Por Waldez da Silva (1)
1. Estrutura do argumento
Nas linhas seguintes busco descrever entendimentos que me ajudaram a ter maior clareza sobre a questão da agência na teoria social marxista e algumas de suas consequências. O esboço dos argumentos é o seguinte:
1- Proletários (1) são sujeitos sociais criados pela estrutura social descrita por Marx em O Capital;
2- Pessoas são proletários;
3- Apenas pessoas fazem política;
4- Proletários não fazem política;
Para estabelecer a diferença entre proletário e pessoa usarei o trabalho da socióloga britânica Margaret Archer, pois seu conceito de pessoa suporta a noção de um agente social como interventor ativo nas múltiplas determinações estruturais que recaem sobre ele. Usarei também alguns pressupostos do realismo crítico, corrente de epistemologia científica fundada por Roy Bhaskar.
Se for bem-sucedido de 1 a 4, argumentarei também:
5- O capital cria naturalmente constrições relativas à organização política proletária;
6- O capital cria naturalmente facilitações relativas à organização política burguesa;
Os argumentos de 5 e 6 visam complementar a crença, muito espraiada no marxismo, duma tendência natural do proletariado à organização política. Argumentarei, usando o realismo crítico, que essa crença existe na dimensão do real, mas é contrabalanceada na dimensão do empírico. Entretanto, como toda organização política se dá na dimensão empírica, as tendências estruturais esbarram no ponto 2, ou seja, o fato de proletários serem pessoas.
Sustentados os pontos acima, a conclusão será de que o funcionamento estrutural do capital tende a desorganizar politicamente o trabalhador. Finalmente, essa descrição nos levará ao último ponto.
7- Democracia é uma qualidade essencialmente necessária para a manutenção de organizações proletárias.
Todos os pontos serão desenvolvidos melhor abaixo.
2. Pressupostos do argumento
Quando se quer tratar de política, a primeira questão a se endereçar é o poder. As mais belas prosas e as mais extravagantes conclusões se baseiam na indefinição desse termo. Escrever o se quiser é uma das vantagens de não precisar os termos com que se trabalha, porém, essa é uma grande desvantagem para o leitor e, por isso, para a construção política. Explicitar os próprios pressupostos não é apenas uma boa prática intelectual, mas também política.
O que seria, então, poder? Poder é a capacidade de mobilizar seres humanos e recursos. Se alguém é capaz de mover algo ou alguém de um ponto A para um ponto B, esse alguém tem poder. Se alguém é capaz de fazer outrem tocar no próprio nariz enquanto se equilibra em apenas uma perna, esse alguém possui poder. Essa definição é ampla o suficiente para abarcar literalmente a lua e os oceanos2, por isso, uma teoria social é necessária para fundamentar o termo. É a teoria que permite a distinção entre as partes e as formas como elas se relacionam, e, o que é vital aqui, permite a delimitação do que se fala quando se discute poder político. As marés são parte importante da vida na terra, mas, quando se fala em poder, pensa-se em relações entre seres humanos, ou em relações especificamente humanas.
A função do termo “recurso” empregado na conceituação inicial de poder é apontar que as coisas sobre as quais se exercer poder são aquelas que adquiriram valor por sua relação com seres humanos de determinada sociedade. O agente do poder não precisa ser humano, mas sua influência sobre o mundo precisa tocar aquilo que uma sociedade considera importante. As marés costumam ter mais poder sobre povoações litorâneas do que interioranas, por exemplo.
Novamente: poder é a capacidade de mobilizar seres humanos e recursos.
Outro pressuposto é retirado das ponderações sobre a ciência do filósofo Roy Bhaskar. Na década de 1970, Bhaskar começa a publicar suas explorações sobre a natureza do fazer científico e sobre as condições sob as quais esse fazer constrói verdades. Para Bhaskar a ciência é um empreendimento prático que precisa lidar com o amontoado de fenômenos que é o mundo. A confusão obscurece nossa percepção sobre quais dentre eles é a causa dos demais. O mundo tal como o encontramos cotidianamente é um sistema aberto (3).
A ciência, explica ele, é a prática de criar condições sob as quais esses fenômenos possam ser relativamente isolados e sistematicamente relacionados. O método científico é caracterizado pelo isolamento do objeto de pesquisa, noutras palavras, pela criação de um sistema fechado. O alívio da cacofonia natural do sistema aberto permite que a pesquisadora descreva as qualidades essenciais de seu objeto.
Dessa descrição do trabalho científico, Bhaskar infere outras qualidades do mundo. Segundo ele, todo objeto é composto de propriedades que se relacionam de maneira específica; isso permite ao objeto interagir de maneira distinta às variações das condições experimentais. Água e mercúrio possuem pontos de ebulição diferentes devido a seus átomos e a maneira pela qual eles se relacionam entre si. No caso que nos interessará, um modo de produção difere de outro não apenas pelos instrumentos de trabalho que são empregados, mas também pela relação que os seres humanos mantém entre si para empregar tais instrumentos.
Ao descrever um objeto em suas qualidades essenciais, a pesquisadora também descreve a forma como essas qualidades se relacionam entre si. No realismo crítico, a forma como duas qualidades se relacionam para criar um efeito é normalmente chamada de mecanismo. Todo mecanismo, portanto, é composto de ao menos duas propriedades, que podem ser ambas internas ao objeto de pesquisa, ou uma que lhe é externa e outra interna. Em suma, o propósito da pesquisa é descrever os mecanismos internos essenciais de um objeto. Para o realismo crítico, explicar é descrever.
À dimensão do objeto nu em suas propriedades e mecanismos essenciais Bhaskar chama o real. A dimensão do atual é aquela que emerge da relação de qualquer propriedade do objeto com quaisquer outras externas. Finalmente, a dimensão do empírico é a dos fenômenos aparentes aos seres humanos. Porque o argumento de Bhaskar começa pela pesquisa experimental, essas dimensões não são estáticas, cada uma delas é definida pelo objeto da pesquisa. Para um marxista, por exemplo, o capital estaria na dimensão do real, enquanto o imperialismo estaria na dimensão do atual – a relação entre capital e estado –, finalmente, guerras estariam na dimensão do empírico. Dum mesmo fenômeno empírico, dado que eles tendem a ser multideterminados, pode-se abstrair até se chegar a dimensões diferentes do real. Se o interesse da pesquisa fosse, por exemplo, a relação entre sexualidade e guerra, o patriarcado poderia ser colocado na dimensão do real.
A dimensão empírica não automaticamente exclui as demais. Alguém pode experienciar o capital desnudo – ou o patriarcado, ou o racismo –, mas, a priori, não há garantia. Uma vez que a experiência humana costuma ocorrer em sistemas abertos, espera-se que o real e atual sejam nublados para nós. Como marxistas sabem, a aparência e a essência tendem a não coincidir, eis a necessidade da ciência.
Isso nos traz à segunda premissa: os objetos descritos teoricamente tendem a ser diferentes daqueles dados pela experiência.
O último pressuposto será apenas declarado, mas não explanado. Isso porque sua pormenorização seria em si uma extensa argumentação com elementos que iriam além do objetivo desse texto. A terceira premissa é: marxismo e realismo crítico são mutuamente consistentes (4).
Uma rápida recapitulação dos pressupostos do argumento que virá:
a) Poder é a capacidade de mobilizar seres humanos e recursos;
b) A experiência humana ocorre geralmente em sistemas abertos que tendem a nublar as qualidades essenciais de objetos.
c) Não há contradição lógica necessária entre marxismo e realismo crítico.
3. Papel Social e Pessoa
Em 1995 foi publicado Realist Social Theory da socióloga Margaret Archer. Nesse livro ela elabora seu entendimento do que seria o esqueleto de uma teoria social realista. Será por essa obra que se retomará o terceiro pressuposto sobre a compatibilidade entre marxismo e realismo crítico. Utilizarei os conceitos de Archer para brevemente retomar o capital tal como descrito por Marx; ao final dessa reescritura, o que marxistas costumam chamar de modo de produção capitalista será identificado como uma estrutura social e o proletário será um dos papéis sociais do capital. O ganho que busco será o refinamento da noção de agente social, permitindo uma reavaliação do sujeito político marxista.
Segundo Archer, uma estrutura social se forma em torno de ao menos um recurso escasso. Em Marx, esse recurso seriam os meios de produção. A posição da população de uma sociedade em relação a tal recurso implica a distribuição de oportunidades diferentes. Um capitalista não precisa trabalhar para produzir seus meios de subsistência porque ele possui os meios de produção; por sua vez, o trabalhador é açoitado por suas necessidades a vender sua força de trabalho.
Não apenas isso, as diferentes posições sociais também implicam interesses distintos a se buscar na estrutura. O proletário tenta vender sua força de trabalho pelo maior preço possível, enquanto o capitalista tenta comprá-la pelo menor preço que puder. Isso se dá, concordam Archer e Marx, a despeito das idiossincrasias dos proletários ou dos capitalistas. A estrutura social impinge facilitações ou constrições àqueles que dela participam. Os proletários precisam escolher entre ter um dinheiro a mais no final do mês ou cortar um produto das compras do mês. O capitalista, além da mesma escolha do proletário, precisa decidir se terá lucro ou perderá os meios de produção.
Marx, afora ignorância, não dá um nome específico a esse conjunto de condições compartilhadas por um grupo por ocupar um posição social específica. Archer o chama papel social. O proletário é um papel social.
Aqui a distinção entre real, atual e empírico é importante. As abstrações que Marx diz ter operado para chegar à essência do capital redundaram na exclusão de outras determinações sociais. Entretanto, outras estruturas sociais existem nas sociedades em que impera a estrutura social do capital. Há racismo, machismo, nacionalismo e religião, por exemplo (5). Uma proletária negra, pois, não é apenas um proletário; ela é a conjunção das determinações do capital, do machismo e do racismo.
Se as forças sociais que operam sobre alguém que vende sua força de trabalho mudam a depender se ela é negra ou branca, isso significa que o racismo introduz forças causais diferentes daquelas do capital – estamos falando aqui da dimensão do atual. Sendo uma proletária negra o resultado de ao menos duas forças sociais, as qualidades que fazem dela proletária são parte da dimensão do real. O proletário é uma abstração, mas abstrações são causalmente eficazes.(6)
Ser a confluência de várias forças sociais é consequência de se viver numa sociedade. Uma vez que se aceite que essas forças possuem essências diversas, o problema de como elas são equilibradas exige alguma resposta.
Uma figura brasileira comum ajuda a esclarecer a questão. Imaginemos uma mãe solo; sobre ela pesam seu sustento e a maternidade. O capital, explica Marx, demanda que o burguês retire tanto tempo de trabalho quanto possível da trabalhadora; a maternidade, por outro lado, exige de uma boa mãe dedicação constante. As duas exigências são contraditórias e, mesmo assim, é com elas que muitas brasileiras vivem.
Essas mães precisam encontrar a melhor forma de navegar entre Cila e Caríbdis, e as respostas costumam variar: creche, avó, trabalho remoto, levar a criança para o trabalho ou deixar a criança sozinha. Nenhuma dessas respostas decorrem automaticamente das prescrições da maternidade ou das exigências do capital. É esse jogo de cintura necessário para viver (e talvez prosperar) em sociedade que Archer quer capturar com seu conceito de pessoa.
Para os fins do presente argumento, pessoa é a qualidade dos seres humanos que recebe as exigências sociais e lhes elabora respostas mais ou menos adequadas (7). Grosseiramente, para Archer, quem realiza as ações sociais necessárias para a reprodução ou mudança da sociedade são as pessoas, nunca os papéis sociais. Para o marxismo, isso significa que o sujeito revolucionário não pode ser o proletariado, mas apenas pessoas proletárias.
Salvo engano, essa distinção não é adequadamente considerada no marxismo. O racismo, o sexismo, o nacionalismo e, em menor grau, as questões sexuais são reconhecidos pelo marxismo, mas esse reconhecimento costuma se dar de maneira aditiva, ou seja, às determinações do capital se soma às do racismo, então João, trabalhador negro é pensado como proletário+negro. As respostas que João dá a sua situação (proletário+negro) derivariam da relação entre as determinações sociais que os adjetivos representam. O encadeamento de adjetivos (proletário+negro+lgbt+homem+brasileiro […]) adicionaria mais nuance e precisão à condição de João e, por conseguinte, ao nosso entendimento de sua prática social. Sem negar o valor que a descrição minuciosa da vida de João pode trazer, apenas elencar as determinações sociais é insuficiente para entender a prática social.
Quando digo que Maria é uma pessoa, digo que ela responde a uma situação social de maneira específica. Isso significa que à lista de adjetivos sociais se deve adicionar um que, embora não seja social, é pertinente às dinâmicas sociais, a pessoa de Maria (8). Grosseiramente, poderíamos dizer que naquilo que é pertinente à análise social Maria é (S+P), em que (S) são as determinações sociais e (P) são as qualidades que fazem de Maria uma pessoa.
Uma vez que estamos particularmente interessados na organização política dos proletários, Maria é (C+S+P). Separamos, assim, as determinações do capital, (C), das demais. Uma vez que, por definição, aquilo que faz de Maria uma pessoa é diferente daquilo que faz de Cristina uma pessoa, para cada conjunto de determinações sociais o elemento (P) é diferente para cada ser humano. Maria seria (C+S+P01) e Cristina, (C+S+P02).
A leitora não deve se intimidar pela álgebra pela qual apresento o ponto. Tudo o que ela diz é: sob as mesmas condições sociais, Maria e Cristina agem de maneiras diversas porque elas são pessoas diferentes.
Acredito que há consequências para as pretensões políticas do marxismo se pensamos em Maria como proletária, (C), ou como uma pessoa que é proletária, (C+S+P01).
Sistematizemos o que foi dito até aqui:
a) O proletário (e o capitalista) é um papel social criado pela estrutura do capital;
b) O capital existe ao lado de outras formas de condições sociais (racismo, machismo, etc.);
c) Porque seres humanos diferentes tendem a responder de maneiras diferentes às mesmas pressões sociais, há necessidade de
pensá-los como pessoas.
4. A dificuldade dos números
Finalmente chegamos ao cerne do argumento: quais as consequências da noção de pessoa para a organização política da classe trabalhadora?
A primeira consequência é óbvia, mas deve ser ressaltada mesmo assim: não se organiza politicamente uma classe, organizam-se pessoas duma mesma classe. O proletário não é destacável da pessoa que o encorpora, eles são um conjunto indivisível, por isso, quando se quer organizar o primeiro, organizar o restante é também necessário.
Como se sabe, uma organização política (sindicato, partido ou movimento social, por exemplo) é composta de várias ações desenvolvidas durante um longo período. E mesmo entre as organizações de mesma denominação (sindicatos, digamos), há diferenças significativas para que aquilo que se diga de uma não seja automaticamente verdadeiro para as demais. As consequências da pessoa para elas deveria, portanto, ser ponderada frente a essas singularidades, se se quiser manter algum rigor intelectual. O argumento aqui presente, no entanto, é tão abstrato que cabe para qualquer organização de pessoas, inclusive aquelas que não possuem natureza política.
Lembremos da definição de poder dada nas primeiras páginas – poder é a capacidade de mobilizar seres humanos e recursos – e com ela suponhamos um cenário simples de uma ação que precisa ser realizada num determinado momento. Maria se programa para tomar um café em determinado dia, num determinado local. Para isso, Maria deve escolher, levando em considerações as pressões sociais sobre seus ombros, qual o melhor local e horário. Tudo que Maria precisou ponderar foram as determinações que sobre ela recaem.
Suponha-se agora que Maria, Joana e José precisam realizar a mesma ação conjuntamente. Se na primeira ação os elementos envolvidos podem ser descritos como (C+S+P01); na segunda, é necessário expandi-los, (C+S+P01)+(C+S+P02)+(C+S+P03). Qualquer pessoa que já tentou marcar uma reunião entre amigos sabe a dificuldade de agendar um dia possível para todos, é basicamente sobre disso que se trata a descrição acima: coordenar uma ação específica é mais difícil quanto mais pessoas estão envolvidas nessa ação. Se a leitora permitir uma simplificação, podemos dizer que a dificuldade organizativa (DO) é maior ou igual
ao número de pessoas organizadas menos 1 (um).
O que, afinal, esse aparente truísmo teria a ver com a organizações proletárias?
Voltando à descrição que Marx faz do capital, percebe-se que esse modo de produção cria uma elite proprietária dos meios de produção e, através deles, com acesso privilegiado à riqueza socialmente produzida. Posto de maneira mais simples, é da natureza do capital dar a um relativamente pequeno grupo de pessoas mais recursos, esses são os burgueses. Essa é uma das consequências políticas do funcionamento do capital.
Uma consequência gêmea e oposta, o capital cria um grupo numericamente majoritário cujos integrantes tem seu acesso à riqueza social estruturalmente dificultado. Em suma, capitalistas tendem a ser poucos e relativamente ricos e proletários, muitos e relativamente pobres. Tendo em mente a definição de poder com que se trabalha aqui, o capital cria dois polos de poder, um baseado em recursos e outro baseado em números de indivíduos.
Mantendo que os interesses de cada classe são antagônicos, quando o burguês exerce poder político é esperado que ele use os recursos que possui; quando um proletário pretende exercer poder político, espera-se que isso se dê pela arregimentação dos números. Se proletários e pessoas pudessem ser confundidos, os interesses de classe poderiam ser transpostos imediatamente para a ação política, pois as únicas determinações que agiriam sobre eles seriam aquelas do capital, mas como esse não é o caso, o interesse objetivo de cada pessoa integrante da classe precisa ser ponderado contra todas as outras determinações sociais – lembremos, (C+S+P).
Esse trabalho de tradução do interesse objetivo precisa ser feito por todos os membros da classe, e a maioria deve concordar em seguir um mesmo curso de ação política. Mesmo se a luta pelos seus interesses pudesse ser realizada por uma ação específica em um momento específico – tomar um café ou votar – dificilmente o resultado da maioria seria confluente com o interesse objetivo da classe. Isso acontece porque os interesses objetivos existem num sistema aberto em que várias outras forças atuam.
O que parecia no nível estrutural (abstrato) como poder político do proletariado tem sua eficácia cerceada pelo fato de a proletária ser uma pessoa. A organização dos números que o capital dá ao trabalho ao invés de ser fonte de poder político é, no nível empírico, fonte de desorganização política. A vantagem numérica do trabalho é domesticada pelos próprios números. Temos então uma classe relativamente destituída de recursos cuja fonte de poder disponível trabalha contra si mesma.
Do outro lado temos os capitalistas. Digamos que Jorge Paulo Lemann, Eduardo Saverin e Marcel Hermann Telles precisem se encontrar naquele mesmo café para alinhavar seus interesses, seria para eles mais fácil ou mais difícil do que para 20 pessoas anônimas, considerando apenas os números de indivíduos. O que é na estrutura do capital uma desvantagem, aparece na ação política como uma vantagem relativa. As elites precisam coordenar menos determinações sociais para se unirem politicamente e, no caso dos burgueses, essa vantagem se soma àquela dos recursos.
Pode-se, portanto, dizer que, dado que os atores políticos são pessoas, o capital cria duas facilitações para a organização política dos capitalistas – menor número e mais recursos –; por outro lado, a classe trabalhadora é agraciada com duas dificuldades – menos recursos e maior número. Ao nível da análise da agência social, têm-se que a organização política burguesa seria pró-estrutural, a proletária contraestrutural. Aquilo que o capital uniu ele também separa.
Dada a especificidade dos pontos desenvolvidos aqui, cabem algumas clarificações. O cerne do argumento não toca todos os aspectos políticos decorrentes dos papéis sociais da estrutura social do capital. Não se falou, por exemplo, das consequências políticas da privação de recursos, pois é isso que ser proletário significa. Tampouco se falou das relações interpessoais que membros de uma classe mantêm entre si por serem membros de uma mesma classe.
Meu argumento se preocupa apenas sobre a distribuição de recursos e, principalmente, seres humanos feitas pelo modo de produção capitalista e sobre as consequências políticas que advêm de tal distribuição. Seu elemento diferencial é a introdução da pessoa no locus político em que o marxismo costuma imputar ao proletário.
O que se encontrou ao realizar tal análise foi:
a) Pessoas contorcem o valor político dos números de seres humanos;
b) Sendo assim, o capital favorece os burgueses com recursos e números;
c) E o capital constringe politicamente o trabalho tanto por meio de recursos quanto de números.
A tarefa política do comunista seria tergiversar as dificuldades políticas criadas pelo capital e fomentar o poder político proletário. Uma vez que superar as restrições recursórias é o fim do projeto comunista, ter nos recursos o foco de sua organização política é confundir o ponto de partida com o de chegada, declarando a própria derrota. A escassez relativa não significa descuido com os recursos disponíveis, muito ao contrário, por serem relativamente parcos, espera-se de organizações comunistas o maior dos rigores contábeis. A força proletária, no entanto, encontra-se nos números.
5. A função numérica da democracia
Se a leitora foi convencida pelas linhas anteriores, as seguintes parecerão óbvias. A defesa da democracia interna às organizações políticas proletárias é a defesa da possibilidade de haver organização política. Não se defenderá, pois, a democracia em nome da democracia, mas em nome da vitória.
Voltemos ao exemplo das pessoas marcando para tomar café, mas adicionemos uma complicação a mais. Em vez de apenas um evento a que 20 pessoas devem comparecer apenas uma vez, digamos que essas mesmas pessoas devem tomar café juntas toda semana.
O evento único permitiu que se argumentasse sobre a dificuldade de combinar as múltiplas determinações sociais pertinentes a cada pessoa. Talvez a leitora não tenha atentado, no entanto, para como se assumiu que alguém, sabendo dos horários disponíveis de cada um, agendou o horário comum. O que estava lá subentendido precisa ser trazido para os holofotes. O processo de averiguar as possibilidades de cada envolvido e escolher o horário mais adequado é democracia, e o encontro das 20 pessoas não poderia ser realizado sem esse processo.
O proletariado não possui meios suficiente de constranger seus membros a realizar uma ação. Ele não pode privá-los de um salário, por exemplo, para lhes forçar uma rotina de trabalho. Ele também não pode empregar punições generalizadas para que se siga normas. Em suma, proletário não tem as vantagens do capitalista ou do estado quando tenta coordenar as ações de seus membros. Uma vez que o constrangimento generalizado não é uma opção, resta ao proletariado aquiescer às determinações que prendem seus membros e navegar entre elas. (Mesmo que constrangimento fosse uma alternativa para o proletariado, é um erro crasso basear seu poder político naquilo em que seu adversário pode superá-lo facilmente, recursos e violência).
Coordenar sem constranger exige, pois, que os membros informem reciprocamente quais são os seus espaços de manobra. Isso não é algo que uma liderança possa avaliar sozinha. Como se definiu acima, a noção de pessoa é necessária para entender a maneira idiossincrática que cada ser humano lida com as mesmas pressões sociais. Dizer que qualquer liderança é capaz de saber como cada membro do grupo resolve suas questões é paternalista nos contextos sociais menores, e absurdo em larga escala.
Uma vez que se concluiu que o poder proletário é baseado em números, definir o número com que se pode contar em cada ação política é essencial para qualquer organização. Se constrangimento e outorga não são possíveis, a democracia é a forma restante de mobilizar o poder político proletário.
Voltemos ao exemplo do café, outro elemento que outorguei no cenário foi a ação que as 20 pessoas realizariam. Uma vez, porém, que suspendemos a outorga como meio organizativo adequado, a questão do que fazer retorna e é inelutavelmente ligada à questão de quem o fará. 15 pessoas podem estar dispostas a tomar café, mas 20 pessoas prefeririam tomar cerveja. Se café e cerveja forem politicamente equivalentes, toma-se cerveja. Essa avaliação é possível apenas democraticamente. A democracia interna permite que se avalie o poder do grupo e como melhor utilizá-lo.
Uma pequena expansão no cenário adicionará ainda outra vantagem. Até aqui se assumiu que essas vinte pessoas precisam apenas se encontrar uma vez, essa foi uma simplificação necessária para os argumentos anteriores, mas ela obscurece um dos elementos principais da organização política: ela é formada por atos espraiados no tempo.
Mais verossímil com a discussão seria um cenário em que essas 20 pessoas precisam se encontrar toda semana por, digamos, 5 anos. São aproximadamente 260 encontros. As dificuldades em mobilizar essas 20 pessoas são também multiplicadas. Agora, toda semana é necessário que se avalie o horário do encontro e que se fará nele (café ou cerveja, por exemplo). Não há garantia de que o horário ou a bebida anteriores sejam adequados para o futuro. Também não há garantia que as pessoas e as pressões sociais com as quais elas lidam tenham se mantido constantes. Numa organização política, isso significaria que não há garantia de que o poder de uma semana seja transferido para a próxima. A democracia, portanto, é do reino das várias vezes (9).
A democracia é o método pelo qual grupos cujo poder político depende de números monitora e fomenta o próprio poder. Ela não é opcional. E sua necessidade é constante, é obrigação estratégica de qualquer organização proletária ou comunista criar os meios que permitam a expansão cada vez maior de decisões democrática em seu seio.
Por fim, enquanto o proletariado tenta se organizar, o capital cria naturalmente as condições que dificultam essa organização – como já se argumentou. É conclusão necessária, portanto, dizer que quem impede a expansão da democracia interna colabora com as forças do capital.
Recapitulando a secção:
a) O poder proletário é dependente dos números pessoas que mobiliza;
b) A outorga de ações políticas é dificultada por:
b.1) A escassez relativa de recursos para constranger os membros do grupo;
b.2) Impossibilidade de violência generalizada;
b.3) As variadas formas de resolver as demais pressões sociais afetando os membros do grupo;
c) Democracia é capaz de ponderar (b.3);
d) Ponderar (b.3) delimita as ações possíveis para o grupo;
e) A democracia transforma o poder político potencial criado pela estrutura do capital em poder empírico;
f) Não há garantia de que as condições de (b.3) sejam constantes, por isso, processos democráticos devem ser frequentes;
g) Cercear a democracia interna é trabalhar a favor das forças do capital.
Espero que a leitora encontre algum valor nas linhas acima.
Notas:
(1) Mestre em psicologia pela Universidade Federal de Sergipe. Contato: [email protected]
(2) Em prol da simplicidade, no presente texto, “trabalhadores” e “proletários” serão considerados sinônimos.
(3) Ver a discussão sobre o conceito de poder de Foucault feita por Andrew Sayer em “Power, causality and normativity: a critical realist critique of Foucault” para uma melhor compreensão do tratamento que o realismo crítico pode dar ao termo.
(4) Ver Características “Chave do Realismo Crítico na Prática: um resumo” de Andrew Sayer para uma boa introdução em português ao realismo crítico.
(5) Em debate com Bhaskar, Alex Callinicos expressou simpatia à aproximação do marxismo e realismo crítico, ver: “Marxism and Critical Realism: A Debate”. Andrew Collier, um reconhecido intérprete do realismo crítico, é também um sabido defensor da aproximação. Os trabalhos de Sean Creaven buscam explicitamente um vínculo entre marxismo e realismo crítico, ver “The ‘Two Marxisms’ Revisited: Humanism, Structuralism and Realism in Marxist Social Theory”. Uma posição menos entusiasmada pode ser encontrada em “Marxismo, Pós-Marxismo e Realismo Crítico: reflexões acerca do debate Bhaskar/Laclau” de Neil Curry.
(6) Aqui o realismo crítico corrobora Marx. Ao contrário da crítica fácil em arrolar as várias dimensões sociais que não são consideradas, uma perspectiva realista postula que O Capital só foi possível por essas “omissões”. Exceto se se quiser defender que os mecanismos causais do racismo e machismo são idênticos aos do capital, abstrair outras determinações é a postura intelectual correta. A ironia retumba, no entanto, quando esses mesmos críticos acusam o marxismo de ser uma metateoria totalitária.
(7) Não possuir os meios de produção explica porque alguém precisa vender sua força de trabalho, mas não explica porque uma pessoa trans só consegue vender sua força de trabalho em certos nichos econômicos.
(8) Para uma conceituação mais precisa do conceito de pessoa em Archer ver seus livros “Being Human” e “Structure, Agency and the Internal Conversation”.
(9) Essa é uma distinção já clássica na teoria social. O marxismo está acostumado a pensar em práticas sociais, o que proponho é um pensamento político marxista fundado na ação social. Para um histórico das teorias da ação ver “Theories of Social Action” de Alan Dawe em “A History of Sociological Analysis”.