As políticas da psicanálise: Samo Tomšič em O Inconsciente Capitalista

Por 19 (1), entrevista por Dennis Schep, via Literaturwissenschaft in Berlin , traduzido por Júlia Gonçalves

Por quê Marx e Lacan?

A pergunta real é: Por quê Marxismo e Psicanálise? Olhando para trás, as pessoas poderiam concluir que as tentativas anteriores de combinar esses campos de pensamentos fossem fracassadas. Depois, houve os anos do pós-modernismo, quando Marx não mais era visto como um pensador chave da economia, mas sim, se tornou uma curiosidade exótica no pensamento cultural. Freud, da mesma forma, não era mais considerado como fundador de uma prática clínica eficaz e o interesse no seu trabalho era principalmente das suas escritas culturais. Entretanto, não é coincidência que desde a crise de 2007/2008 ambos voltaram, uma vez que os dois são essencialmente pensadores de crises. Eles exploram um nexo causal entre o desenvolvimento crítico na sociedade e a produção do que poderia de alguma forma patética ser chamada de “vida prejudicada”.

Marx, por outro lado, teoriza o dano subjetivo causado pelo capitalismo em diversas formas, expondo as consequências devastadoras da precarização, exploração, busca por lucro etc. Ainda, há a noção político-econômica de homo oeconomicus, que é menos uma descrição da natureza humana do que uma ferramenta ideológica que reformula a subjetividade humana de acordo com as fantasias liberais e neoliberais sobre a sociedade, o mercado e o valor. Em um sistema que declara “ganância é bom” – em primeiro lugar, é claro, a ganância do sistema – o dever de cada indivíduo é representar ele/ela como um/a narcisista egocêntrico/a. Entretanto, essa noção de subjetividade perdeu sua eficácia ideológica durante as últimas crises, os danos que a sua aplicação criou permanecem.

Freud, por outro lado, parte de uma subjetividade danificada chamada por ele de neurose, na qual ele propõe uma etiologia que não é apenas sexual, como frequentemente ouvimos, mas também socioeconômico: ele examina a conexão entre as estruturas sociais e libidinais. Freud raramente fala do capitalismo, ao invés disso, ele usou um termo mais neutro “cultura”, mas procurando em textos como O Mal-estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur) nós podemos facilmente observar que ele fala sobre as sociedades capitalistas. Ele, implicitamente, entende seu trabalho clínico como uma crítica das condições sociais do capitalismo. No fim, a neurose é um sintoma social.

E Lacan?

Lacan conectou Marx e Freud de uma forma bem particular, e em um momento crítico, na sequência imediata de Maio de 1986. Sua estratégia foi contra o “otimismo” levado por pensadores como Marcuse e Reich, esses que declararam que a psicanálise abriria a porta para a libertação da sexualidade. Parcialmente, eles estavam certos: alguns avanços emancipatórios não teriam ocorrido da forma que ocorreram sem a psicanálise. Mas como muitas outras tentativas de emancipação ou libertação, a revolução sexual falhou. Capitalismo já estava dissolvendo estruturas sociais antigas e relações familiares, os substituindo por uma nova economia libidinal que à primeira vista implica uma atitude mais liberal em relação à sexualidade. Marcuse estava ciente desse desenvolvimento quando falou sobre “dessublimação repressiva”.

Lacan insinuou algo similar, mas não exatamente o mesmo, quando ele descreveu o superego como um imperativo do prazer. O ponto de Lacan era que, no nível de pensamento, mas também em um quadro social, há uma estreita ligação entre trabalho e prazer, ou entre prazer e exploração. Isso significa que o sujeito não é bem aquele que aproveita mas na verdade é “aproveitado” pelo sistema. Em contraste, para a celebração do prazer e sexualidade, a psicanálise partiu da visão de que as relações de poder são sempre já relações libidinais, ou que nossa economia libidinal é um componente essencial da nossa economia social. Isso significa que “nosso” modo de prazer subjetivo nunca é transgressivo ou subversivo em relação ao modo de produção capitalista. A psicanálise registra o caráter insuportável do modo de prazer capitalista.

Então pessoas como Freud e Lacan oferecem uma correção contra certas idealizações de uso da psicanálise ao enfatizar que a negatividade já está sempre lá, não algo que limita a motivação vinda de fora. Marx está de acordo com esse tipo de argumentação? Ele não acreditava que o capitalismo oprimia as massas e que o comunismo libertaria eles?

A psicanálise corrige algumas utopias da visão marxista da sociedade sem alienação, na qual as relações humanas finalmente seriam autênticas e incorruptas. Eu acredito que esses elementos são extremamente insignificantes nas escritas maduras de Marx, e aparecem apenas por razões estratégicas. Eles não tem nada a ver com o projeto científico da crítica política econômica.O Marx maduro não fala mais sobre a abolição da alienação, como ele fez em seu manuscrito de 1844. Marxismo e psicanálise compartilham uma ideia básica da subjetividade da natureza humana e relações humanas: não há relações sociais sem conflito, contradições , negatividade, brigas etc., assim como não há pensamento sem inconsciente. Eu acho absurdo e ilusório afirmar que o foco da emancipação política é abolir alienação: não há circunstância em que o sujeito seja completamente transparente consigo mesmo, exceto se abolirmos a linguagem, na qual não é apenas a principal fonte de alienação, mas simplesmente é alienação.

O que eu estou procurando é uma noção de alienação que não é apenas carregada negativamente. Na alienação de Marx e Freud e a função inconsciente como uma noção crítica, em que transmite uma lição sobre a natureza do pensamento e as relações humanas. Por exemplo, quando Marx e Engels escrevem que toda, até o momento, história humana tem sido uma luta de classes, eles não querem dizer que com a abolição da estrutura de classes da sociedade toda luta acabará. Eles simplesmente dizem que a luta de classes desaparecerá como luta privilegiada ou abrangente no decorrer do qual todos os outros conflitos inter-humanos são canalizados. Algo similar pode ser dito sobre a noção de repressão psicanalítica, em que frequentemente é entendido como uma força negativa restrita, mas que Freud explicitamente afirma que é uma operação produtiva: ao invés de oprimir algum tipo de sexualidade autêntica, constitui e determina uma economia libidinal específica. Para a psicanálise o objetivo foi de fato superar a repressão, mas não significa que mirou em algum incorrupto e autêntico estado de prazer, sexualidade, ou motivação. Freud deixa claro que a motivação não é uma força transcendental no qual é subsequentemente corrompida por suas diversas “vicissitudes”, mas que é integralmente dependente nessas vicissitudes. Para Freud e Lacan, sublimação é um processo de transformação na qual muda os objetivos sexuais e dessa forma transforma uma autodestruição ou modo de prazer repressivo em algo mais tolerável. Mas isso não sugere que no fim do processo o sujeito esteja em uma relação harmoniosa de prazer. Se a psicanálise prometesse isso, seria um verdadeiro golpe.

Nós podemos destrinchar esse lado radical da psicanálise, mas em seu livro você também traz o conservadorismo de Lacan.

Enquanto pessoa privada, Lacan simpatizou com De Gaulle, e quando falamos de teoria seu interesse por Marx era definitivamente limitado. Mas o esforço teórico denotado pelo nome “Lacan” é suscetível a leituras significativamente mais do que conservadoras. Quando ele contou aos estudantes de Vincennes, em 1969, que eles são histéricos ansiando por um novo mestre, nós podemos confundir suas observações como cinismo, mas eu acredito que ele queria chamar atenção para o fato de esses estudantes estarem errados em achar que a libertação sexual ou do prazer é uma transgressão sistêmica. As relações de exploração capitalista são ancoradas em uma economia libidinal estritamente determinada. Lacan propôs a exclamação “Aproveite!” como a prosopopéia do superego. Suas explicações normalmente derivam do imperativo de prazer do trabalho de Marquis de Sade, mas eu sempre me perguntei se essa propaganda para Coca-Cola, essa mercadoria capitalista por excelência, não desempenhou um papel tão bem: “Sade com Coca-Cola” como um complemento para Kant avec Sade (do francês, Kant com Sade). O capitalismo não poderia ter formulado suas próprias lições e os impasses produzidos no sujeito tão precisamente: por um lado a busca infinita do sujeito por um prazer que nunca está lá e do lado do sistema a extração da mais-valia, esse prazer do sistema, do esforço do sujeito para viver de acordo com o imperativo do prazer.

É interessante contrastar a aparência do superego nos trabalhos de Freud e Lacan: para Freud, o superego é a sede de exigências proibitivas, proibição do prazer ao invés de uma liminar para o prazer. Poderia-se explicar esse contraste ao olhar as transformações de uma sociedade puritana industrial do fim do século 19 para o capitalismo consumista liberal do século 20. É claro, isso não significa que nos livramos dos aspectos proibitivos. O superego proibitivo está novamente em alta desde a última crise e o que exige impiedosamente de cada sujeito é o sacrifício incondicional para a perpetuação do sistema. Essa é uma possível lição que pode ser tirada da crise de débito da Europa.

Como pessoa, Lacan não era Marxista. Era Marx Lacaniano?

Ele era tão lacaniano quanto Lacan era marxista. Mas acredito que tanto a crítica de Marx à economia política quanto a psicanálise freudo-lacaniana obtêm toda a sua vantagem crítica apenas sob condições sociais impulsionadas pela crise. Portanto, não é coincidência que hoje haja uma retomada no interesse da conexão entre psicanálise e marxismo. Enquanto indivíduos, Lacan, o burguês francês, e Marx, o proletário, não poderiam estar mais distantes, mas eu não acredito que isso deveria nos impedir de pensar sobre uma aliança entre seus trabalhos. Eles expõem uma “negatividade compartilhada” – um termo bem proposto pelos meus colegas do projeto Klassensprachen – o que une todos temas. A “obsessão” psicanalítica com a problemática do prazer é essencial para o projeto de uma crítica econômica política, porque mostra que o sistema nos mantém mais em “nosso” modo de prazer.

Então nós podemos usar Lacan contra certas leituras idealizadoras de Marx, e podemos usar Marx para politizar a psicanálise?

Exatamente. Entre os Lacanianos encontramos muitos “reacionários”, provavelmente porque eles lutam para manter o status de privilégio que a psicanálise desfrutou no passado, especialmente na França. Mas a psicanálise tem sido ameaçada ao longo de sua história. Nos Estados Unidos, foi instrumentalizada como uma ferramenta para reintegrar as pessoas ao quadro social existente, mas foi abandonado assim que uma técnica mais “eficiente” foi desenvolvida. Apesar de tudo que deu errado, a psicanálise, pelo menos em seu aspecto freudo-lacaniano, representa um capítulo importante na história da crítica e continua sendo um campo de batalha que precisa ser reivindicado repetidamente para fins emancipatórios. Freud desmistificou o papel da cultura, e particularmente do capitalismo, na produção de psicopatologias: depois da psicanálise, não se pode mais fingir que existe uma divisão clara entre estruturas individuais e sociais (o que certamente não impede que se ignore esta lição). Se uma coisa é característica dos advogados do capitalismo é a sua tendência a ”individualizar problemas”: se você experienciar depressão, pânico ou ansiedade induzida pela precariedade, o problema é seu. Para a psicanálise, ao contrário, não há problemas privados.

Eu esperava que você abordasse esse problema, pois ele vai direto para um dos temas centrais do seu livro: a do sujeito, que precisamente não é um indivíduo. Você polemiza contra a política de identidade ou qualquer tipo de política baseada em interesses particulares.

Sim, e essa polêmica gira em torno da ilusão de que há algo como um interesse privado, ao qual eu contrastaria a ideia de “negatividade compartilhada” e o interesse político emancipatório que eu acho que pode estar associado a ela. Até Adam Smith, quem ainda é celebrado entre liberais e neoliberais como o teórico do interesse privado ,mostrou que existe uma continuidade direta e altamente problemática entre os interesses aparentemente privados dos indivíduos e os interesses estruturais do sistema capitalista.

Voltando ao que conversamos mais cedo, o capitalismo não inventou a alienação ou o inconsciente, mas inventou sim uma forma eficiente para explorar eles. O objetivo da política emancipatória seria a gestão coletiva da alienação, e não sua abolição. O objetivo da psicanálise não é aspirar a algum estado ideal fictício no qual o sujeito se livraria de todos os seus sintomas ou se tornaria o mestre de seu inconsciente. A meta é permitir o analisando a trabalhar contra a resistência do sistema e contra os efeitos nocivos que essa resistência introduz em nossas vidas. Quando a psicanálise insiste que não há sujeito sem sintoma, não está glorificando a doença ou denunciando toda esperança de mudança como ilusória. Há um claro imperativo de cura na psicanálise, mas isso não se equivale a algum tipo de normalidade ficcional. Em vez disso, a psicanálise desconstrói a ideia do “eu normal” e se esforça para criar as condições para que o sujeito exista de forma mais ou menos suportável. O capitalismo não faz isso: ele explora a doença e basicamente quer que estejamos doentes, ao mesmo tempo em nos bombardeiam com normalidades ficcionais, homo oeconomicus sendo meramente algo ficcional do que “subjetividade normal” deveria ser.

Então, qualquer luta anticapitalista não deve estar enraizada no interesse individual, mas sim em uma noção de sujeito que não é individual.

Precisamente. O paradoxo é que quanto mais vazio, impessoal e “abstrato” que o sujeito aparenta, mais ele expõe a negatividade que diz respeito a todos. Quanto mais Marx descreve a lógica do modo de produção do sistema capitalista, mais ele expõem as contradições e condições de exploração a que todos estão sujeitos. Inversamente, quanto mais ele se concentra nas condições empíricas da classe trabalhadora, mais ele dá margem ao equívoco de que toda luta de classes se resume a um confronto entre 99% e 1%. É claro, essa é a aparência concreta da luta de classes, mas a luta de classes também nomeia as contradições estruturais e os impasses do capitalismo que atravessam e dividem todos os sujeitos. Enfraquecemos a teoria de Marx se a restringirmos à descrição crítica das condições empíricas. O Capital começa com a análise da lógica e das condições estruturais do modo de produção do capitalismo, em um nível em que não há diferença entre o banqueiro e o trabalhador. É claro que, no quadro social concreto eles estão a um mundo de distância, uma vez que o primeiro é a personificação do capital e o último a personificação da força de trabalho. Mas considerados como sujeitos do capitalismo eles são submetidos à mesma exploração e às mesmas mistificações. Para Marx, não há nada inerentemente bom ou revolucionário no trabalhador e nada inerentemente mau ou reacionário no banqueiro.

No capítulo de conclusão, você argumenta que a política não está em sincronia com a modernidade. Você poderia explicar o que quis dizer com isso?

Eu adotei a tese de Jean-Claude Milner e tentei conectá-las com os debates em andamento sobre as políticas comunistas. Eu acho que o último poderia estar associado com o que Freud chamou de elaboração, que é, trabalhar contra a resistência do sistema econômico estabelecido, seja libidinal ou social. Mesmo que o capitalismo se apresenta como uma modernidade como tal, na sua essência ele perpetua as estruturas de dominação e exploração pré-moderna. Quando Lacan descreve o capitalismo como a forma moderna ou distorção do “discurso do mestre” ele quis dizer que tudo se resume à exploração da alienação. Marx aponta na mesma direção quando diz que o senhor feudal se transformou no capitalista moderno enquanto o servo no proletário moderno. A pergunta é se modernidade é meramente pré-modernidade pervertida, ou se implica em um antagonismo político na qual não mais se define em relação ao par “exploração da alienação – fantasia da desalienação”.

A ciência moderna não tem problema de que algo antigo persista. Se há uma revolução verdadeiramente conquistada na história humana ela é a científica. Claro, isso não significa que a ciência moderna não tenha antagonismos epistêmicos, e seu papel central na sustentação das condições sociais capitalistas a torna um dos principais campos de batalha política. A razão do porquê a ciência moderna foi importante para Lacan foi que ela criou condições epistêmicas para a descoberta freudiana do sujeito do inconsciente. Lacan abertamente insistiu que esse é o assunto do qual a política precisaria se ausentar. Em vez disso, a política oferecida pelo capitalismo parte das ficções da subjetividade desalienada, ocultando assim o vínculo entre alienação e exploração. As tentativas de revolução comunista falharam em produzir uma política que não fosse definida por esse vínculo, em parte porque elas também fantasiavam sobre a subjetividade desalienada e as autênticas relações humanas. Em contraste com esses cenários, uma “política moderna” propriamente dita consistiria em um esforço coletivo de manejo da alienação, assim como Lacan falava do fim da análise em termos de “manejo do sintoma” (savoir-y-faire avec son symptôme).

Notas:

(1) Atualmente, Samo Tomšič trabalha no laboratório interdisciplinar Bild Wissen Gestaltung na Universidade Humboldt em Berlim. Em 2015, ele escreveu O capitalismo Inconsciente: Marx e Lacan.

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