Por Matheus Silva (1)
Introdução
Camaradas, nas últimas semanas ampliou-se o debate em torno da atual proposta do novo arcabouço fiscal, (assim nomeado pelo governo), do ministro da economia Fernando Haddad. Como que de surpresa para uns e nem tanto para outros, o novo tem muito pouco de novo, e bebi muito na fonte do velho (antigo teto de gastos do ex-ministro Paulo Guedes). Mas não se enganem camaradas embora apresentado pelo próprio governo, esse conjunto de regras que irá afetar o Estado brasileiro pelo lado da despesa, não tem como dono o governo petista do senhor Luis Inácio Lula da Silva, mas sim a recém independente autoridade monetária nacional, o Banco Central.
No presente artigo, tenho por objetivo apresentar o conjunto teórico ortodoxo que me permite afirmar que o principal dono e interessado que o novo teto de gastos seja posto em prática é o Banco Central.
O Retorno A Ortodoxia, Os Anos 70 E 80
A política fiscal enquanto instrumento de política econômica sempre fez parte do ferramental do Estado capitalista para gestão dos recursos públicos, e durante boa parte do século XX foi objeto de debate entre os economistas da síntese neoclássica keynesiana e monetaristas ou novos-clássicos, discutindo temas como, os efeitos do déficit público sobre a inflação e o balanço de pagamentos ou os impactos do gasto público sobre a demanda agregada e os investimentos privados (LOPREATO, 2006). Contudo durante os anos 1970-80, os debates sobre a política fiscal seguiram outros rumos, visando a questão da sustentabilidade da dívida pública, a credibilidade da política econômica e as definições de regras fiscais para o controle dos gastos (BLANCHARD, 1984).
Com as mudanças ocorridas nas economias capitalistas mundiais nos anos 1980, devido ao fenômeno da globalização (HIRST & THOMPSON, 1998), e no acelerado desenvolvimento das teorias econômicas de monetaristas e novos-clássicos (expectativas racionais), a visão de condução da política fiscal aponta em direção a perda de graus de liberdade por parte dos governos no tocante aos temas de produto e emprego (MONTES & ALVES, 2012). Assim os modelos macroeconômicos passaram a questionar a validade da política fiscal enquanto instrumento adequado para afetar o nível do produto através da demanda agregada, emprego e renda. E com o fortalecimento da ortodoxia no mainstream acadêmico, as ideias de credibilidade da política econômica, sustentabilidade da dívida pública e regras de controle das contas públicas passaram a ganhar cada vez maior notabilidade, repercutindo uma mudança na visão sobre o papel da política fiscal e ajudaram a definir aquilo que ARESTIS & SAWYER (2003) chamaram de “novo consenso macroeconômico”.
Portanto a disciplina na política fiscal para a ortodoxia novo-clássica encontra-se relacionada a austeridade irrestrita e atemporal, na qual a autoridade fiscal (governo central) fica comprometida em elaborar seus orçamentos levando em conta a restrição de financiamento, a estabilidade da inflação e os compromissos da dívida a serem honrados. Com isso haveria ganhos até mesmo para o campo da política monetária, pois o comportamento responsável da autoridade fiscal favoreceria a melhor credibilidade da autoridade monetária, caso essa não fosse independente (KYDLAND & PRESCOTT, 1977).
Dessa forma alguns economistas do campo ortodoxo novo-clássico se mostram completamente contra qualquer tipo de “relaxamento” da política fiscal (SARGENT & WALLACE, 1981; WOODFORD, 1994, 1995), defendendo a visão de que a política fiscal deve ter como objetivo central a geração de superávits, cobrando maior responsabilidade dos governos com maiores cortes de gastos.
Em síntese a ortodoxia chegou ao consenso de que os problemas das variáveis econômicas que se relacionam com os fundamentos fiscais só podem ser resolvidos com a manutenção da confiabilidade da trajetória sustentável das contas públicas. Nesta visão o principal papel da política fiscal é ser “responsável”, assegurando a boa credibilidade do governo na perspectiva dos seus credores, pois somente assim os agentes que atuam de acordo com as expectativas racionais, ou seja, que reagem assumindo posições embasadas na avaliação do cenário macroeconômico vigente e a credibilidade da política econômica adotada, aceitariam reduzir o prêmio de risco (taxa de juros) e voltariam a investir, mantendo o equilíbrio externo, isto é, financiando o balanço de pagamentos e a estabilidade da taxa de câmbio.
Assim a política econômica deve ser enxergada como um processo contínuo, independente do governo vigente, de modo a criar um ambiente onde os agentes privados (capitalistas), acreditem na manutenção futura das políticas atuais, pois a presença de descontinuidades poderia afetaria a manutenção de seus interesses e ampliar os riscos de mercado. Nesta perspectiva teórica é papel do Estado, novamente, independentemente do governo, manter a consistência intertemporal dessa política de austeridade irrestrita. Dessa forma o resultado das contas públicas passou a ser visto como um indicador que orienta as ações dos capitalistas em suas decisões de investimento.
Sobre Como A Política Monetária Exerce Dominância Sobre A Política Fiscal, Ou Como O Banco Central Controla O Governo
Durante os anos 1970 as proposições monetaristas, conduzidas principalmente por Milton Friedman alegavam que o problema da inflação era estritamente monetário, assim o poder de controlar a inflação dependia exclusivamente de conter a taxa de oferta monetária do Banco Central. Contudo durante os anos 1980, os novos-clássicos, conduzidos sobretudo por Thomas Sargent e Neil Wallace, proporam que apenas o poder da autoridade monetária não seria o suficiente para poder controlar a inflação, seria preciso estabelecer um tipo de coordenação entre a política monetária e fiscal.
Contudo essa coordenação entre as duas políticas não pode ser de maneira igualaria, isto é, com as determinações de uma política sendo atendidas em colaboração com a outra e vice-versa, no esquema, “uma mão lava a outra”, não, pois os teóricos novos-clássicos, chegaram a conclusão que pode ocorrer casos onde ao definir o orçamento, e por consequência definir também o valor do financiamento, através da dívida pública (interna), o governo obrigasse a autoridade monetária a seguir seus objetivos.
E caso o Estado use títulos da dívida pública com taxas de juros reais maiores do que a taxa de crescimento da economia para financiar seus déficits, o resultado será um aumento da relação dívida/PIB, fazendo com que em algum momento aconteça a ampliação da base monetária e a elevação da inflação por causa da expansão monetária usada para financiar o déficit. Assim para os autores o problema da dominância fiscal seria um problema de temporalidade, ou seja, em troca da redução da inflação no presente através da austeridade monetária, teremos uma inflação mais elevada no futuro, fazendo com que os agentes em busca de antecipar a inflação futura provocada pelo aumento da inflação já esperada, aumentem os preços no presente.
Dessa forma só haveria sucesso no controle da inflação se o caso contrário ocorre-se, isto é, a política monetária, controlada por um Banco Central independente, impusesse a disciplina fiscal, nas palavras de Sargent e Wallace (1981):
“The question is, Which authority moves first, the monetary authority or the fiscal authority? In other words, Who imposes discipline on whom? The assumption made in this paper is that the fiscal authority moves first, its move consisting of an entire D(t) sequence. Given that D(t) sequence, monetary policy must be determined in a way consistent with it, if that is possible. [As we have seen, it may not be possible if the D(t) sequence is too big for too long.] Given this assumption about the game played by the authorities, and given our first crucial assumption, the monetary authority can make money tighter now only by making it looser later. One can interpret proposals for monetary restraint differently than we have in this paper, in particular, as calls to let the monetary authority move first and thereby impose discipline on the fiscal authority. In this interpretation, the monetary authority moves first by announcing a fixed 6 rule like (4) not just for t = 2 , 3 , . . . , T, but for all t > 1. By doing this in a binding way, the monetary authority forces the fiscal authority to choose a D(t) sequence consistent with the announced monetary policy. This form of permanent monetary restraint is a mechanism that effectively imposes fiscal discipline. Alternative monetary mechanisms that do impose fiscal discipline have been suggested, for example, fixed exchange rates or a commodity money standard such as the gold standard. Nothing in our analysis denies the possibility that monetary policy can permanently affect the inflation rate under a monetary regime that effectively disciplines the fiscal authority.” (2) (SARGENT & WALLACE, 1981, p. 07)
Portanto na visão de Sargent e Wallace (1981), a explicação mais satisfatória para a inflação, está associada a elevação desenfreada do déficit público e uma ausência de compromisso da autoridade fiscal para combatê-la, e ao monetizar a dívida, comprando títulos do tesouro nacional, o Banco Central acaba gerando uma receita de senhoriagem (3) que elevaria os níveis de inflação.
Nesse sentido pela abordagem novo clássica o ponto central para o controle da inflação, passa a ser o controle da dívida pública.
Camaradas como a ideia acima pode soar muito complexa para aqueles que não possuem tanta familiaridade com teoria macroeconômica, conforme realizei em trecho acima, irei fazer uma síntese das hipóteses trabalhadas.
Para defender essa mudança de perspectiva, os teóricos novo-clássicos partem da seguinte hipótese. Quando o governo eleva seus gastos através da política fiscal (construindo novos aeroportos, hospitais públicos, universidades, etc.), os agentes privados (capitalistas), incorporam em suas expectativas racionais, que ele, o Estado, deverá aumentar seu nível de financiamento no futuro, ele poderá fazer isso de diversas formas, tributação, emissão de dívida, ou ainda, emissão monetária. Os agentes racionais, isto é, “capitalistas racionais”, se é que realmente existem fora do plano teórico, olhando para o futuro, tenderão a elevar seu nível de poupança no tempo presente, e deixarão de investir, com a ausência de investimentos e elevação dos níveis de gastos por parte do Estado ocorrem dois processos simultâneos, (I) os trabalhadores passam a consumir mais, pois a economia é aquecida pelos gastos do governo, (II) devido à ausência da elevação no nível de oferta de bens e serviços por parte dos capitalistas no mesmo montante que o nível agregado da demanda, ocorre um descasamento que eleva o nível de preços, para amortecer o aumento da inflação, o Banco Central inicia uma política monetária restritiva, vendendo títulos e tirando moeda de circulação, porem os capitalistas que haviam elevado seu nível de poupança, principalmente comprando títulos, agora requerem um maior prêmio de risco para realizar a venda desses títulos, fazendo com que novamente o déficit publico se eleve.
Portanto para evitar esse ciclo de aumento de déficit, é necessário que o Banco Central use de restrição orçamentaria eficaz para anular o crescimento da dívida, trata-se, portanto, de um cenário onde a política monetária exerce dominância sobre a fiscal forçando esta a definir objetivos que estejam alinhados com as determinações da autoridade monetária, sendo está, impedir a todo custo a elevação da dívida pública.
A política fiscal, exercida pelo governo, seja este qual for, nessa posição teórica ocupa posição subordinada a política monetária, coordenada pelo Banco Central “independente” (de quem?) e por consequência perde função de instrumento de política macroeconômica ativo, ficando a política monetária responsável pela estabilidade econômica.
O Banco Central É Dono Do Novo Teto De Gastos
Camaradas como demonstrado no texto acima a entidade que mais se beneficia como o novo teto de gastos é o recente coaptado, pelo mercado, Banco Central, a partir do esquema teórico visto, temos noção agora do porquê o BC não se propor a iniciar uma jornada de redução dos juros curto da dívida, mesmo com as advertências do governo sobre os fenômenos prejudiciais causados a economia, antes que este (governo) apresentasse um esquema de regras, que aquele (BC) considerasse adequado.
O que está ocorrendo no Brasil, é uma situação política onde, não importa o governo que esteja no poder, o mercado (no nosso caso, o financeiro) sempre leva a melhor e tem seus interesses atendidos, pois pode, agora a partir de seu banco particular, forçar o governo eleito pelo voto popular, a atender seus interesses a qualquer momento.
O Banco Central é o principal dono do novo teto de gastos, e através dessa regra rígida sobre as despesas do Estado, ele irá forçar e impor sua própria disciplina, de mercado, ao povo brasileiro, independente do governo que o povo eleja através do voto.
O Brasil, caso o novo teto de gastos seja provado, só terá um único poder máximo, o Banco Central, e o seu presidente terá poderes como nenhum outro presidente do BC jamais teve, e em nenhum outro lugar do planeta jamais foi visto.
Considerações Finais, Aos Camaradas, O Que Fazer?
Camaradas, considero que seja o intuito de todo marxista brasileiro, convicto das ideias de que esse país precisa passar por uma mudança estrutural radical, que esse novo teto de gastos não seja posto em prática.
Portanto o que devemos fazer? Primeiramente enquanto o projeto não for aprovado, devemos utilizar todos os meios de comunicação de massas necessário para explicar a população o quão danoso a nossa economia ele será, muitas vezes em economia a maior parte do povo é deixado de lado, de maneira proposital, por uma parcela de economistas que gostam de utilizar um linguajar mais culto e rebuscado, isso é feito para segregar as pessoas do debate e manter elas longe de algo que afeta a vida de todos diariamente. Estabelecido o debate público, devemos estar atentos também a qual será a próxima nomeação do presidente do BC, isso ira ocorrer no segundo ano de mandado do atual governo, essa pessoa será indicada pelo atual chefe do poder executivo, por isso devemos pressionar o governo para que trabalhe com opções de nomes do campo heterodoxo, e que possuam uma perspectiva economia mais alinhada aos interesses da classe trabalhadora, pois é papel do BC não apenas zelar pela estabilidade de preços, mas também promover o pleno emprego.
É necessário também que fiquemos atentos as penalidades autoimpostas ao governo que virão com a proposta do novo teto, é extremamente crucial que lutemos para que (I) não sejam imbuídos crimes de responsabilidade pelo não cumprimento das metas de superavit ou déficit, (II) que sejam estabelecidas metas de promoção do aumento do nível agregado de emprego, e (III) que haja mecanismos de promoção do investimento anticíclico para períodos de crise.
Camaradas por fim, devemos nos lembrar que esse governo atual, social-liberal para uns, social-democrata para outros, é um governo em ampla disputa, e demonstrar ao mercado que se eles quiserem impor a disciplina deles a nós, nós iremos, pelos todos os meios necessários, impor a nossa disciplina a eles.
Notas:
(1) Matheus Silva (26), Economista Marxista, Mestrando em Macroeconomia & Finanças pela UFABC, militante da Unidade Popular pelo Socialismo.
(2) Destaque realizado pelo autor.
(3) Autofinanciamento do Estado promovido pela emissão monetária.
Referências:
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