Por Samah Jabr, via Impuls J Psychol Spec Issue Trauma, tradução por Prof. Drº. Juberto Antonio Massud de Souza
“O quarto era muito pequeno, eu não conseguia me mexer. Minhas juntas estavam todas doloridas. Meus intestinos pareciam dilacerados. Eu me sentia de uma forma meio artificial dentro do meu próprio corpo; minhas vísceras não eram minhas”.
Samah Jabr
Desde o início da ocupação israelense dos territórios palestinos, mais de 650.000 palestinos foram encarcerados por Israel. Isso representa cerca de 20% da população palestina nos Territórios Ocupados e aproximadamente 40% da população masculina já que a maioria dos detidos são homens. Na minha prática no setor Comunitário de Saúde Mental na Cisjordânia, observei que alguns dos pacientes tiveram seu primeiro episódio de doença mental enquanto estavam encarcerados ou quando liberados. A seguir, um relato de caso de um homem de 46 anos que desenvolveu uma psicose durante sua quinta detenção. Primeiro relatarei a história deste paciente em particular, e depois iluminaremos este caso com uma visão mais ampla dos efeitos da tortura em geral.
Família, história pessoal e personalidade pré-mórbida
O paciente Jamal é o terceiro entre três irmãos e oito irmãs. Seu irmão mais velho foi morto. Seu pai faleceu. Jamal mora com sua mãe, sua esposa de 37 anos e as crianças: dois meninos e seis meninas entre 18 e 25 anos. Não há histórico de doença mental na família. O paciente tem ensino médio. Ele se casou com 19 anos, trabalhou como operário, mas é atualmente desempregado. É relatado que Jamal é teimoso, reservado, perfeccionista, um homem idealista, no passado.
Exame mental inicial
O paciente chega sozinho para a entrevista. Parece muito organizado, tem pedaços de papel com nomes e doses dos medicamentos que usa. Se mostra muito reservado, ansioso e tem um comportamento muito educado. Jamal afirma que ele está indo “bem” – seu único problema é o desemprego e a pouca concentração. Ele nega alucinações desde que saiu da prisão. No entanto, ele acredita que alguns “colaboradores” estão seguindo-o, e que eles podem estar obtendo informações sobre ele e sua família. Isso ele “sabe” por causa dos cliques que escuta algumas vezes no telefone, e dos gestos dos vizinhos quando eles o visitam. Ele parecia muito angustiado ao falar sobre isso e reclamou sobre a “ingenuidade” de sua esposa e filhos por conversar com estranhos. O paciente está alerta, orientado no tempo, espaço e como pessoa, e tem concentração e memória adequadas. Nas sessões seguintes, sua história se desdobra enquanto ele fala mais sobre suas experiências na prisão. Enquanto ele fala sobre isso, frequentemente chora. Às vezes, sua esposa também o acompanha, e dá o seu lado da história.
História da doença
Jamal é um ex-prisioneiro político. Ele foi detido sem acusação ou julgamento por cinco vezes. A primeira, foi aos 14 anos em 1975, após a morte de seu irmão mais velho, que nem mesmo era ativista e foi morto “por acaso” quando, no caminho da escola, passou por uma manifestação. “Meu irmão foi ferido pelos soldados e fui preso. Na prisão, soube que meu irmão havia falecido. Fiquei seis meses na prisão. No começo, fiquei muito triste e foi muito difícil. Quando saí, senti que tinha envelhecido demais. Em 1981, estive novamente na prisão – ainda não sei o motivo. Naquela época, permaneci seis meses sob interrogatório. Na prisão tomei a decisão de casar tão logo eu saísse – eu queria uma vida comum. Casei-me alguns meses depois de ser libertado. Em um ano tive a primeira criança. Em 1987, fui preso mais uma vez; minha esposa estava grávida e deu à luz enquanto eu estava no cárcere. Em 1990, eu tive grandes despesas financeiras e dívidas e a minha quarta detenção colocou minha família em um sério dilema. Todas as quatro detenções duraram seis meses, sendo que em cada uma, vivi sob interrogatórios com tortura física e psicológica”.
De acordo com a esposa de Jamal, ele era “normal” quando saiu da prisão no passado, embora ele não tenha o costume de falar de suas experiências. Mas em 2003 ele foi detido novamente, desta vez por 11 meses, e quando ele voltou, havia mudado. Sua esposa disse: “Quando ele saiu da prisão me disseram que ele havia se tornado “louco” durante os três últimos meses de detenção. No começo eu não acreditei nisso, mas agora me preocupo muito com ele. Ele é muito cético, duvida de todos; de mim, das crianças, dos vizinhos, de todos. Ele interpreta as coisas de forma incorreta – se um vizinho nos visita, ele pensa que é um espião. Ele se recusa a comer o que as pessoas nos trazem. Ele quebrou os telefones celulares e as antenas porque acha que é melhor nos protegermos de informantes”. Sua esposa também acha que ele ouve vozes. Ela nunca o vê falando sozinho, mas muitas vezes o vê muito concentrado e quieto, como se estivesse ouvindo algo ou alguém. “Ele dorme pouco e quando dorme, grita e fala sobre tortura. Ele não dorme mais comigo, ele está impotente. Ele também come muito pouco e prepara a comida sozinho. Eu realmente me preocupo com ele. Ele está sempre cansado, muitas vezes triste, permanece o dia todo de pijama. Ele não trabalha mais”. A quinta detenção parece que trouxe uma grande mudança na vida de Jamal. O que deu errado desta vez?
Em todas as detenções foi submetido a tortura, mas mais pesadamente dessa última vez. “Eles tentaram me forçar a confessar coisas que eu não cometi. Minhas mãos e pés estavam amarrados. Fui brutalmente espancado. Eu fui ultrajado com os insultos mais imundos relacionados à minha religião, esposa e mãe. Havia ameaças constantes de prejudicar minha família. Meu rosto estava coberto por um saco molhado de água escoada. Durante dias e noites, fiquei suspenso, às vezes de cabeça para baixo e outras em uma cadeira reversa, no que eles chamavam de “posição do sapo” (1). Isso foi extremamente doloroso. Eu sentia como se meus membros estivessem sendo rasgados. Então houve os chuveiros muito quentes e muito frios e o aprisionamento em uma sala muito pequena que eles chamavam de “armário”, outra vezes em uma menor no chão no que eles chamavam de “caixão”. Houve também uma terceira sala que estava cheia de colaboradores, e que era chamada de “quarto da vergonha”, já que alguns deles cometiam abuso sexual. Frequentemente meu estômago doía de fome e vomitei muito, principalmente quando eles estendiam minhas pernas e os braços ao mesmo tempo. Muitas vezes tive que urinar em mim. Quando fiquei preso num silêncio total e escuridão completa, perdi a noção do tempo; não conseguia contar os dias. Muitas vezes o silêncio era quebrado pelos gritos das pessoas sendo torturadas, gritos de guardas ou músicas hebraicas em volume alto. Lá comecei a sentir todo o meu corpo se machucando. O quarto era muito pequeno, eu não podia me mexer. Minhas articulações estavam todas doloridas. Meus intestinos pareciam dilacerados; eu me sentia de uma forma meio artificial dentro do meu próprio corpo; minhas vísceras não eram minhas. Foi lá que comecei ouvindo vozes e também vendo rostos de pessoas de fora da prisão; eu imaginei que elas tinham vindo à prisão para dar informações minhas. Fiquei muito assustado e com raiva. Comecei a gritar com eles, gritei muito, até que os guardas atacaram minha cela e me brutalizaram porque gritei”.
O curso do tratamento
Quando Jamal saiu da prisão, ele foi diagnosticado como um caso de “esquizofrenia”. Depois de usar antipsicóticos típicos por seis meses, relatou melhora parcial e perda das alucinações. No entanto, não houve mudança significativa em seu humor. Três semanas após insistir que estava se sentindo melhor, parou de tomar os medicamentos. Ele então começou a ser hostil com sua própria família e vizinhos que estavam “informando sobre ele”. Doses terapêuticas de antipsicótico e o antidepressivo foram reiniciadas, em combinação com uma psicoterapia de apoio para tratar sintomas residuais de ansiedade, depressão, pesadelos e afeto restrito, e para ajudar Jamal a recuperar sua identidade e integrar memórias dolorosas.
Psicopatologia relacionada à tortura
A história relatada acima é um caso tardio de início de uma psicose afetiva, com ideação delirante paranoica e sintomas de depressão maior. Esta é uma condição que frequentemente encontro em ex-presos políticos que foram submetidos a tortura física e psicológica. Kaplan e Sadock (2003) relatam que “a tortura é distinta dos outros tipos de trauma porque é infligido por humanos, sendo intencional”. Os estudos de Kaplan e Sadock revelam uma prevalência de 36% de TEPT [Transtorno de Estresse Pós-traumático] entre os sobreviventes de tortura, como bem como altas taxas de depressão e ansiedade. Outras queixas psicológicas comuns incluem somatização, sintomas obsessivo-compulsivos, hostilidade, fobia, ideação paranoide e episódios psicóticos.
A tortura tem como objetivo aumentar a sugestionabilidade dos torturados, para prejudicar seu julgamento e capacidade de conduzir argumentos lógicos contra seus interrogadores, e confundir o que eles acreditam e refutam. Em seu livro “A Question of Torture: CIA Interrogation From the Cold War to the War on Terror”, McCoy discute uma pesquisa patrocinada pela CIA na McGill (2) pelo Dr. Donald Hebb. Neste estudo, 22 estudantes universitários foram colocados em pequenos cubículos à prova de som, usando óculos translúcidos, luvas grossas e um travesseiro em forma de U ao redor do cabeça. A maioria dos sujeitos abandonou o estudo em dois dias, e todos experimentaram alucinações e “uma deterioração na capacidade de pensar de forma sistemática; os sujeitos estavam tão sedentos por estímulos que eles até desejavam interação com seu interrogador”, relata McCoy. Embora a tortura institucionalizada tenda ser sutil e fácil de esconder, é feita para violar necessidades psicológicas e causar profundos danos às estruturas psicológicas e romper os alicerces das funções mentais normais.
A tortura pode penetrar e destruir a crença dos sujeitos na sua autonomia como ser humano, e destruir sua interioridade, privacidade e intimidade. Em “Ethics of the unspeakable: Torture survivors in psychoanalytic treatment”, Beatrice Patsalides descreve como através da tortura a lacuna entre o ‘I’ and the ‘me’ se aprofunda, e a camada entre o ‘eu’ e o ‘você’, se perde.
A tortura inclui o uso deliberado de estressores extremos, incluindo dor física severa, induzindo dor psicológica, assim como o medo paralisante da dor ou da morte, confusão devido a uma antecipação não satisfeita, violação de normas sociais ou sexuais enraizadas e confinamento solitário prolongado. Técnicas como capuz para desorientação sensorial, nudez forçada, permanência forçada, banhos frios e vendas nos olhos, intimidação dos detidos com cães militares, retenção de comida e água, e agressão com urina ou fezes são frequentemente relatadas. Às vezes esse tratamento degradante é propositalmente contraposto com uma bondade artificial, um falso favoritismo e tratamento especial para levar o sujeito a engano, e leva gradativamente a uma personalidade modificada, desarticulada ou desacreditada e a uma estrutura de crenças. Quando as necessidades fisiológicas de uma pessoa torturada são controladas pelo torturador e só podem ser expressas de uma forma auto degradante e desumanizante, quando emoções de vergonha, inutilidade e dependência são induzidas por alguém estranho, com superioridade e crueldade, isso pode induzir regressão psicológica no sujeito trazendo uma força superior externa para sustentar a vontade de resistir.
Na sua avaliação das vítimas de tortura e outros abusos das guerras dos Balcãs, Basoglu mostrou que a tortura psicológica era tão ruim quanto a tortura física, e levava a taxas igualmente altas de depressão e TEPT. O que mais importava era o grau com que a vítima sentia sua perda de controle. A perda de controle sobre a sua própria vida e seu corpo provocado pela tortura é frequentemente exacerbado pela descrença que muitos torturados encontram ao tentar expressar o que eles passaram, especialmente se eles são possuem cicatrizes ou outra prova “objetiva” de sua experiência privada de dor. A tortura também pode alterar o modo de se relacionar com a realidade e o sentido de si mesmo. Mesmo muito depois da continuidade da atividade real, algumas vítimas de tortura sentem-se alienadas, incapazes de se comunicar, se relacionar, se aproximar ou ter empatia com os outros. A sua confiança básica é destruída e as suas relações mais próximas e a rede de apoio construídas ao longo da vida são interrompidas.
Como vimos, uma variedade de disfunções tem sido atribuída à tortura, incluindo TEPT, psicose, depressão e ansiedade. Na minha prática, a psicopatologia desencadeada pela tortura pode variar de um espectro mais amplo com sintomas mais sutis, incluindo embotamento emocional, retraimento social, micro episódios psicóticos, disfunção sexual e lembranças dos eventos traumáticos que se intrometem em forma de pesadelos, flashbacks ou associações angustiantes, até sintomas mais graves, como como distúrbios de memória, alucinações, incapacidade de manter relacionamentos de longo prazo ou intimidade, e mudanças persistentes na percepção e no afeto.
Espero que as minhas observações possam ser o precursor de um estudo piloto para estimar a prevalência da psicopatologia entre ex-prisioneiros palestinos, comparados com uma população não carcerária e a de populações de ex-prisioneiros em outros contextos de conflito.
Notas:
(1) [N.T.] A “Qambaz” [literalmente gambás], “posição de sapo”’, ou “frog position” é uma forma de tortura amplamente utilizada por Israel contra a povo palestino. Um relatório feita pela organização não governamental israelense para os direitos humanos nos territórios ocupados B’Tselem detalhou as torturas mais comuns utilizadas nos Territórios Ocupados da Palestina, sendo a “Qambaz” utilizada: “durante o próprio interrogatório. O interrogador obriga o interrogado a se ajoelhar na ponta dos pés, com os braços amarrados atrás dele. Se o interrogado cair, o interrogador obriga-o a voltar à posição, espancando-o e chutando. Duração:
(2) [N.T.] McGill é uma Universidade situada na cidade de Montreal no Canada. Em seu campus universitário, encontra-se o Instituto Allan Memorial (AMI), que em seu interior tem o Departamento de Psiquiatria do Hospital Royal Victoria, como parte de seu Centro de Saúde. O citado Donald O. Hebb (1904 -1985), foi neurologista e chefe do departamento de psicologia na referida Universidade. Dentro de suas atividades, foi um dos iniciadores do programa desenvolvido pela CIA conhecido como MKULTRA, com a utilização de drogas e técnicas de interrogatório de presos no que ficou conhecido popularmente como “’lavagem cerebral”, sendo amplamente ensinado na chamada Escola das Américas para torturadores de variadas regiões. Para termos uma ideia aproximada na particularidade brasileira, todas essas técnicas foram utilizadas na ditadura empresarial-militar brasileira. Ainda, não é de se estranhar que até mesmo um ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), diplomado pela Escola Superior de Guerra (ESG), Arthur de Mattos Saldanha, tenha frequentado a Escola das Américas no mesmo ano em que foi eleito membro do CFP.
Referências:
Basoglu, M. et al. (2005). Psychiatric and cognitive effects of war in former Yugoslavia: Association of Lack of Redress for Trauma and Posttraumatic Stress Reactions: JAMA 294 (5), pp. 580-590.
Gelder, M. et al. (2000). Oxford Textbook of Psychiatry, Third Edition. Oxford University Press: New York.
Kaplan & Sadock, (2003). Synopsis of psychiatry, Behavioral sciences, and Clinical Psychiatry, Ninth Edition. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins.
McCoy A., (2006) A Question of Torture: CIA Interrogation, from the Cold War to the War on Terror. Owl Books.
Patsalides, B. M. (1999). Ethics of the Unspeakable: Torture Survivors in Analytic Treatment. The Journal of the Northern California Society for Psychoanalytic Psychology, Vol. 5 (1).
Vaknin. S. (2005). The Psychology of Torture: Global Politician (5 June) http://www.globalpolitician.com/articleshow.asp?ID=687&cid=10&sid=47