela, e continuou batalhando com todas as suas forças. Em “Sobre a Reprodução”, afirma constantemente a centralidade da luta de classes, inclusive, deixando advertências finais (presentes em I-AIE) que expressam uma concepção altamente materialista, compatível com a linha predominante de suas obras.
É necessário reconhecer que Althusser certamente não foi capaz de evitar separar “reprodução” de “luta de classes”, tentando justificar a dissociação de conceitos que ele mesmo considera inseparáveis para conter as críticas que antecipa, mas não consegue evadir7. Contudo, em sua estranha defesa, percebendo claramente que essa separação era injustificável teoricamente e incompatível com seu próprio pensamento, Althusser não deixa de afirmar o “primado da luta de classes sobre as funções e o funcionamento do aparelho de Estado, dos aparelhos ideológicos de Estado” e concluir que “o processo global da realização da reprodução das relações de produção permanecerá abstrato, enquanto não for adotado o ponto de vista dessa luta de classes. Situar-se no ponto de vista da reprodução é, em última instância, situar-se no ponto de [vista] da luta de classes” (Althusser, 1999, p.239), deixando claro que “é impossível falar do Estado, do Direito e da Ideologia sem fazer intervir a luta de classes” (Althusser, 1999, p.28).
O “erro” de seus críticos não é, portanto, perceber errado, mas unificar a obra de Althusser, aniquilando suas contradições para construir uma coerência imaginária que se baseia muito pouco na obra do autor e muito mais em conceitos arbitrários importados aos seus textos. Eles excluem a conflitualidade dos escritos althusserianos para imaginar um Althusser completamente dominado por uma concepção idealista que, apesar de existir em sua obra, é brutalmente atacada pelo materialismo radical que o francês cultivou com tanto suor durante toda a sua vida. Da mesma forma, o “erro” de seus defensores é ignorar as contradições que indicam uma lacuna constitutiva do texto althusseriano, uma dificuldade que não pôde ser superada… Mas por quê?
Se pretendemos desenvolver a teoria de Althusser, devemos compreender os “obstáculos epistemológicos”8 que travavam suas formulações, que o obrigavam a declarar aquilo que rechaçava, a expressar opiniões que não eram suas. Para tal, não podemos descartar pedaços de sua obra para que se possa ignorar as partes indesejáveis e, então, conseguir adequá-la a uma interpretação que depende dessa exclusão. Como descreve Warren Montag, que resume brilhantemente a discussão althusseriana sobre a “leitura sintomal”:
[…] ler en matérialiste ou “de modo materialista” é, portanto, não aceitar ou rejeitar uma doutrina filosófica integralmente, como se ela fosse homogênea, mas, ao contrário, “traçar linhas de demarcação internas a ela” para tornar visível e palpável a presença de forças conflitantes dentro até mesmo do texto mais aparentemente coerente e evidenciar e intensificar suas contradições. Fazer isso significa se aliar ao texto contra ele próprio, a um de seus lados contra o outro ou os outros, discernindo as linhas de força que o constituem (Montag, 2013, p.5-6, tradução nossa)
Aqui, as contradições não são mais ignoradas, mas intensificadas: as lacunas, que geralmente são relegadas à escuridão, escondidas mesmo que presentes, tomam o palco principal, como se iluminadas por holofotes. Se pretendemos investigar a obra althusseriana, devemos travar a batalha que constitui o próprio texto, mesmo que não reconhecida: se Althusser, em sua tentativa de ser didático, construiu uma harmonia artificial em “Sobre a Reprodução”, nosso papel é colocar lenha na fogueira. Como nos alertou o próprio Althusser, filosofia é luta de classes na teoria. Obstáculos epistemológicos são também obstáculos políticos, que travam não só a teoria marxista como também a prática política revolucionária. Por isso, é necessário “se aliar ao texto contra ele próprio”. Neste caso, isso significa distinguir a infiltração de conceitos inimigos à própria teoria do autor, que tentam neutralizá-la politicamente, daquelas passagens que se alinham com tudo aquilo que é caracteristicamente althusseriano, suas formulações inéditas, seu fazer filosófico ímpar, seu materialismo radical. É preciso promover o confronto que se encontra dormente na obra, sem nunca ser consumado.
Neste artigo em particular, estamos interessados especificamente na teorização de Althusser sobre o aparelho escolar no livro “Sobre a Reprodução”, bem como nas interpretações possibilitadas “ao pé da letra” do texto. Dito isso, pretendemos demarcar a compreensão do funcionamento do aparelho escolar (com a qual nos aliamos) que segue concepções específicas à teoria althusseriana (em conformidade com a filosofia que desenvolveu em toda a sua obra, bem como seus objetivos políticos), daquela que permite a interpretação hegemônica de sua teoria sobre esse aparelho ideológico (incompatível com a teoria e a prática política que defendeu abertamente durante toda a sua vida). Ambas se digladiam nessa obra tão conturbada, enriquecida por suas intermináveis contradições.
A interpretação hegemônica da teoria althusseriana sobre o aparelho escolar
As formulações althusserianas sobre o aparelho escolar ocupam uma posição ímpar nas discussões sobre seu pensamento. Enquanto a maioria dos conceitos de Althusser são violentamente disputados por seus defensores e críticos, há uma suspeita concordância entre os primeiros e os segundos quando se trata desse AIE. Isso significa que a explicação da teorização althusseriana sobre o funcionamento desse aparelho é sempre muito similar, com algumas modificações e ressalvas pontuais que, ainda assim, seguem uma mesma linha teórica.
David Backer, por exemplo, propõe-se, em Althusser and Education, a “responder uma pergunta que surgiu recentemente nos estudos althusserianos da educação: como seria uma pedagogia althusseriana?” (Backer, 2022, p.6, tradução nossa). Para responder a questão, opõe-se à “estupidez da problemática burguesa sobre a educação, que entende a escola como causa de desigualdade”, defendendo que “uma estrutura desigual é o que faz com que as escolas sejam como são, e não o contrário” (Backer, 2022, p.6, tradução e grifos nossos). Essa tentativa de suprir a falta de uma proposta pedagógica na teoria althusseriana, junto à afirmação de que a escola não produz desigualdade, apenas reflete a desigualdade existente na estrutura, soa extremamente familiar a qualquer um que conheça a discussão brasileira sobre o funcionamento do aparelho escolar em Althusser. Afinal, uma das maiores linhas educacionais do país, a pedagogia histórico-crítica (PHC)9, faz exatamente o mesmo, com uma ressalva: a PHC opõe-se à teoria althusseriana, ao contrário de Backer. Mas como é possível que um althusseriano conceba o aparelho escolar da mesma forma que os críticos do autor?
Backer atribui ao escritor franco-argelino uma afirmação que os teóricos da PHC, acertadamente, reconhecem ser incompatível com sua teoria: a desigualdade é causada pela estrutura social mais abrangente e não pela escola10. Reconhecendo em Althusser uma concepção que seus críticos consideram estar ausente em sua obra, a interpretação de Backer de como funciona o aparelho escolar não apenas segundo a teoria althusseriana, mas também segundo suas próprias formulações teóricas, coincide com a dos teóricos da PHC, partindo de uma mesma chave interpretativa do que significa dizer que a escola reproduz as relações de produção. Tanto para a PHC quanto para Backer, ela o faz ao impedir que parte da população seja integrada plenamente ao processo educativo, encarcerando aqueles mantidos à margem desse AIE nas condições de vida precárias às quais estão submetidos, sem acesso a cargos mais altos na hierarquia do trabalho. Para ambos, a desigualdade social é anterior e exterior à escola, determinada pela estrutura econômica do sistema capitalista. Assim, consideram que o aparelho escolar simplesmente reproduz a divisão de classes que já existe, independente dele.
Essa interpretação do conceito althusseriano de aparelho escolar parte da descrição, em “Sobre a Reprodução”, do seguinte fenômeno: há um parqueamento dos trabalhadores manuais em certos “conteúdos e formas de ‘savoir-faire’”, fazendo com que haja “uma proibição prática: proibição de ‘sair’ dos conteúdos e formas de ‘saber’ nos quais foram parqueados pela exploração” (Althusser, 1999, p.61-62). De acordo com Backer:
Segundo Althusser, as relações de hierarquia e as relações de produção são acompanhadas por diferenças de conhecimento, por desigualdades de qualificação e de preparação geral que se distribui nos complexos estratos da formação social. A maioria das pessoas fica encurralada em um certo tipo de trabalho mal pago, capaz de trabalhar com o maquinário, mas não de ser supervisora. […] De onde vem essa divisão? Da sua formação pedagógica: sua instrução em conhecimentos necessários para a realização do trabalho (Backer, 2022, p.27, tradução e grifos nossos).
Essa é a mesma interpretação de Dermeval Saviani, o principal formulador da PHC, ao afirmar que, para Althusser, “marginalizada é, pois, a classe trabalhadora” (Saviani, 2008, p.19): a falta de integração plena no aparelho escolar faz com que trabalhadores não tenham acesso (ou tenham um acesso muito restrito) à cultura erudita, isto é, ao saber elaborado, sistematizado, científico, oferecido exclusivamente pela escola. Assim, é por não possuírem os conhecimentos necessários para ocupar cargos que oferecem melhores condições de vida que eles são marginalizados, impedidos de ascender socialmente. Nas palavras de Backer, “o proletário estrito fica preso a este tipo de trabalho por causa de sua falta de conhecimento e qualificação” (Backer, 2022, p.26, tradução e grifos nossos).
Entretanto, aqui aparece uma daquelas ressalvas pontuais que diferenciam um althusseriano dos críticos do autor. Como indicado pela citação anterior, em Backer temos a exploração do tema central na discussão de Althusser sobre o aparelho escolar (largamente ignorado, por exemplo, pela PHC): a divisão social do trabalho (trabalho manual vs intelectual; ou, nos termos de Backer, labuta vs intimidação, referindo-se, respectivamente, a proletários e supervisores do processo de produção, que chama de capangas). Todavia, mesmo que fale de divisão do trabalho ao invés de marginalização, a concepção ainda coincide com a dos teóricos da PHC: são as “diferenças de conhecimento e formação [que] mantêm as hierarquias da divisão do trabalho em seu devido lugar” (Backer, 2022, p.26, tradução nossa) 11. Ou seja: por serem excluídos do aparelho escolar, total ou parcialmente, a classe trabalhadora (marginalizada, como afirmava Saviani) não possui os conhecimentos necessários para realizar o mesmo trabalho desempenhado pelos capangas (que exercem funções de repressão dentro da fábrica/ do processo produtivo)12. Por isso, ficam encurralados em trabalhos manuais, que não exigem o mesmo know-how que o trabalho intelectual.
Em Saviani, essa seria a consequência de um processo de alienação do saber13, que se torna, como todos os meios de produção no capitalismo, propriedade burguesa. Ainda assim, é ela que institui a contradição fundamental do capitalismo, que anunciaria sua ruína. Afinal, apesar do “saber produzido socialmente [ser] uma força produtiva, isto é, um meio de produção”14 e, como tal, “a tendência é torná-lo propriedade exclusiva da classe dominante”, no capitalismo
… Não se pode levar essa tendência às últimas consequências porque isso entraria em contradição com os próprios interesses do capital. […] se o trabalhador possui algum tipo de saber, ele é dono da força produtiva e no capitalismo os meios de produção são propriedade privada! (Saviani, 1991, p.81, grifos nossos).
Mas se isso é verdade, surge a questão: como o aparelho escolar pode ser “um mecanismo construído pela burguesia para garantir e perpetuar seus interesses” (Saviani, 2008, p.19) se ele é uma ferramenta de socialização do saber? Dito de outra forma: como o capitalismo pode se manter enquanto sustenta a existência de um aparelho que funciona para socializar um meio de produção, cuja propriedade os burgueses possuem? Como um aparelho tão ameaçador existe nesse sistema? Resposta: por conta de uma exigência técnica do processo produtivo. Afinal, “A educação é aquela região fora da produção que fornece as competências relevantes para o processo de trabalho existente” (Backer, 2022, p.27, tradução e grifos nossos).
Portanto, instala-se a seguinte contradição: ao mesmo tempo que é necessário que os trabalhadores mantenham-se alienados (presos em suas condições marginais; submissos ao sistema que os explora), esses mesmos trabalhadores precisam ter acesso ao saber transmitido pelo AIE escolar (uma necessidade técnica determinada pela estrutura econômica do capitalismo, que exige uma qualificação maior do trabalhador por conta da complexidade do seu processo produtivo, isto é, de todos os avanços tecnológicos envolvidos no desenvolvimento avançado dos meios de produção nesse sistema). Segundo Saviani, se essa contradição fosse explorada, ou seja, se a educação transgredisse o limite mínimo que o capitalismo se propõe a oferecer15, democratizando o pleno acesso ao conhecimento científico para todos os indivíduos (sem recorte de classe), os trabalhadores poderiam compreender melhor a realidade para que, consequentemente, fossem capazes de transformá-la.
Assim, a socialização do saber desembocaria no fim do capitalismo, não fosse a ideologia16. Segundo Backer, que divide o pensamento althusseriano em onze regras, essa seria a regra da competência: “reproduzir as relações de produção requer competências de ensino e aprendizagem que são qualificações para a divisão técnica do trabalho enquanto, simultaneamente, formam a submissão à ideologia dominante” (Backer, 2022, p. 30-31, tradução e grifos nossos). Essa teoria da competência parece ser perfeitamente descrita por Cipriano Carlos Luckesi, em seu livro “Filosofia da Educação”, ao expor a teoria althusseriana:
A escola, segundo a análise de Althusser, é um instrumento criado para otimizar o sistema produtivo e a sociedade a que ele serve, pois ela não só qualifica para o trabalho, socialmente definido, mas também introjeta valores, que garantem a reprodução comportamental compatível com a ideologia dominante. Ela deve se tornar mais competente para manter uma sociedade determinada” (Luckesi, 2011, p.61, grifos nossos).
Esses valores que garantiriam a “reprodução comportamental compatível com a ideologia dominante” aparecem em Althusser como “as regras das boas maneiras”. A citação de Althusser feita por Backer (incluindo as elipses do último, indicando seu recorte da passagem em questão) indica onde tal concepção se baseia, dentro da obra althusseriana:
Mas o que todo mundo também “sabe”, isto é, o que ninguém se importa em conhecer, é que, ao mesmo tempo e junto com essas “técnicas” … e esses “conhecimentos”… aprendem-se na escola as ‘regras’ das boas maneiras… o que significa dizer, de forma clara, regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e, no final das contas, regras da ordem estabelecida pela dominação de classe (Althusser apud Backer, 2022, p.29, tradução e grifos nossos).
Se tomarmos o texto de Althusser a partir dessa interpretação, é possível concluir que existem, portanto, dois processos simultâneos ocorrendo dentro do aparelho escolar (ou ainda, que há duas competências sendo desenvolvidas): (1) “a qualificação (ensino de habilidades e técnicas)”; (2) “a instrução na ideologia dominante (ensinar o respeito pela sociedade como ela é)” (Backer, 2022, p.30, tradução nossa).
Dois pressupostos sustentam essa concepção: (1) afirmar que há um processo de qualificação dos alunos dentro do AIE escolar (e apenas nele) pressupõe que existe um tipo de conhecimento exclusivo à escola (e que, portanto, apesar da vontade burguesa, o papel do aparelho escolar, que ele não pode evitar exercer, é a socialização do saber); (2) afirmar que há um processo de instrução na ideologia dominante pressupõe que, ao lado do saber genuíno que é ensinado pela escola, alguns valores são ensinados para neutralizar as verdades do conhecimento transmitido, mantendo os indivíduos alienados apesar do saber socializado.
Althusser certamente possui passagens que corroboram essa interpretação, como: “a reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução de sua qualificação, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução de sua submissão às regras do respeito à ordem estabelecida” (Althusser, 1999, p.76). A parte de “Sobre a Reprodução” que contém essa citação é, inclusive, precisamente a mesma a que Backer se refere ao falar de sua teoria da competência:
Na escola, os alunos ficam mergulhados em ideologia, através do processo de se fazer competente, em que aprendem a se tornar qualificados e submissos à sociedade como ela é. No entanto, este processo não instala nenhum tipo de “maquinaria” em suas cabeças. O processo de instruir a submissão à ideologia dominante tem como objetivo, precisamente, evitar a necessidade de garantir que os alunos sejam vigiados “por um policial individual no seu pé”. Ao mesmo tempo que aprendem a realizar tarefas, aprendem também a confiar nas relações de produção por conta própria e, então, (como Althusser dirá mais tarde) “andam sozinhos”. A instrução na submissão à ideologia dominante é a principal maneira de reproduzir a força de trabalho (Backer, 2022 p.30, tradução e grifos nossos).
A expressão “policial individual no seu pé” é utilizada logo depois da última citação de Althusser apresentada por nós. No mesmo parágrafo, lê-se:
[…] a Escola […] ensina determinados ‘savoir-faire’, mas segundo formas que garantem o submetimento à ideologia dominante, ou sua ‘prática’; aliás, todos os agentes da produção, da exploração e da repressão, sem falar dos ‘profissionais da ideologia’ (Marx), devem ser ‘impregnados’, de um modo ou de outro, por essa ideologia para cumprirem conscienciosamente (e sem necessidade de ‘um policial individual no seu pé’) suas tarefas (Althusser, 1999, p.76).
Mas o que significa não ter a necessidade de um policial individual no seu pé? Chegamos à raiz dessa leitura da teoria althusseriana sobre o aparelho escolar: a contraditória concepção de Althusser acerca da ideologia.
As contradições de Althusser: ideologia, qualificação e saber.
Em “Sobre a Reprodução”, a imagem de um policial particular é recuperada em uma crítica de Althusser à parte do movimento estudantil de sua época17.
[O] hebdomático Action escrevia, recentemente, em um gigantesco desenho na primeira página a palavra de ordem: “Expulse o tira que está na sua cabeça!” […] Com efeito, o mito “totalitário” do Grande Inquisidor onipresente18, assim como o mito anarquista do tira onipresente “em sua cabeça”, repousam sobre a mesma concepção antimarxista do funcionamento da “sociedade” (Althusser, 1999, p.200).
Althusser denunciava a concepção por ser policialesca, associada a uma noção antimarxista de dominação total, poder absoluto e autoritarismo (termos nossos)19. Segundo essa lógica, há uma ordem absoluta e a mente dos indivíduos é condicionada através do controle do seu comportamento ou do convencimento ideológico. Assim, as ideias originais de cada um (que existiam previamente em sua consciência, como resultado de seu livre pensar) são substituídas por ideias falsas, que distorcem e escondem a verdade.
Entretanto, apesar de criticar essa ideia, Althusser não rompe completamente com ela. Nessa parte de “Sobre a Reprodução”, o autor apresenta, simultaneamente, duas concepções opostas de ideologia, que sobrevivem e se digladiam durante toda a obra: uma idealista e uma materialista. Cada uma corresponde a uma interpretação diferente de suas formulações sobre o AIE escolar. Uma delas é compatível justamente com a concepção de aparelho escolar como aquele que instrui os alunos a adquirir certas competências (qualificação e submissão).
A palavra de ordem de Action é, desse ponto de vista, uma pequena maravilha teórica já que, em vez de dizer: “Combata as ideias falsas, destrua as ideias falsas que tem na sua cabeça! ideias falsas por meio das quais a Ideologia da classe dominante o ‘leva na conversa’ e substitua-as por ideias justas que lhe permitirão comprometer-se com a luta de classe revolucionária em favor da supressão da exploração e da repressão que garante sua manutenção!”, Action declara: “Expulse o tira que tem na cabeça!” (Althusser, 1999, p.200, grifos nossos).
Aqui, a ideologia dominante funciona a partir de um mecanismo discursivo que leva os indivíduos na conversa, instaurando ideias falsas em suas cabeças. Para combatê-la, é necessário substituir as ideias falsas da ideologia dominante por ideias justas. São essas ideias justas que permitem que os indivíduos se comprometam com a luta revolucionária. O que é a ideologia? Um discurso composto por ideias falsas. Onde se encontra a ideologia? Nas cabeças, isto é, na consciência dos indivíduos. Como combatemos a ideologia burguesa? Alterando a consciência dos indivíduos, livrando-se das ideias falsas ao substituí-las por ideias justas. Como mobilizar os indivíduos para que se comprometam com a luta revolucionária? Ao alterar seus pensamentos, suas ações também serão modificadas.
A interpretação do funcionamento do aparelho escolar implicada nessa (primeira) concepção de ideologia é a mesma que foi exposta até agora: ao lado de ideias justas (do conhecimento, do saber) passadas na escola, também são transmitidas ideias falsas, ideológicas (valores ou regras que são introjetados nas cabeças dos indivíduos).
Mas isso não é tudo. Além de considerar que ideologia é o mesmo que ideias falsas, Althusser diferencia e separa dois processos que, segundo ele, estavam sendo confundidos: o processo de transmissão dessas ideias falsas (submetimento ideológico) e o processo de repressão física. Segundo Althusser, a “palavra de ordem, que merece figurar no Museu da História das obras-primas do Erro teórico-político, substitui muito simplesmente, como se vê, as ideias pelo tira, isto é, o papel de submetimento exercido pela ideologia burguesa pelo papel exercido pela polícia” (Althusser, 1999, p.200, grifos nossos). Nesse argumento, a crítica é que o movimento estudantil substituía as ideias pelo tira, identificando o submetimento ideológico com a repressão policial. Indicada pela diferenciação entre aparelhos ideológicos e aparelho repressor de Estado, há em “Sobre a Reprodução” uma delimitação entre ideia e materialidade, consciência e corpo, convencimento e coerção20. Afinal, o submetimento realizado pelo aparelho ideológico escolar é apresentado pelo autor como um substituto à coerção policialesca (característica ao aparelho repressor), em um movimento diametralmente oposto ao Action: os indivíduos “andam sozinhos”, sem necessidade de repressão constante, ou seja, “sem um policial individual no seu pé”.
Entretanto, algo surpreendente acontece quando Althusser resolve dar exemplos dessa ideologia que “leva os operários na conversa”: ele nega que haja uma necessidade produtiva de qualificar os trabalhadores, contrariando completamente o pressuposto da concepção exposta até agora sobre o aparelho escolar. Uma das ideologias que ele usa como exemplo – entre “outras tantas ilusões e imposturas” – é a ideologia economicista-tecnicista, que afirma “‘[ser] necessário que existam postos diferentes na divisão do trabalho’ e tais indivíduos para ocupá-los” (Althusser, 1999, p.66). Isso significa que: “salvo na ideologia da classe dominante, não há ‘divisão técnica’ do trabalho: toda divisão ‘técnica’ do trabalho é a forma e o disfarce de uma divisão e uma organização social (= de classe) do trabalho” (Althusser, 1999, p.293, grifos nossos). Dito de outra forma: “Nesse nível, o argumento no 1 da luta de classe capitalista consiste na impostura ideológica da natureza ‘puramente técnica’ da divisão, organização e direção do trabalho” (Althusser, 1999, p.59).
Se a diferença de qualificação entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais não corresponde a nenhum imperativo produtivo, se os postos dos trabalhadores não-manuais não são justificáveis do ponto de vista técnico, se não há nenhuma necessidade, no âmbito da produção, que eles existam, então o que os diferencia não é sua qualificação, isto é, suas capacidades técnicas. Se isso é verdade, então a distinção entre trabalho manual e intelectual não é uma diferença de conhecimento (como queria Backer). Os trabalhadores intelectuais não possuem os trabalhos que realizam porque são mais qualificados, no sentido de possuir um saber mais complexo ou superior ao trabalhador manual. Eles não são mais capacitados do que os proletários, não possuem habilidades que correspondem especificamente às exigências técnicas do trabalho intelectual (pois estas não existem), enquanto os outros trabalhadores só têm a capacidade de exercer as funções mais simplórias do trabalho manual (que exigiriam menos conhecimento, isto é, menos qualificação, ou melhor, menos tempo dentro do AIE escolar). Para Althusser “A não-qualificação acaba sendo uma qualificação definida” (Althusser, 1999, p.177). Isso significa que não existem funcionários desqualificados. Dizer isso implica no reconhecimento que a “maior qualificação”, correspondente à inserção plena dos indivíduos no processo escolar, não oferece mais conhecimento, mais saber ou mais capacidade em nada. É por isso que:
[…] a divisão pretensamente técnica do trabalho [nem] sempre é vantajosa para os supostos ‘sábios’, ou seja, os engenheiros e outros técnicos superiores. Estes ignoram uma quantidade de coisas que os operários aprendem com sua prática ou através de esforços pessoais, e os operários acabam por aperceber-se de que, muitas vezes, ‘encontram solução’ para ‘problemas’ que deixam bastante embaraçados certos engenheiros que, assim, são julgados pelos operários (Althusser, 1999, p.62, grifos nossos).
A qualificação, portanto, não se refere a um processo de capacitação profissional, que transmite conhecimento técnico ou científico (elaborado, nas palavras de Saviani), mas à legitimação do aparelho escolar através de seu processo seletivo, que garante certos títulos necessários a certos trabalhos (não porque são essenciais para sua realização, mas porque são obrigatórios no processo de contratação de funcionários). O proletário não é supervisor pelo fato de não possuir a certificação, oferecida apenas pelo aparelho escolar, de que ele é qualificado para tal posto. Não importa quanta experiência nem quanto conhecimento o trabalhador manual tenha num assunto, não importa quão avançadas sejam as suas habilidades na área, não importa que ele seja capaz de realizar o trabalho, nem que ele deixe “certos engenheiros embaraçados” com seu saber: ele não será nem mesmo considerado para o cargo sem o aval do aparelho escolar. De fato, “A maioria das pessoas fica encurralada em um certo tipo de trabalho mal pago, habilitada para trabalhar máquinas, mas não para ser supervisora” (Backer, 2022, p.27, tradução e grifos nossos). Entretanto, isso simplesmente quer dizer que, por terem sido excluídos integral ou parcialmente do aparelho escolar, as habilidades desses trabalhadores não foram validadas por esse aparelho e, portanto, quaisquer conhecimentos que possuam não são considerados pelo contratante. Portanto, essa falta de habilitação não tem a ver com “sua formação pedagógica: sua instrução em conhecimentos necessários para a realização do trabalho” (Backer, 2022, p.27, tradução e grifos nossos), mas com o fato de não possuírem os títulos necessários, não para a realização do trabalho, mas para a sua contratação.
Esse é o mesmo fenômeno observado pela PHC (o que chama de marginalização), mas com uma outra explicação. Nesta outra interpretação da teoria althusseriana, a exclusão dos trabalhadores manuais da escola e seu parqueamento em trabalhos precários não é um contraponto a um processo de socialização do saber, realizado pelo aparelho escolar (ou seja, não é resultado de diferenças de conhecimento em relação aos trabalhadores intelectuais). Pelo contrário, resulta do fato de que o aparelho escolar monopoliza o saber, o que significa dizer simplesmente que apenas o saber validado por ele é considerado legítimo. Esse é processo descrito por Althusser quando afirma que:
O monopólio dos [trabalhadores intelectuais] tem como contrapartida, para a imensa maioria dos operários esgotados pelo ritmo de trabalho e, apesar do mito de todos os ‘cursos noturnos’ imagináveis21, uma proibição prática: proibição de ‘sair’ dos conteúdos e formas de ‘saber’ nos quais foram parqueados pela exploração (Althusser, 1999, p.61-62).
Aqui, falar em formas de “saber” (com aspas) não implica em afirmar que os trabalhadores manuais estão encurralados em um conhecimento espontâneo, não elaborado, inferior, menos complexo, ou que eles não têm a capacidade de aprimorar suas habilidades técnicas; mas apenas que eles não conseguem adquirir a forma do saber validada pelo aparelho escolar. Como definiu Nicos Poulantzas, aluno, colega e amigo de Althusser: o trabalho intelectual é “todo trabalho que toma a forma de um saber cujos trabalhadores diretos estão excluídos, seja porque saibam fazê-lo mas não o fazem de fato (e ainda não por acaso), seja porque não saibam efetivamente fazê-lo (pois são mantidos sistematicamente à distância), seja porque não haja aí simplesmente nada para saber fazer” (Poulantzas, 1975, p.258). O conhecimento não é uma propriedade burguesa (um meio de produção expropriado dos trabalhadores), não existe exclusivamente dentro dos limites do AIE escolar, nem é produzido apenas em seu interior. A definição do que é o saber escolar é simplesmente esta: uma forma de saber monopolizada pelos trabalhadores intelectuais, mantida à distância dos trabalhadores diretos. Nada mais.
Mas o que isso quer dizer? O que significa afirmar que existe uma forma de saber monopolizada pelo AIE escolar? O que caracteriza essa forma de saber senão um conhecimento superior, elaborado, sistematizado, mais complexo? Quais são suas especificidades? Se esse saber escolar não pode ser definido pelo conhecimento que oferece, qual a necessidade da escola? Se não há razão produtiva para a qualificação do trabalho, de onde vem o imperativo de educar os trabalhadores? Por que há divisão do trabalho?
A outra definição de aparelho escolar
Já abordamos as passagens em que Althusser privilegia a reprodução em seu ensaio mais famoso, seguindo sua promessa, no início de seus manuscritos, de que faria exatamente isso. Contudo, devemos, agora, recuperar os lugares em que o autor faz a luta de classes intervir, onde recupera suas determinações e desobedece a decisão arbitrária de deixá-la para depois. Em “Sobre a Reprodução”, Althusser, ao invés de logicamente deduzir uma necessidade produtiva do conceito de modo de produção (capitalista), traça um percurso histórico para localizar de onde surge a necessidade de educar as massas. Althusser remonta à Revolução Francesa, uma revolução burguesa “suja” por ter sido marcada por movimentos populares: como a “arraia-miúda e, muito rapidamente, o proletariado, ‘mergulharam’ nas lutas das jornadas revolucionárias, aprenderam a arte de construir barricadas e, assim, enfrentar as Forças Armadas” (Althusser, 1999, p.145). Assim, a burguesia teve que reagir e, rapidamente, organizar o povo ao seu favor: “a burguesia foi obrigada, por sua própria história, a ocupar-se da educação das massas populares” (Althusser, 1999, p.145, grifos nossos). A burguesia não é, portanto, obrigada a educar as massas por uma exigência econômica, para que os trabalhadores tenham maior domínio técnico e sejam mais capazes de produzir: ela educa as massas para que sejam contidas.22 Aqui, a luta de casses é a própria razão de existência do aparelho escolar (assim como dos outros aparelhos ideológicos): “Se os AIE têm a função de inculcar a ideologia dominante é porque há resistência. Se há resistência, é porque há luta” (Althusser, 1999, p.241).
A determinação não é econômica, mas política: sem aparelho escolar a burguesia não conseguiria se estabelecer como a nova classe exploradora (em detrimento da nobreza feudal), nem dominar a classe trabalhadora (que precisava ser educada para ser contida). Se as relações de produção capitalistas são necessariamente relações de exploração, então sem aparelhos de dominação, não há capitalismo. É por isso que a classe trabalhadora de que fala Saviani não é a mesma de Althusser (mesmo que o autor brasileiro atribua sua definição ao francês23): o proletário não existe na ausência dos aparelhos ideológicos, marginalizado, mas é produzido por eles. A classe trabalhadora não é impedida de acessar o saber escolar, que a permitirá pensar e agir, mas perfeitamente reproduzida pelo aparelho escolar, que organiza as massas para desmobilizá-las, separando-as em trabalhadores intelectuais e manuais para impedí-las de pensar e agir por conta própria. Mas como?
Para responder a pergunta, precisamos nos distanciar da concepção de ideologia exposta anteriormente. Se a ordem dominante possuísse apenas duas formas de garantir seu poder (o processo de inculcação ideológica, realizado pelos aparelhos ideológicos, e a repressão, realizada pelo aparelho repressor), então só haveria uma maneira de reproduzir ideologia: introjetando valores nas cabeças dos indivíduos, que são convencidos por ideias falsas para que sigam as regras determinadas pela ordem dominante, ensinando-os a “confiar nas relações de produção por contra própria” (Backer, 2022, p.30, tradução nossa), andando sozinhos, sem precisar de um policial individual no seu pé. Assim, suas “ideias justas”, originais (que existiam previamente em suas consciências como resultado de seu livre pensar), seriam substituídas por ideias falsas através de práticas que distorcem a realidade e os impedem de enxergar a verdade. Nessa concepção, a reprodução ideológica é simplesmente um mecanismo de repetição, em que ideias falsas são transmitidas através de diferentes aparelhos, mas sempre exatamente da mesma forma, isto é, através da introjeção de valores.
Althusser reconhece a fragilidade desses argumentos, sentindo a necessidade de atacar a conclusão decorrente deles: se o processo de inculcação ideológica funciona através da imposição de ideias, sua transmissão só pode ser autoritária, como se houvesse um policial particular instalado nas cabeças dos indivíduos (ao invés de seus pés). Entretanto, a tentativa de arrancar o “tira” dessa concepção para romper com a conclusão, sem contestar seus pressupostos, faz com que ela se mantenha a mesma, ainda que com ressalvas. Mas esta defesa, absolutamente ineficiente, não é a única presente no texto.
Ao lado da crítica idealista de que ideias não podem ser confundidas com repressão (o “tira”) há uma outra, finalmente compatível com a linha dominante na obra de Althusser (seguindo a novidade de sua filosofia, caracteristicamente althusseriana): “‘Expulse o tira que está na sua cabeça!’ [é uma] proposição que não é enunciável e pensável a não ser que se faça ‘passar por baixo do pano’ a ideologia, a não ser que esta seja confundida, pura e simplesmente, com a repressão” (Althusser, 1999, p.200, grifos nossos). A troca de “ideias” por “ideologia” é sintomática: Althusser está assumindo uma concepção materialista, em que a ideologia não é mais entendida como sinônimo de ideias falsas.
A mudança conceitual é comprovada em seguida, quando Althusser esclarece o que quer dizer quando fala em repressão: “os aparelhos de Estado – como vimos, estes comportavam um aparelho repressor e, ao mesmo tempo, aparelhos ideológicos – são reduzidos à noção abstrata de ‘repressão’” (Althusser, 1999, p.201). Aqui, Althusser mantém a afirmação de que os aparelhos ideológicos nada têm a ver com repressão, mas ao adicionar que os aparelhos repressivos também não podem ser igualados a essa “noção abstrata”, muda o rumo da argumentação, agora diretamente voltada à análise da ideologia como um conjunto de práticas.
O problema, aqui, é justamente a compreensão dos aparelhos de Estado através de uma visão policialesca e idealista: a redução tanto dos aparelhos ideológicos quanto do aparelho repressivo à noção de repressão faz com que os últimos sejam entendidos simplesmente como um mecanismo de coerção física, enquanto a ideologia ficaria responsável pela introjeção de valores e ideias (falsas) nas cabeças dos indivíduos. Ao considerar que só existem esses dois modus operandi (repressão e introjeção de ideias e valores), essa concepção ignora as diferenças das práticas de cada AIE, que os definem e os distinguem entre si. Reduzir a ideologia (e não as “ideias”) à repressão significa, portanto, ignorar a particularidade das práticas que compõem cada aparelho ideológico, o modo como elas reproduzem as relações de produção e, no caso do aparelho escolar, mantêm a divisão do trabalho. Essa segunda concepção de ideologia é a que nos permite pensar as especificidades do aparelho escolar e seus efeitos.
As duas concepções de ideologia expressas em “Sobre a Reprodução” estão presentes, através da utilização de passagens desse livro, no próprio texto de Backer. É inegável que o recorte do autor de uma das citações de Althusser corresponde àquela primeira concepção de ideologia, idealista: “ao mesmo tempo e junto com essas “técnicas” … e esses “conhecimentos”… aprendem-se na escola as ‘regras’ das boas maneiras” (Althusser apud Backer, 2022, p.29, tradução e grifos nossos). Nela, as “regras das boas maneiras” são introjetadas através do processo de instrução na ideologia dominante ao lado de savoir-faire. Ou seja: a inculcação ideológica e o ensino de técnicas e conhecimentos aparecem como dois processos simultâneos, que ocorrem juntos, mas que, consequentemente, são distintos um do outro (ninguém anda “junto” e “ao mesmo tempo” de si mesmo).
Entretanto, se voltarmos a uma outra passagem de Althusser utilizada por Backer (em sua exposição sobre a regra da competência), mas partindo, desta vez, de uma concepção materialista de ideologia, é possível chegar a uma outra conclusão sobre o funcionamento do aparelho escolar. Segundo Althusser, esse AIE “ensina determinados ‘savoir-faire’, mas segundo formas que garantem o submetimento à ideologia dominante, ou sua ‘prática’; aliás, todos […] devem ser ‘impregnados’, de um modo ou de outro, por essa ideologia para cumprirem conscienciosamente (e sem necessidade de um ‘policial individual no seu pé’) suas tarefas” (Althusser, 1999, p.76). Se aceitamos a concepção sugerida por Althusser, de que os indivíduos são “impregnados” pela ideologia dominante para que cumpram suas tarefas conscienciosamente, certamente podemos ver como a passagem permite a interpretação de Backer. Entretanto, apesar do idealismo que exprime, ao afirmar que as formas que garantem o submetimento à ideologia dominante nada mais são do que as práticas através das quais os savoir-faire são ensinados, Althusser sugere que o processo de instrução na ideologia dominante e de qualificação são uma coisa só. Afinal, a ideologia é definida como a forma desses savoir-faire no aparelho escolar. Perguntar-se, então, o que é a ideologia reproduzida por esse AIE é o mesmo que questionar: qual é a forma de saber transmitida pelo aparelho escolar? Ou ainda: quais são as práticas de qualificação da força de trabalho?
[A] prática científica não está confinada à produção de resultados puramente científicos, […] [pois estes] são objeto de um currículo que é uma parte indispensável da educação da força de trabalho. Esse currículo, entretanto, não reproduz todo o processo da produção do conhecimento; ele se limita a expor seus resultados básicos e, de acordo com o equilíbrio de forças na conjuntura política, necessariamente os expõem na forma da ideologia dominante, a ideologia racionalista que negligencia o papel da ideologia, da filosofia e da luta de classes. Portanto, esse currículo contribui, em sua maneira específica, para a reprodução das condições da produção científica (Althusser, 2017, p.106-107, tradução e grifos nossos).
Na escola são passados os resultados básicos da prática científica, expostos na forma da ideologia dominante específica ao aparelho escolar: a ideologia racionalista, que estabelece que o conhecimento é objetivo, isto é, idêntico àquilo que alega explicar. Nessa concepção conhecer significa achar, nas profundezas do objeto, o que ele realmente é. Não é difícil compreender como essa ideologia “negligencia o papel da ideologia, da filosofia e da luta de classes”: as categorias e os conceitos utilizados na produção científica são considerados absolutamente independentes da história, da conjuntura política e de tradições filosóficas determinadas, e seus pressupostos não são vistos como ideológicos, mas extraídos diretamente do real24. Como denuncia Althusser: “ciência é ciência: ela sabe a verdade por definição e não pode ser questionada” (Althusser, 2017, p.95, tradução nossa).
Todavia, é preciso tomar cuidado: ideologia é forma e forma é prática. Não estamos falando de um conjunto de ideias introjetadas nas cabeças dos indivíduos: são as práticas do aparelho escolar que decretam que os resultados da ciência são encontrados no próprio objeto, sendo idênticos ao objeto em si. São elas que estabelecem que produzir ciência é o mesmo que desvelar o real, encontrar nele uma explicação que o esgote, que dê conta de explicá-lo por completo. São as condições da produção científica que determinam que nada escapa aos resultados da prática científica, que seus postulados sempre correspondem exatamente ao que o objeto verdadeiramente é, que conhecimento do objeto e objeto são exatamente a mesma coisa. Como? Estipulando que qualquer conhecimento produzido no AIE escolar deve ser comprovado através de uma justificativa metodológica, demonstrando que os procedimentos utilizados seguem um método objetivo, sancionado e transmitido apenas por esse aparelho, baseado na verificação empírica da realidade, sem nenhuma interferência subjetiva, isto é, do arbítrio do cientista (bem como da ideologia, da filosofia e da luta de classes, que o influenciariam caso sua prática não fosse regulada “objetivamente”).
Essas são as “regras” da produção do conhecimento dentro do aparelho escolar: não se trata de uma introjeção de valores, mas do estabelecimento de determinadas relações através de práticas específicas a esse aparelho. A regra que é invariável aqui não é o método específico que é utilizado, mas o fato de que para ser válida a pesquisa precisa seguir um método. Isso significa dizer que toda pesquisa deve se basear em um modelo normativo que sempre já existe, ou seja, foi construído a priori, antes da pesquisa e independente dela. Mais do que isso, ainda que os procedimentos que determinam a forma da análise do que quer que seja variem, “o que quer que seja” é invariavelmente tratado como objeto para ser investigado de fora, livre de qualquer interferência na percepção do sujeito (isto é, “objetivamente” – a palavra é sintomática), para que ele possa chegar, obrigatoriamente, na verdade.
Temos, portanto, três partes envolvidas, todas definidas pelo estabelecimento da necessidade de comprovação da cientificidade de uma teoria: sujeito (do conhecimento), método, objeto (do conhecimento). É imperativo, segundo as práticas do aparelho escolar, que haja um recorte da parte do real que se deseja pesquisar (o objeto), sendo que cada passo da investigação deve ser justificado teoricamente, através de um método científico, cujos procedimentos determinam cada momento da pesquisa, para garantir a não-interferência de qualquer subjetividade que possa obscurecer a visão do pesquisador (o sujeito). Estas são as condições da produção científica, reproduzidas pelo aparelho escolar: (1) o real deve ser reconhecido como objeto do conhecimento (apropriadamente recortado, segundo categorias reconhecidas academicamente); (2) as práticas envolvidas só podem ser realizadas pelo sujeito do conhecimento (“qualificado” como tal pelo AIE escolar); (3) os métodos sancionados pelo aparelho escolar precisam regular a pesquisa, para garantir sua objetividade e, assim, sua veracidade.
Se essas relações parecem arbitrárias, é porque o são: assim como não há nenhuma necessidade produtiva para a divisão do trabalho, não há nenhum imperativo inerente ao processo de produção de conhecimento em si que determina que o real deve ser tratado como objeto por um sujeito singular, através de um método específico. Essa é uma determinação do AIE escolar: “[A] validade de suas afirmações, suas condições e as formas de experimentação e precisão de seus resultados” são garantidas “sob a condição de que [o cientista] siga cuidadosamente as regras” (Althusser, 2017, p.94, tradução e grifos nossos). Mas por quê? Se o conhecimento está embutido no real, o que impede que possamos acessá-lo através de outros meios? E o que garante que um método sancionado academicamente é, certamente, capaz de atingir a verdade do objeto? Resposta: o monopólio do saber.
Para que haja monopólio, isto é, para impedir que qualquer conhecimento possa ser produzido fora dos limites do aparelho escolar, por outras práticas que não as suas, é necessário que haja uma forma de saber legítima, isto é, exclusiva ao aparelho escolar. É isso que significa dizer que “a Escola […] ensina determinados ‘savoir-faire’, mas segundo formas que garantem o submetimento à ideologia dominante, ou sua ‘prática’” (Althusser, 1999, p.76, grifos nossos) ou que a ciência “não é encontrada jamais de forma pura ou neutra, mas sempre sob sua forma de apropriação pela classe dominante, isto é, sob a forma de saber estritamente imbricado na ideologia dominante”, que existe através de “uma série de práticas materiais, rituais” (Poulantzas, 1975, p.256, grifos nossos). A forma do saber exclusiva ao aparelho escolar é aquela que trata o real como objeto do conhecimento, que só pode ser utilizada pelo sujeito do conhecimento e que deve, invariavelmente, ser comprovada como verdade através de sua conformidade com um método científico, sancionado pelo AIE escolar e, necessariamente, exclusivo a ele.
É isto que significa dizer que “A reprodução da qualificação da força de trabalho é garantida nas formas e sob as formas do submetimento ideológico” (Althusser, 1999, p.76, grifos nossos): o monopólio do saber (escolar) institui, na prática, a noção de que são “As diferenças de conhecimento e formação [que] mantêm as hierarquias da divisão do trabalho em seu devido lugar” e que “o proletário estrito fica preso a esse tipo de trabalho [manual] por causa de sua falta de conhecimento e qualificação” (Backer, 2022, p.26, tradução e grifos nossos). Quem estipula que o método científico é o único capaz de descobrir a verdade não é a “educação”25, mas o aparelho escolar, que é monopólio de saber. Suas práticas decretam que apenas quem “possui” o método científico pode desvelar o real, que apenas o sujeito do conhecimento pode conhecer o objeto, que apenas o trabalhador intelectual pode acessar a verdade.
A existência do método científico é necessária para que haja sujeito do conhecimento, ou seja, para que o “saber” não possa ser acessado por qualquer um. O estabelecimento de que a verdade só pode ser descoberta através de práticas específicas já implica em monopólio, já determina sua exclusividade e, assim, já institui a necessidade de distinção. É preciso separar as práticas que produzem saber daquelas que não o fazem; é preciso selecionar os indivíduos que se conformam aos procedimentos capazes de desvelar a verdade; é preciso diferenciar aqueles que completam seu processo de qualificação escolar daqueles que não o fazem. Para legitimar o aparelho escolar é necessário deslegitimar tudo o que se encontra fora de seus limites ao permitir que apenas alguns possam acessar suas práticas (aqueles que foram treinados para obedecer suas “regras”).
O aparelho escolar não apenas forma o sujeito do conhecimento, nem simplesmente qualifica seus alunos para serem trabalhadores intelectuais: ele o faz sob a condição que desqualifique outros para que sejam trabalhadores manuais, para que sejam “não-sujeitos do conhecimento”, cujas ideias são deslegitimadas por não terem acesso às “regras” necessárias para chegar na verdade. É por isso que “a não-qualificação é uma qualificação definida” (Althusser, 1999, p.177): o aparelho escolar não forma apenas trabalhadores intelectuais; ele só o faz sob a condição de formar, também, trabalhadores manuais. Trata-se da garantia prática de que o conhecimento científico institucionalizado pelos aparelhos burgueses é a única forma legítima de conhecimento.
A ideologia é composta, portanto, de certas práticas que formam sujeitos determinados (correspondentes às especificidades de cada AIE). Era isso que Althusser chamava de interpelação ideológica. O problema é a forma como o autor representa esse processo em seu texto, postulando que: a ideologia interpela os indivíduos concretos como sujeitos. A afirmação é muito suspeita se considerarmos que o autor denuncia o uso da expressão “indivíduos concretos” em “A Ideologia Alemã”: Althusser aponta que, apesar de Marx criticar os “ideólogos” de seu tempo por utilizarem a categoria burguesa de “indivíduo” 26, como ainda não tinha desenvolvido nenhum conceito para substituí-la, chama o indivíduo de “concreto”, esperando que o adjetivo convocado neutralize o idealismo burguês pressuposto no substantivo.
Da mesma forma, ao falar do processo de interpelação, mesmo que demonstre que o indivíduo é produzido pelos aparelhos burgueses (sendo, por definição, absolutamente ideológico), não apenas utiliza-se do termo como afirma o oposto: postula que os “indivíduos” são os interpelados. A máxima althusseriana não faz sentido: se os indivíduos são produzidos no processo de interpelação, então eles não podem existir antes dele. Mas Althusser não diz apenas “indivíduo”, diz “indivíduo concreto”. E o faz por um motivo simples: Althusser sabe o resultado do processo de interpelação ideológica, mas não o ponto de partida. Algo que não é sujeito vira sujeito. Esse “algo” não pode ser o “indivíduo” porque este é um conceito idealista, produto do próprio processo de interpelação ideológica. Solução: não é o indivíduo “ideal burguês”, mas o indivíduo “concreto” que é interpelado. Nos conformar com essa resposta significa comprar que o “indivíduo concreto” é diferente do “sujeito” (e do “indivíduo” despido de adjetivações). Se aceitamos a distinção, o processo de interpelação vira mera imposição de identidades sobre indivíduos já existentes, voltando à compreensão de ideologia como ideia: os aparelhos burgueses alteram a percepção dos indivíduos sobre si mesmos, convencendo-os de que são um outro que não seu eu original, substituindo suas ideias autênticas (“justas”) por ideias falsas.
A lacuna de Althusser (que, sem saber quem é interpelado, utiliza a categoria impostora do indivíduo concreto) pode ser atribuída à sua insistência em separar reprodução e luta de classes. Ao fazê-lo, considerou apenas um lado da disputa: a prática política burguesa e seus aparelhos de dominação, sendo obrigado a investigar os aparelhos ideológicos em sua relação com os indivíduos, isto é, aqueles que são o resultado do processo de interpelação que descreve, vivendo suas condições materiais exatamente como as práticas dos AIEs exigem que o façam. Quem somos se não formos sujeito do conhecimento, nem não-sujeito do conhecimento? Quem somos se não formos trabalhadores intelectuais nem manuais? Quem somos fora das formas de existência determinadas pela prática burguesa? O que podemos ser através das práticas que se desenvolvem contra a burguesia, contra o Estado, contra o capitalismo, fora dos AIEs? Eis a lacuna de Althusser. Se considerarmos a luta de classes, poderemos abrir o caminho para responder: quem a ideologia (dominante) interpela em sujeito?
A ambiguidade do monopólio do saber
Todos os pressupostos que sustentam a interpretação hegemônica da teorização althusseriana sobre o aparelho escolar (que esse AIE realmente qualifica seus alunos para que tenham uma maior capacidade técnica em suas funções no processo de produção; que a necessidade de capacitação profissional é uma determinação da estrutura econômica do modo de produção capitalista; que o conhecimento transmitido pela escola é um meio de produção, isto é, uma propriedade burguesa, expropriada dos trabalhadores; que a escola reproduz a configuração de classe do capitalismo por marginalizar os trabalhadores manuais e sua prole, impedindo-os de possuir o conhecimento necessário para realizar as funções ocupadas pelos trabalhadores intelectuais; que a reprodução ideológica dentro do aparelho escolar é um processo concomitante à qualificação dos alunos, transmitindo ideias falsas ao lado do conhecimento genuíno socializado por esse aparelho) podem ser encontrados em um único termo: saber.
Quando utilizado sozinho, “saber” pressupõe não apenas que, de fato, existe um conhecimento objetivo (correspondente à verdade do objeto, que pode ser encontrada dentro do real, através das ferramentas corretas, isto é, das práticas do aparelho escolar), mas que, por ser extraído diretamente da realidade, esse conhecimento é uno: historicamente, a humanidade como um todo vai descobrindo a verdade, acumulando concepções que correspondem exatamente ao objeto ao qual elas se referem, que expressam tudo o que ele realmente é, para sempre. Como já vimos, a “ideologia racionalista… negligencia o papel da ideologia, da filosofia e da luta de classes” (Althusser, 2017, p.106-107, tradução nossa). Ou seja, a ideologia instituída pelas práticas do AIE escolar oculta sua construção histórica, a luta que determina a necessidade de sua própria existência, para desorganizar as massas através de seu monopólio e, assim, manter a dominação burguesa. Todavia, como destaca Althusser:
Assim como a ideia de liberdade, que costumava ser associada com a ideia de ciência, não surgiu aos filósofos burgueses clássicos só por meio da prática científica mas, primordialmente, a partir da prática da luta de classes […], a ideia de ordem também não surgiu aos positivistas só através de leis naturais […] Ela surgiu, primordialmente, da prática da luta de classes de uma burguesia forçada, agora, a impor a sua ordem, porque ela estava sendo desafiada pelos trabalhadores. A burguesia a impôs em nome de uma filosofia que garantia que a ordem era necessária, e que a ordem burguesa era a ordem verdadeira (Althusser, 2017, p. 97, tradução nossa).
Não é coincidência que, ao apresentarmos uma outra leitura do conceito de aparelho escolar em Althusser (sugerida por suas contradições), utilizamo-nos de passagens que falavam não simplesmente de um “saber” monopolizado por esse AIE, mas uma “forma de saber”. Afinal, o que é exclusivo ao aparelho escolar não é o conhecimento, mas a forma de um saber cujos trabalhadores diretos estão excluídos, que está imbricada na ideologia dominante (como afirmava Poulantzas) e que garante o submetimento ideológico (nas palavras de Althusser). Essa é a diferenciação necessária para barrar a interpretação hegemônica de aparelho escolar, junto de seus efeitos políticos. Afinal, apesar do que a ideologia racionalista estabelece (através das práticas do aparelho escolar), ela mesma está mergulhada na luta de classes. Portanto, pedimos permissão para cometer a ousadia de alterar, mesmo que provisoriamente, o termo althusseriano. Se o “saber” presume um conhecimento objetivo e universal, imune aos imperativos da luta de classes, então ele é a forma que tomam os savoir-faire do AIE escolar, suprimindo suas determinações filosóficas, ideológicas e políticas. Assim, sugerimos que o que é monopolizado por esse aparelho é a forma-saber.
Essa distinção é necessária por conta das implicações políticas da utilização solitária do “saber”. Não é acaso que uma proposta como a PHC, que se afilia política27 e teoricamente ao marxismo (com o objetivo de construir uma teoria do ponto de vista dos dominados para servir de arma de luta na batalha por hegemonia contra a burguesia28), acabe defendendo abertamente a ideologia dominante. Afinal, pressupõe que há um (único) conhecimento objetivo desvelado historicamente e confinado aos limites do aparelho escolar, que só pode ser acessado através de suas práticas. Como destaca Favaro (2014), a pedagogia histórico-crítica considera que…
A história demonstrava que a própria ideologia dominante, com suas noções modernas, demoliu os núcleos arcaicos do senso comum, como as concepções mágicas e o fatalismo. Isso permitiu um avanço na consciência dominada, principalmente quando esta entrou em contato com essas noções por meio das instituições pedagógicas. Assim, segundo [Carlos Roberto Jamil] Cury [teórico da PHC], “a função civilizadora da escola” manifestava-se em uma dupla dimensão: “de ser espaço aberto à sociedade civil e de ser lugar aberto a uma racionalidade de caráter desantromorfizador”. Pautado em Snyders, ele assumiu a posição de que a escola também avançava e civilizava, possibilitando a reelaboração de elementos culturais, principalmente quando se orientava por ideias pedagógicas progressivas, que lhe ofereciam condições de reutilizar, sob outra direção, as facetas da realidade mostradas pela ideologia dominante, ao lado das mistificações (Favaro, 2014, p.59-60).
Nessa versão da história, a ideologia dominante é constituída por um saber objetivo (“ao lado das mistificações”), que nos mostra “as facetas da realidade”. Além disso, é transmitida pelas instituições pedagógicas, que permitem a todos aqueles que se encontram em seu interior, “a apropriação do que exista de melhor no patrimônio cultural da humanidade” (Saviani; Duarte, 2012, p.5). Se o saber é objetivo (resultado de um procedimento que desvela o real, que expressa um conhecimento que corresponde exatamente às coisas como elas são), então a consciência dominada só avança quando esta entra em contato com as instituições pedagógicas. Aqui, o projeto civilizatório da burguesia não é uma prática política genocida, imperialista e colonial de dominação, mas um instrumento de libertação; a ideologia dominante civiliza para demolir “os núcleos arcaicos do senso comum” e não para subjugar, explorar e oprimir o povo; a “função civilizadora da escola” é marcada pela racionalidade, e é utilizada para promover “um avanço na consciência dominada”, não para destruir as organizações populares e sua própria ideologia, cultura e conhecimento. Ao tentar restringir a luta revolucionária ao aparelho escolar, a PHC defende o monopólio da forma-saber e, assim, a diferenciação entre trabalhadores manuais e intelectuais, entre sujeito do conhecimento e não-sujeito do conhecimento, fazendo qualquer movimento contra o capitalismo dependente de um aparelho burguês, ao mesmo tempo que retira o protagonismo do povo de sua própria luta. Assim, demonstra perfeitamente aquilo que Althusser descreve ao falar da Revolução Francesa: a produção do sujeito do conhecimento, do intelectual, corresponde à criação de uma camada restrita cuja condição de existência é que pensem para o povo, para que ele não o faça por meio de práticas próprias. Essa é uma determinação da própria forma-saber, correspondente ao aparelho escolar, seu savoir-faire:
Não é possível ensinar um conhecimento (savoir) puro, que não seja ao mesmo tempo um savoir-faire – isto é, uma definição do saber-como-agir-em-relação-a-esse-conhecimento, e de sua função teórica e social. Este know-how… implica uma atitude política em relação ao objeto do conhecimento, em relação ao conhecimento como objeto, e em relação ao seu lugar na sociedade. Todo ensino de uma ciência, queira ou não queira, transmite uma ideologia da ciência e de suas descobertas – ou seja, um certo saber-como-agir-em-relação-à-ciência e suas descobertas, baseado em certa ideia do lugar da ciência na sociedade e em certa ideia do papel dos intelectuais que se especializam no conhecimento científico e, consequentemente, da divisão entre trabalho manual e intelectual (Althusser, 1990, p.95, tradução e grifos nossos).
Se a divisão do trabalho não é uma determinação produtiva, mas política, e o aparelho escolar é uma ferramenta de dominação, fazer parte dele implica em uma atitude política que mantém o monopólio da forma-saber. Afinal, seu “saber-como-agir” não se refere simplesmente a certas técnicas ou procedimentos: agir através do aparelho escolar é canalizar a produção de conhecimento (ao mantê-la dentro dos limites das práticas desse AIE) para a forma-saber, que está imbricada na ideologia dominante, restringindo a pesquisa às condições da produção científica no aparelho escolar (o cientista, sendo sujeito do conhecimento, colocado em relação ao objeto do conhecimento, produz, através dos procedimentos sancionados por esse AIE, certos resultados que se apresentam como uma verdade objetiva, idênticos ao objeto investigado). A validade das produções dos trabalhadores intelectuais depende de sua conformidade com as regras da prática científica dentro do aparelho escolar e se apoia na legitimidade dos métodos utilizados, isto é, da forma-saber, monopolizada por esse aparelho. É por isso que defender a autoridade do conhecimento produzido (exclusivamente) pelo “intelectual” é defender seu lugar na sociedade, isto é, o monopólio do aparelho escolar.
É assim que esse AIE cumpre com sua função como aparelho de dominação: separa os trabalhadores de acordo com seu acesso (ou não) à forma-saber (cujo monopólio ele possui), transformando-os em sujeitos do conhecimento ou em não-sujeitos do conhecimento, estabelecendo que apenas os primeiros são capazes de produzir saber, fazendo com que todo o conhecimento produzido pelos segundos não seja considerado válido, ou verdade. O aparelho escolar não determina, necessariamente, que os não-sujeitos do conhecimento não são capazes de pensar, mas que o resultado desse pensar não corresponde ao real (pois as condições da produção científica não foram seguidas), sendo apenas mistificações.
A defesa da manutenção do monopólio da forma-saber e o consequente desprezo pelo popular fica clara na crítica de Saviani a Christian Baudelot e Roger Establet (alunos de Althusser), em que afirma que o maior erro dos franceses é acreditar que “A transformação social não passa pela escola”, levando-os à absurda conclusão de que “A ideologia proletária, a cultura proletária, cuja resistência, autonomia e consistência eles admitem, surgem dos movimentos da prática e das lutas populares” (Saviani, 1991, p.74, grifos nossos). Mesmo que os autores admitam a existência de uma ideologia e cultura proletária, por considerarem não apenas que elas “Não dependem propriamente do processo de escolarização” (Saviani, 1991, p.74), mas que surgem apenas dos “movimentos da prática e das lutas populares”, eles não teriam uma “proposta de intervenção prática” e limitavam-se “a constatar e, mais do que isso, a constatar que é assim e não pode ser de outro modo” (Saviani, 1991, p.72, grifos nossos). Para Saviani, qualquer prática independente dos aparelhos burgueses é o mesmo que nada, afinal, considera que os únicos capazes de fazer avançar a consciência de classe dos trabalhadores são os intelectuais, através das práticas do aparelho escolar29.
Entretanto, em sua defesa do aparelho escolar como necessário para desenvolver a consciência de classe dos trabalhadores30, Saviani acaba reconhecendo que o conhecimento produzido pelo povo é uma ameaça à existência do aparelho escolar, ao perguntar: “Se as escolas reiterarem a cultura popular, qual será sua função? Para desenvolver cultura popular, essa cultura assistemática e espontânea, o [povo] não precisa da escola. Eles a desenvolvem por obra de suas próprias lutas, relações e práticas” (Saviani, 1991, p.84). Se o objetivo for produzir cultura popular, o aparelho escolar não pode fazer parte desse processo, afinal, o povo o faz “por obra de suas lutas, relações e práticas”. Este é o fato que o assombra: a classe trabalhadora não desenvolve sua consciência dentro do aparelho escolar. Ao defender esse AIE, Saviani precisa defender também a forma-saber, que esse aparelho monopoliza. Mas ao fazê-lo, revela que o conhecimento31 não se restringe ao AIE escolar e que existem outras maneiras de produzí-lo.
Seria desonesto considerar, todavia, que a preocupação de Saviani não seja caracteristicamente marxista (mesmo que sua resposta acabe defendendo o aparelho escolar, deslegitimando e desmobilizando a luta que a PHC deseja fazer parte). Esta é uma discussão atravessa a história do movimento comunista e assombra marxistas pelo mundo todo até hoje. A pergunta que não pode ser calada é a seguinte: quem produz a ideologia proletária? Essa questão atravessa a história do movimento comunista e geralmente é respondida através da seguinte dicotomia: a ideologia proletária é a ideologia espontânea do proletariado, ou seja, é produzida pelos trabalhadores manuais com base em sua experiência como tal; ou a ideologia proletária é importada de certos teóricos (como Marx e Engels) que, em sua função de intelectual, produziram um conhecimento objetivo que foi simplesmente transmitido aos trabalhadores e seus movimentos. A resposta da PHC claramente se alinha com a segunda resposta, considerando que foram os grandes pensadores marxistas que, através de abstrações, compreenderam a realidade através das aparências, capacidade que é produzida dentro do aparelho escolar (ver nota de rodapé no 29).
Althusser também se debruça sobre a questão, mas certamente não defende que a ideologia proletária possa ser desenvolvida pelo aparelho escolar. Pelo contrário, afirma que ela só pode ser produzida dentro da luta política. Contudo, isso não significa que o autor se alinha com a noção de que a ideologia proletária é uma ideologia espontânea do proletariado, fruto de sua vivência como tal. Althusser certamente percebia que essa resposta é tão insuficiente quanto a anterior (com a qual a PHC se alinha). Apesar de parecerem opostas, ambas mantêm as mesmas distinções instauradas pelo aparelho escolar e consideram desnecessária a organização política do povo para construir sua ideologia: se a ideologia proletária é o resultado imediato da experiência dos trabalhadores manuais, não há necessidade de uma organização própria nem de práticas específicas para produzí-la; se são os intelectuais que produzem a ideologia proletária a partir do conhecimento objetivo que desvelam através das práticas do aparelho escolar, então eles poderiam muito bem fazê-lo dentro desse AIE, independente de qualquer organização política. Entretanto, Althusser, ao tentar fugir da dicotomia entre as duas respostas, acaba oferecendo, novamente, duas “soluções” altamente contraditórias.
A primeira solução de Althusser é simplesmente a junção das duas respostas existentes. O autor conclui que a ideologia proletária é “uma ideologia muito particular: é ideologia, uma vez que a nível das massas funciona como qualquer ideologia (interpelando os indivíduos como sujeitos), mas impregnada de experiências históricas [do proletariado], iluminadas por princípios da análise científica” (Althusser, 1999, p.249). A ideologia proletária surge da experiência do proletariado, mas apenas quando esta é explicada pelos trabalhadores intelectuais, versados nos preceitos da produção científica estabelecidos pelo aparelho escolar. Não por acaso, Althusser continua falando em “princípios da análise científica”32: o autor mantém intacta a posição de intelectual, isto é, aquele encarregado de produzir conhecimento para que os trabalhadores manuais não o façam, mesmo que faça a ressalva de que esses sujeitos do conhecimento devem levar em consideração as experiências dos trabalhadores e de sua luta. Todavia, como já é de praxe, essa não é sua única resposta. Logo depois, ele se contradiz e expressa uma concepção totalmente diferente:
Há quem desconfie que tal ideologia tenha sido o resultado de um ensinamento dispensado por determinados “intelectuais” (Marx e Engels) ao Movimento Operário, o qual teria a adotado por ter se reconhecido nela: então, seria necessário explicar como certos intelectuais burgueses conseguiram produzir esse milagre, ou seja, o de uma teoria sob medida para o proletariado. Ela também não foi, como pretendia Kautsky, ‘introduzida de fora para o interior do Movimento Operário’ porque Marx e Engels não teriam conseguido conceber sua teoria se não a tivessem edificado a partir de posições teóricas de classe, efeito direto do fato de pertencerem organicamente ao movimento operário de seu tempo (Althusser, 1999, p.249-250, grifos nossos).
Aqui, não se trata mais de uma combinação das experiências do proletariado com intelectuais que, seguindo as condições da produção científica estabelecidas pelo AIE escolar, produzem um conhecimento objetivo. Afinal, tanto os trabalhadores intelectuais quanto os manuais vivem como indivíduos, limitados pelas práticas que os cercam. Desta vez, é o contato de Marx e Engels com a luta proletária e sua inserção dentro dessa mesma luta, como dirigentes comunistas, que possibilita o desenvolvimento de suas concepções33: eles não produziram sua teoria como intelectuais, através dos princípios da análise científica, mas de sua prática política.
Não por acaso, o desenvolvimento histórico do marxismo rompe com as condições da produção científica determinadas pelo AIE escolar: se a “ciência burguesa” só e verificável e verificada pelos aparelhos burgueses (devido à sua conformidade com um método pré-determinado), a “ciência marxista” só é verificável e verificada na luta política, afinal, não há nenhum “juiz” senão a própria história34. São os avanços do movimento comunista que determinam não apenas a validade das concepções marxistas, mas a necessidade de outras. A teoria revolucionária é produzida através da prática política revolucionária, considerando seus efeitos em determinada conjuntura, para que os vereditos da história sejam analisados. Não é a conformidade com um método (nem mesmo o marxista35) que a legitima, mas os efeitos de sua prática política36.
Althusser representa essa ideia, novamente, de maneira duvidosa: “Eis o que fez Marx: tornou-se ‘intelectual orgânico do proletariado’ (Gramsci)37 como militante de suas primeiras organizações” (Althusser, 1999, p.250). A palavra “militante” não anula a manutenção do “intelectual”, pois ela é estabelecida a partir daquela concepção idealista de ideologia implicada na máxima de que ela interpela os indivíduos concretos como sujeitos. Althusser descarta a especificidade do funcionamento dos aparelhos ideológicos burgueses e estende seu postulado também à ideologia proletária, afirmando que ela interpela esses mesmos “indivíduos concretos” em “sujeitos-militantes”. Portanto, ao afirmar que Marx é intelectual e militante, Althusser está estabelecendo que o sujeito-militante específico que produz a teoria revolucionária é o intelectual orgânico do proletariado. Assim como era o caso do “indivíduo concreto”, nenhuma adjetivação nega ou altera o fato de que o intelectual é resultado do processo de interpelação ideológica dos aparelhos burgueses, e funciona como tal.
Entretanto, nas passagens citadas por nós, uma de suas frases chama atenção: além de utilizar “ideologia proletária” como sinônimo de “ideologia das massas”, Althusser afirma que “a nível das massas [ela] funciona como qualquer ideologia (interpelando os indivíduos como sujeitos)” (Althusser, 1999, p.249, grifos nossos). Se juntarmos essa afirmação com uma outra, na qual postula que “As massas só podem agir em organizações de massa” (Althusser, 2010, p.8), temos aqui um termo intruso, que sugere, respectivamente, que (1) são as massas que são interpeladas como sujeitos e que (2) o resultado do processo de interpelação da “ideologia proletária” (isto é, a “ideologia das massas”) são as massas, que agem como tal apenas através de suas próprias organizações. Mas como as massas podem ser o ponto de partida e o resultado do processo de interpelação ideológica? As sugestões só podem fazer sentido se considerarmos que o ponto de partida e o resultado não são sempre os mesmos, dependendo da filiação de classe da ideologia em questão (bem como as práticas que a compõem). Essa consideração recupera aquilo que Althusser se propôs a deixar de lado em sua teorização sobre os AIE burgueses: a luta de classes. Afinal, se qualquer interpelação só pode partir dessa luta, seu ponto de partida sempre é uma forma de existência38 estabelecida em meio ao confronto.
Ao tentar deixar a luta de classes para depois, encarcerando-se no território da reprodução, isto é, dos aparelhos burgueses, Althusser cria lacunas impossíveis de serem preenchidas. Quando sente a necessidade de recuperar a luta de classes, leva consigo a máxima que construiu em sua ausência e acaba travando também sua teorização sobre a ideologia proletária. Entretanto, se o esquecimento deliberado da luta de classes gera efeitos devastadores, a insistência de Althusser em recuperá-la também gera consequências importantes. Como já vimos, ao falar novamente em luta de classes (e em ideologia proletária) Althusser afirma que o processo de interpelação que descreveu ao teorizar sobre os aparelhos burgueses ocorre “a nível das massas”. Mais do que isso, o autor especifíca que é a esse nível que são produzidos sujeitos. Portanto, se são aos AIEs que “interpelam […] como sujeitos” e se as massas são o ponto de partida do processo de interpelação ideológica que tem como resultado o sujeito, então a lacuna pode finalmente ser preenchida e chegamos à nossa primeira conclusão: (1) os aparelhos burgueses interpelam as massas como sujeitos.
Por sua vez, as massas interpeladas pelos aparelhos burgueses (como sujeitos determinados), obrigadas a viverem suas condições materiais de existência como indivíduos, só podem voltar a agir em sua condição de massa através de suas próprias organizações (como afirmou Althusser). Portanto, é a ideologia correspondente à sua prática política que possibilita, em seu processo de interpelação, uma forma de existência coletiva que, como sugere a repetição do termo “massas” nas passagens althusserianas, é a mesma que a ideologia burguesa interpela em sujeito. É aqui que chegamos à segunda conclusão: (2) a ideologia proletária interpela os sujeitos como massa.
Todavia, quando Althusser se utiliza da Revolução Francesa para entender de onde vem a necessidade de educar os trabalhadores (visto que essa não é uma exigência produtiva), surge um outro termo que substitui “massas”. Ao se referir às massas organizadas ativamente em sua luta de classes, o termo some e em seu lugar aparece o povo. Como já foi exposto, ao afirmar que os aparelhos ideológicos burgueses “têm a função de inculcar a ideologia dominante […] porque há resistência” (Althusser, 1999, p.241), Althusser conclui que a burguesia foi obrigada a “ocupar-se da educação das massas” para “organizar o povo a seu favor”. As “massas” são educadas pelos aparelhos burgueses, mas é o “povo” que é organizado politicamente.
O termo não aparece apenas quando é a classe dominante que organiza o povo, se fazendo presente na discussão de Althusser sobre a ideologia proletária, duas páginas depois de postular que ela interpela os indivíduos como sujeitos-militantes. Ao tratar justamente de quem produz a “ideologia das massas”, comenta que “Maquiavel dizia que ‘para compreender os Príncipes, é necessário ser povo”, concluindo que um intelectual “deve tornar-se povo para compreender os Príncipes” (Althusser, 1999, p.250, grifos nossos). Aqui, o processo de interpelação da ideologia proletária se fecha. Desta vez, o “intelectual burguês” não vira “intelectual orgânico do proletariado”, mas povo. Não é mais intelectual nenhum que precisa estar no interior do movimento operário para produzir conhecimento (levando em conta ou não a experiência dos trabalhadores). Pelo contrário, não apenas são as massas que produzem sua própria ideologia (sem nenhuma determinação de um tipo de sujeito particular que tem exclusivamente a incumbência de pensar por todos os outros), mas há uma forma de existência específica que produz a ideologia proletária: as massas organizadas politicamente, ou seja, o povo. Ele é o resultado do processo de interpelação da ideologia das massas sobre qualquer indivíduo produzido pelos aparelhos burgueses (seja ele o sujeito do conhecimento ou o não-sujeito do conhecimento; seja ele trabalhador intelectual ou manual)39.
Portanto, a ideologia burguesa (através de seus aparelhos) interpela as massas como sujeitos, enquanto a ideologia proletária (através de seus aparelhos) interpela os sujeitos como povo (isto é, massas organizadas politicamente). Apesar de considerarmos que os termos “massa” e “povo” ainda são nebulosos (assim como “ideologia proletária/das massas”), tais conclusões podem ser um primeiro passo para desenvolver, a partir do “pé da letra” dos textos althusserianos, uma explicação materialista do processo de interpelação ideológica.
Conclusão
Como não há leitura inocente, devemos dizer de qual leitura somos culpados. […] Uma leitura culpada, mas que não absolve seu crime com sua confissão. Pelo contrário, assume sua responsabilidade como um “crime justificado” e o defende ao provar sua necessidade (Althusser et al., 2016, p.17-18, tradução nossa).
A preciosidade de “Sobre a Reprodução” reside não em uma teoria fechada, construída magistralmente por um autor genial chamado Althusser, mas nas vacilações de um autor cujas palavras lutavam contra si mesmas, sem saber para onde deveriam ir, nem como chegar lá. “Sobre a Reprodução” nos oferece muito mais do que a teoria althusseriana: nos permite entrar em contato com os obstáculos que ela não foi capaz de derrotar. Mas por que esse livro? Por que um texto retirado de manuscritos inacabados não apenas se tornou o ensaio mais famoso do autor, como se mantém atual, largamente discutido, estudado e criticado (mesmo com tantas renegações e ressalvas)? Por que o escrito mais contraditório de Althusser é justamente aquele que trata dos aparelhos ideológicos de Estado? Althusser nos legou algo mais valioso do que respostas prontas: herdamos a ferida aberta de sua obra que, através de suas contradições, expõe em carne viva as lacunas de um problema grandioso demais para caber em um livro. Um impasse relegado a ele pela história, que ainda nos rodeia. Uma força tão destrutiva que derrotou o movimento revolucionário, solidificou o capitalismo e minou o horizonte comunista40. “Sobre a Reprodução” nos permite perguntar: como funcionam os aparelhos burgueses? De que maneira eles desmobilizam as massas e “organizam a derrota”41 dos movimentos populares? Se não no interior dos AIE, onde e como deve se desenvolver a prática política revolucionária?
Essas questões são impossíveis de serem investigadas a partir da interpretação hegemônica da teorização althusseriana sobre o aparelho escolar, que o entende como ferramenta de socialização do saber, reproduzindo categorias estabelecidas pela ideologia dominante, através das práticas desse mesmo aparelho. Por conta disso, essa explicação nos impede de compreender a divisão do trabalho (intelectual/manual), levando a efeitos políticos devastadores, favoráveis à manutenção da dominação burguesa.
Ao compreendermos a teorização althusseriana sobre o aparelho escolar através da categoria do monopólio da forma-saber, somos capazes não apenas de entender esse AIE, mas de romper com a ideologia racionalista que determina, através da prática científica, que só é possível produzir conhecimento em conformidade com suas “regras”. Essa interpretação barra os efeitos políticos do aparelho escolar, isto é, a desmobilização e a deslegitimação dos movimentos populares, de suas formas de organização e das práticas específicas que permitem a produção de seu próprio conhecimento. Ao mesmo tempo, abre espaço para uma forma de existência diferente, produzida pela interpelação da ideologia das massas, que nos permite viver nossas condições materiais não mais como indivíduos, mas como uma coletividade. No entanto, essa nova forma de existência não pode ser determinada teoricamente, a priori (como fazem as práticas do AIE escolar), mas precisa ser desenvolvida pelos movimentos populares, nas formas de organização revolucionárias, através de práticas políticas próprias.
Para que possamos entender o aparelho escolar como monopólio da forma-saber, é imperativo que nos aliemos a uma das partes de “Sobre a Reprodução”, aquela que é frequentemente descartada, compatível com o Althusser que dizia: “Engolido pela multidão […], envolvido na luta, eu estava finalmente no meu lugar” (Althusser, 1993, p.200, tradução nossa). “Massas”, “povo” ou “multidão”, este era o Althusser que não queria ser intelectual, mas ansiava ser interpelado pela ideologia proletária para poder viver suas condições materiais através de uma forma de existência coletiva, avessa à dominação burguesa.
Queimemos a figura do intelectual, cortemos a cabeça do sujeito, assassinemos o indivíduo (concreto ou não). Sejamos povo para que possamos pensar e agir por conta própria.
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1 Nas palavras de Montag: “Só Althusser podia se gabar que, no fim do século vinte, mais havia sido escrito contra do que sobre ele: um número espantoso de livros em várias línguas tem “contra Althusser” no título. […] Talvez ainda mais relevante seja o fato de que uma parcela impressionante de intelectuais ainda se sinta impelida a demonstrar que a obra de Althusser não tem vida ou significado algum” demonstrando, inconscientemente, “as qualidades ‘espectrais’ dos textos de Althusser, o espírito que nunca descansou em paz e sobreviveu até mesmo às próprias tentativas, sempre ambivalentes e contraditórias, de negar e desfazer o que ele mesmo havia escrito” e, assim, sendo “testemunha do poder extraordinário de sua obra” (Montag, 2013, p.1-2, tradução nossa).
2 A passagem brutal na aba de seu livro, quando lida integralmente, demonstra que este é o objetivo das ressalvas feitas em relação ao conteúdo da obra: parte é renegada para que o restante seja considerado relevante. Lê-se: “Pode parecer que esse escrito pertence a outra época. Com efeito, dá testemunho, em parte, de opiniões que já não são passíveis de serem defendidas. No entanto, passados vinte e cinco anos, conserva uma singular força de provocação teórica. E leva-nos a enfrentar uma questão que não poderá, de modo algum, ser considerada ultrapassada: numa sociedade que proclama os ideais de liberdade e de igualdade, em quais condições se reproduz, incessantemente, a dominação de uns sobre os outros?” (In: Althusser, 1999, grifos nossos).
3 “Quando [Althusser] publicou o artigo [I-AIE] ele adicionou elipses no meio, uma forma de sugerir que algo está faltando, que há uma justaposição, uma colagem. […] essa lacuna central tinha o feliz efeito de revelar a existência de um problema, ao invés de escondê-lo sob uma continuidade aparente. […] Então, quando me perguntaram se eu queria adicionar algo à republicação do artigo, eu disse: ‘Sim, e não esqueçam de corrigir seu enorme erro editorial e restaurar a elipse’. Mas, claro, eles não o fizeram!” (Balibar, 2022, tradução nossa).
4 Nesta passagem, Althusser está dissertando sobre a concepção empirista de conhecimento, parte de uma longa discussão epistemológica que não caberia neste texto. Abordamos uma parte restrita do debate no tópico “A outra interpretação do aparelho escolar”. Para uma discussão mais detalhada do assunto, ver: Rossetto, 2023b).
5 Já fizemos exatamente isso em uma pesquisa anterior. Ver: Rossetto, 2023b.
6 Esta é uma expressão usada por Althusser para indicar uma leitura materialista, que considera a obra por completo, incluindo suas contradições. Para uma discussão mais detalhada sobre o assunto, ver: Montag, 2013.
7 “[P]arece que teria sido necessário […] falar da Luta de classes, antes de falar de Estado, do Direito e da Ideologia. No entanto, essa segunda ordem de exposição esbarraria na mesma dificuldade inversa: com efeito, é impossível falar das classes e da Luta de classes, sem ter falado anteriormente do Estado, do Direito e da Ideologia. Portanto, estamos em um círculo do qual não podemos sair porque seria necessário falar de tudo ao mesmo tempo. […] Apresentamos esse princípio, com toda a nitidez e antecipadamente, a fim de que não nos façam acusações que só podem se apoiar na unilateralidade inevitável da ordem de exposição” (Althusser, 1999, p.28-29).
8 Este é um termo emprestado de Gaston Bachelard, muito utilizado por Althusser no livro “Por Marx”. Posteriormente, em seus textos de autocrítica (mais especificamente, “Resposta a John Lewis”), Althusser expande essa noção ao afirmar que não se tratam de meros obstáculos epistemológicos, mas de “luta de classes na teoria”.
9 A pedagogia histórico-crítica (PHC) é “uma proposta pedagógica que se coloca no âmbito marxista e que há trinta anos hegemoniza o campo educacional progressista brasileiro” (Favaro, 2014, p.9) e, sem dúvidas, “é a referência atual para as instituições brasileiras de formação de professores e de pesquisa educacional que se posicionam contra os ditames da sociedade burguesa e que procuram colocar o trabalho escolar a serviço da superação da sociedade capitalista” (Favaro, 2014, p.22-23).
10 Em uma pesquisa anterior, mais abrangente (Rossetto, 2023b), discorremos longamente sobre o estrutural-funcionalismo expressado pela PHC (e sua incompatibilidade com a teoria althusseriana). Levando-a em consideração, achamos curioso o fato de Backer localizar sua contribuição como parte de um “paradigma distinto para a educação de esquerda […] [o] que eu chamo de educação estrutural, que fornece recursos para pensar uma pedagogia propriamente althusseriana” (Backer, p.6, tradução e grifos nossos). O autor opõe-se abertamente a interpretações de autores como Warren Montag, que considera que a teoria althusseriana não é estruturalista: “O conceito de estrutura de Althusser é imanente, não transcendente, o que levou alguns intérpretes a concluir que seu estruturalismo não é um estruturalismo (Montag 2018). Sustento que é estruturalismo, mas uma variante distinta que entende a estrutura como imanente” (Backer, 2022, p.22, tradução e grifos nossos). Não discutiremos aqui o mérito desta afirmação, mas consideramos sintomático que interpretações semelhantes do aparelho escolar venham de autores que têm em comum um apreço não por Althusser (visto que a PHC critica o autor enquanto Backer se propõe a desenvolver sua teoria), mas pelo estruturalismo.
11 Ou ainda, referindo-se aos trabalhadores manuais (“trabalhadores da fábrica”), o autor afirma que “quando se trata das relações de exploração que delimitam seu salário e seu lugar nas hierarquias de trabalho, os regimes existentes de qualificação, o know-how e o treinamento os encurralam. Assim, as diferenças entre trabalhadores e capangas são diferenças de conhecimento” (Backer, 2022, p.26, tradução nossa).
12 Em Althusser, essa ideia é expressada quando afirma que: “Aos alunos que se mantêm dentro do aparelho escolar (“trabalhadores intelectuais”), ensina-se “a ‘falar corretamente a língua materna’, ‘redigir bem’, isto é, de fato (para os futuros capitalistas e seus servidores), ‘saber dar ordens’, ou seja (solução ideal), ‘saber falar’ aos operários para intimidar ou iludir, em suma, para os ‘enrolar’” (Althusser, 1999, p.76). Assim, o aparelho escolar certifica aos futuros “agentes da exploração e da repressão [a] reprodução de sua capacidade de manipular bem a ideologia dominante, a fim de que garantam ‘pela palavra’ a dominação da classe dominante” (ibdem, p.76).
13 Para demonstrar a força e a influência da interpretação hegemônica da teorização de Althusser sobre o aparelho escolar, indicaremos, durante o texto todo, em nota, algumas passagens de Décio Saes, um grande autor althusseriano brasileiro, que expressam concepções atreladas à essa interpretação (mesmo que não acreditemos ser possível afirmar que o autor a segue completamente, apresentando diversas contradições em seus textos, também muito valiosas). No caso da “alienação do saber”, Saes parece seguir uma concepção similar à Saviani quando diz que: “no processo de trabalho, o saber do produtor direto é expropriado em prol dos agentes que organizam o processo de produção” (Saes, 2005, p.106). Acreditamos que o autor está, aqui, seguindo a definição de Althusser do aparelho escolar como monopólio do saber, cujas contradições serão abordadas neste artigo, explorando os problemas de utilizar o termo “saber”, bem como considerá-lo um meio de produção e definir a divisão do trabalho como um imperativo do processo de trabalho, isto é, da esfera da produção.
14 Aqui, estamos ignorando a equiparação dos termos “meios de produção” e “forças produtivas”. Para uma análise mais completa de como a confluência dos termos aparece em Saviani e quais são seus efeitos na obra do autor, ver: Rossetto, 2023b.
15 Décio Saes parece reproduzir essa concepção, ao afirmar que o impasse “em que vive a classe capitalista no terreno educacional” é que “ela não quer que a sua mão de obra tenha ‘educação de menos’, mas também não aceita que esta receba ‘educação demais’” (Saes, 2005, p.98).
16 Para Saviani, este é o papel das “teorias não-críticas”: elas “são ideológicas, isto é, dissimulam para reproduzí-las, as condições de marginalidade em que vivem as camadas trabalhadoras” (Saviani, 2008, p.19).
17 Backer considera essa crítica de Althusser como um exemplo de sua “instabilidade”, parecendo descartá-la por esse motivo. Segundo ele, I-AIE “é ao mesmo tempo confiante, estridente e quase aforístico em suas proclamações gerais”, enquanto “‘Sobre a Reprodução’ manifesta ainda mais esse tom dual, às vezes articulando argumentos esotéricos que ultrapassam as fronteiras do pensamento marxista, ou caindo em hesitações, ao mesmo tempo que repreende categoricamente certos anarquistas por conta de diferenças de opinião” (Backer, 2022, p.15, tradução e grifos nossos). Além de desdenhar da contraditória crítica de Althusser ao Action por acreditar que é uma picuinha desnecessária, mera “diferença de opinião” cuja importância foi aumentada desproporcionalmente por um autor instável, Backer também faz exatamente o que afirmamos que não faríamos neste texto: descarta partes de “Sobre a Reprodução” por ser um escrito “inacabado”, como se fosse mero rascunho cujas “palavras [são] esquemáticas e não totalmente formadas” (Backer, 2022, p.15, tradução nossa).
18 Althusser denuncia que essa perspectiva é pura ficção científica, utilizada constantemente na luta contra o comunismo. Diversas obras (Althusser se refere aqui, principalmente, à obra “O Grande Inquisidor”, de Dostoievski) imaginam o grande líder totalitário à la Stalin: onipotente, onipresente e onisciente. Segundo o autor: “Não estou enunciando aí um paradoxo gratuito porque, na luta de classe anti-socialista, existem obras de ‘antecipação’ que representam a sociedade socialista ‘totalitária’ como uma sociedade em que cada indivíduo será desdobrado por um ‘vigia’ (um tira ou o Grande Chefe, ao mesmo tempo Grande Inquisidor, presente em cada quarto por mais retirado que seja, e através de meios requintados da ficção científica de vanguarda, por exemplo, microfones nas paredes, olho eletrônico, circuito fechado de televisão) que observa-vigia-proíbe-comanda todos os seus gestos” (Althusser, 1999, p.199).
19 Ver: Rossetto, 2023b.
20 A oposição entre repressão e ideologia também guia a definição de Saviani sobre qual seria o campo de ação de sua proposta. Segundo o autor, “[a] escola se situava dentro do partido ideológico” (Favaro, 2014, p.476, grifos nossos) e atuaria, portanto, “no âmbito da reforma cultural e moral, da busca do consenso e exercício da hegemonia” (Saviani apud Favaro, 2014, p.416, grifos nossos). Assim, distinguia “o objetivo da educação, que era convencer, apoiando-se no poder da verdade; em oposição ao da política, que era vencer, com base na verdade do poder” (Favaro, 2014, p.416, grifos nossos). Enquanto a política seria a expressão de uma “relação de força entre antagônicos”, não haveria “uma dimensão política em si na prática educativa, que, ao contrário da prática política, seria uma relação entre não-antagônicos, com o objetivo de convencer, pela persuasão, pelo consenso, e não de vencer” (Favaro, 2014, p.297, grifos nossos).
21 Décio Saes demonstra, em um percurso histórico exemplar, as diferentes formas em que a inserção dos trabalhadores manuais (e seus filhos) se distingue dos trabalhadores intelectuais (que Saes classifica com o termo mais abrangente de trabalhadores não-manuais). No caso brasileiro, há o que chama de bifurcação das trajetórias escolares: “no Brasil pós-1930, pensou-se a trajetória escolar completa (que levava à Universidade) como um privilégio dos grupos sociais dominantes e da classe média, restando aos alunos proletários a inserção no ensino técnico-profissional, sem vinculação orgânica com a formação científica, intelectual e cultural integral” (Saes, 2020, l.153). O autor comenta que: “Os novos intelectuais querem ‘modernizar’ a educação; porém, a ‘modernização’ da sociedade (passagem ao capitalismo) exige que se façam algumas ressalvas ao princípio democrático na organização do mundo escolar. A ‘modernização’ capitalista exige a diferenciação das trajetórias escolares” (Saes, 2020, l.151, grifos nossos).
22 Apesar de afirmar (seguindo a interpretação hegemônica do funcionamento do aparelho escolar) que “o interesse político leva a classe capitalista a temer a educação das classes trabalhadoras, pelos seus efeitos potencialmente politizadores” pois “O acesso da mão de obra a saberes excessivos com relação às necessidades econômicas do capital poderia subverter as finalidades da instrução elementar, desviando-a da função de manter a ordem social vigente”, temendo “o potencial subversivo de qualquer conhecimento” (Saes, 2005, p.98, grifos nossos); Saes apresenta um exemplo interessante (que contradiz completamente as passagens anteriores) de como os capitalistas utilizam-se da escola (neste caso, as “Escolas de Fábrica”, instaladas pelos empresários industriais) ao seu favor, ao invés de impedir que ela exista (ou que seus trabalhadores tenham ao seu “saber”). Segundo ele, o objetivo da burguesia (que usa o aparelho escolar para garantir seus interesses, mesmo que, neste caso, não se trate da escola pública) “não era o de qualificar a sua força de trabalho, e sim o de ‘moralizar’ a população operária. Em 1868, o Diretor Geral das Fábricas do Creusot (forte região industrial) esclarecia que o papel das escolas de fábrica não era fornecer formação técnica à mão de obra industrial, e sim propiciar uma formação moral, que afastasse os operários dos agitadores sociais” (Saes, 2020, l.20). Mesmo que o termo “moralizar” possa seguir uma concepção de ideologia como “introjeção de valores” (e “ideias falsas”), Saes demonstra (ao contrário do que ele mesmo sugeria) que o uso da escola, pela burguesia, não tem como objetivo ofertar aos trabalhadores uma qualificação técnica necessária para o processo produtivo (nem mesmo dentro de uma fábrica), mas afastar os funcionários de grupos insurgentes, para desmobilizá-los.
23 Em “Escola e Democracia”, Saviani afirma que a classe trabalhadora é composta por aqueles que são marginalizados, justamente no tópico “Teoria da Escola como Aparelho Ideológico de Estado (AIE)”, onde se propõe a explicar a teoria althusseriana sobre o aparelho escolar. Logo após uma citação de Althusser, Saviani escreve: “Nesse contexto, como se coloca o problema da marginalidade? O fenômeno da marginalidade inscreve-se no próprio seio das relações de produção capitalista que se funda na expropriação dos trabalhadores pelos capitalistas. Marginalizada é, pois, a classe trabalhadora” (Saviani, 2008, p.19, grifos nossos).
24 Consideramos importante comentar aqui sobre o conceito de “problemática”, utilizado por Althusser, que quebra completamente com essa ideologia racionalista da ciência ao partir daquilo que ela tenta ocultar: a luta de classes. Segundo o autor, a “problemática” de uma teoria é “uma solução [na forma de um sistema de perguntas que comandam suas respostas], não simplesmente para suas questões internas […], mas para os problemas objetivos impostos à ideologia pelo seu tempo” (Althusser, 1985, p.67, tradução e grifos nossos). Isso significa que a problemática só pode ser pensada por meio da “relação entre a unidade (interna) de um pensamento específico […] e o campo ideológico existente” (Althusser, 1985, p.64, tradução e grifos nossos), que só pode ser entendido, por sua vez, a partir do contexto histórico e da conjuntura política. Há ainda mais uma determinação nesse complexo conceito: além de ser (1) o sistema de referência interna de um pensamento, constituído por um modo específico de postular perguntas; (2) perguntas essas que, elas mesmas, respondem a problemas impostos pelo contexto histórico, representando questões reais de modo peculiar (ideológico); a problemática também abrange (3) as possibilidades abertas por tais perguntas (bem como suas impossibilidades, quais questões ela não permite que sejam postuladas – nem respondidas), suas ideias potenciais, ou seja, seus efeitos.
25 O termo “educação” é frequentemente utilizado como sinônimo de “escola”. Um exemplo disso são os teóricos da PHC, que ora definem a educação como uma atividade que forma o tipo de homem correspondente à cada época histórica (sendo que no capitalismo essa formação é promovida pelo aparelho escolar), ora afirmam que a educação é aquilo que “promove o homem”, isto é, “[torna] o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma tarefa que deve ser realizada” (Saviani, 2013, p.46). Nessa segunda definição, a educação é o que deve ser realizado, um processo de construção de conhecimento que liberta o homem, que o permite conhecer a realidade para transformá-la. A igualdade da educação como ela existe (encarnada no aparelho escolar) e como ela deve ser é necessária à PHC para que possa defender que o mesmo espaço que forma o tipo de sujeito necessário ao funcionamento do capitalismo também fornece as ferramentas para que os homens se libertem desse sistema. Para uma análise mais aprofundada do tema, bem como a exploração de como essa confluência aparece em outros autores da PHC, como João Luis Gasparin, ver: Rossetto, 2023b.
26 “Para o empirismo de A Ideologia Alemã, […] [o] indivíduo é o ponto de partida, o início, o dado, o sujeito, aquilo que ‘não precisa ser dito’, pois é uma ‘realidade sensivelmente perceptível’. O que vemos na história? Indivíduos” (ALTHUSSER, 2003, p.260, tradução nossa).
27 “Em relação à opção política assumida por nós, é bom lembrar que na pedagogia histórico-crítica a questão educacional é sempre referida ao problema do desenvolvimento social e das classes. A vinculação entre interesses populares e educação é explícita. Os defensores da proposta desejam a transformação da sociedade. Se este marco não está presente, não é da pedagogia histórico-crítica que se trata. […] Portanto, o caráter de classe da Pedagogia histórico-crítica está explícito” (Saviani, 1991, p.87, grifos nossos).
28 Segundo Saviani, a PHC seria uma proposta que ofereceria aos “educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado” (Saviani, 2008, p.25, grifos nossos). A “luta” em questão seria a “Luta para estabelecer uma nova relação hegemônica que permita constituir um novo bloco histórico sob a direção da classe fundamental dominada da sociedade capitalista – o proletariado” (Saviani, 2013, p.3). Por isso, a “formulação de uma teoria crítica (não-reprodutivista) da educação, […] só pode ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados” (Saviani, 2008, p. xxxix).
29 “Para se transformar conscientemente a realidade social, é preciso compreendê-la para além das aparências, para além do imediato. São necessárias as abstrações como foi ressaltado por todos os grandes pensadores marxistas. Pensar a realidade usando as abstrações teóricas não é uma capacidade que se forme espontaneamente, é algo que precisa ser produzido deliberadamente pela escola” (Saviani; Duarte, 2012, p. 4-5, grifos nossos).
30 “[A] passagem do senso comum à consciência filosófica é condição necessária para situar a educação em uma perspectiva revolucionária. Com efeito, é essa a única maneira de convertê-la em instrumento que possibilite aos membros das camadas populares a passagem da condição de “classe em si” para “classe para si”. Ora, sem a formação da consciência de classe, não existe organização” (Saviani, 2013, p.7, grifos nossos).
31 Aqui, estamos falando do conhecimento de uma forma geral (talvez provisória), não se tratando especificamente daquele implicado na forma-saber. Partindo do princípio que “o homem é, por natureza, um animal ideológico” (Althusser, 1999, p.110) e de que somos constantemente “interpelados e, portanto, sempre vivemos na ideologia” (Althusser, 1999, p.110), consideramos a possibilidade de uma produção de conhecimento que não pretende gerar resultados científicos que correspondem à verdade de um objeto, descobertos por um sujeito (do conhecimento), mas que se propõe a produzir uma teoria que se reconhece como ideológica (afinal, é impossível não o ser) partindo abertamente de uma prática política envolvida ativamente na luta de classes.
32 Althusser também fala em “conhecimento objetivo” nessa mesma passagem: “o proletariado tem necessidade não só da experiência (a das lutas de classes que trava a mais de um século), mas também de conhecimentos objetivos, cujos princípios lhes são fornecidos pela teoria marxista. É a partir da dupla base dessas experiências, iluminadas pela teoria marxista, que se constitui a ideologia proletária, a ideologia das massas, capaz de unificar a vanguarda da classe operária em suas organizações de luta de classe. Trata-se, portanto, de uma ideologia muito particular […] impregnada de experiências históricas, iluminadas por princípios da análise científica” (Althusser, 1999, p.248, grifos nossos). Aqui, a teoria marxista ocupa o lugar dos “princípios da análise científica”, como mostra a repetição do termo “iluminadas” para se referir a ambos.
33 Nas palavras de Althusser: “a teoria marxista foi concebida, com certeza, por intelectuais, munidos de uma vasta cultura, no interior e a partir do interior do Movimento Operário” (Althusser, 1999, p.250).
34 “[Para] o filósofo, assim como para o político, não existe uma Suprema Corte da Razão para a qual podemos apelar os veredictos da história, capaz de ‘reverter’ nosso fracasso, de ‘vingar’ príncipes vencidos ou filósofos mal interpretados. […] As palavras de Maquiavel continuam brutais e verdadeiras: ‘os profetas armados foram vitoriosos e os desarmados foram à ruína’” (MONTAG, 1999, p.3, tradução nossa).
35 “Como marxistas, nós não podemos nos satisfazer com a ideia que a teoria marxista existe em algum outro lugar, em uma forma pura, sem estar envolvida e comprometida com a difícil tarefa das lutas históricas e com seus resultados, com os quais ela se preocupa diretamente” (Althusser, 2017, p.4, tradução nossa).
36 “[C]ada classe se reconhece em uma ideologia particular, e não arbitrária, aquela que está enraizada em sua prática política estratégica, que é capaz de unifica-la e orientar sua luta de classe” (Althusser, 1999, p.249).
37 Apesar de Althusser utilizar o termo gramsciano, não estamos aqui discutindo o termo original (afinal, para fazê-lo, seriam necessárias maiores investigações), mas apenas seu uso em “Sobre a Reprodução”. Portanto, não estamos estendendo nossa análise à Gramsci, nos referindo apenas a Althusser.
38 O termo “forma de existência” é usado por Althusser ao falar de Rousseau. A situação insustentável apresentada pelo contratualista é que os homens foram “aprisionados nas mesmas relações que sua própria atividade produziu: eles se tornaram homens dessas relações, alienados como elas, dominados pelos seus interesses particulares, sem poder contra essas relações e seus efeitos […] ‘a raça humana pereceria a não ser que mudasse sua forma de existência’” (Althusser, 2006, p.122, tradução e grifos nossos). Essa nova forma, em Rousseau, é a comunidade, que é, simultânea e paradoxalmente, parte integrante e resultado de seu contrato. A relevância dessa solução é que ela não é transcendental, nem recorre a terceiros: “Rousseau ‘toma os homens como são’. Ele toma suas forças como são. O homem só tem essas forças à sua disposição. Nenhuma solução nesse mundo pode mudar a natureza dessas forças nem os ‘obstáculos’ com os quais elas se chocam. A única saída é alterar a ‘forma de existência’ do homem, […] através da inauguração de novas relações” (Althusser, 2006, p.123, tradução e grifos nossos).
39 Utilizando-se de um conceito de seu professor, Gaston Bachelard (“cité des savants”), Althusser defende a necessidade não só da abolição da distinção entre os cientistas e os trabalhadores, mas entre estes e aqueles sujeitos-militantes que supostamente seriam produzidos pela ideologia proletária. “A ‘cidade dos sábios’ só existe na divisão burguesa do trabalho entre trabalho manual e intelectual […]. O ponto de vista proletário sobre a questão é bem diferente: a supressão da ‘cidade dos sábios’, a ‘união’ dos cientistas com os trabalhadores e militantes e, adiante, as formas comunistas de divisão do trabalho são completamente desconhecidas e inimagináveis de um ponto de vista burguês” (Althusser, 1976, p.122, tradução nossa). Os termos ainda são dúbios: Althusser não fala da abolição da distinção entre todos esses tipos de sujeito, mas de sua união. Ainda assim, ao falar da supressão da cidade dos sábios, ele não afirma que, para fazê-lo é necessário interpelar os indivíduos em sujeito-militante, demonstrando que nenhuma das formas-sujeito apresentadas (cientista, trabalhador e militante) é a forma de existência produzida pelas práticas revolucionárias.
40 Althusser considerava que a regressão dos países revolucionários ao capitalismo estava conectada com a manutenção do Estado burguês e seus aparelhos ideológicos. Por isso, chegou a afirmar (em defesa da Revolução Cultural Chinesa) que: “na esfera ideológica que a encruzilhada está localizada. O futuro depende do ideológico. É na luta de classes ideológica que o destino (o progresso ou a regressão) de um país socialista se desenrola” (Althusser, 2010, p.12, tradução nossa). Para uma contextualização mais aprofundada da discussão althusseriana sobre “a crise do marxismo”, ver: Rossetto, 2023a.
41 Althusser utiliza o termo quando critica as ações do Partido Comunista Francês (PCF), do qual fazia parte, no Maio de 68, afirmando que ele: “organizou a derrota do movimento de massa” (Althusser, 1993, p.230, tradução e grifos nossos). Para uma análise da conexão de sua crítica ao partido (um AIE) com o funcionamento do aparelho escolar, ver: Rossetto, 2023b.