Por Maurício Hoffmann Moreira (1)
O neoliberalismo conseguiu emplacar no senso comum o mito de que a economia do Estado funciona como a de uma empresa e, que a solução para os problemas econômicos de nosso país é a austeridade.
A questão fundamental, para nossa análise, é que a realidade material se mostra diferente da mitologia neoliberal.
A própria sabedoria popular brasileira discorda da doutrina neoliberal, quando afirma em forma de ditado que “quem não se endivida, não cresce”. E isso é também o que nos demonstra a experiência prática.
No mundo empresarial, exemplos disso não faltam: desde a empresa multinacional que opera no vermelho para crescer, conquistar o monopólio de mercado e buscar uma maior taxa de lucros futura; até gigante do varejo que aplica fraude contábil, acumula dividas bilionárias e pleiteia recuperação judicial; ou o bem sucedido empresário verde-amarelo que acumula dívidas milionárias com a união enquanto financia o crescimento de sua rede através de um banco estatal.
Apesar de tudo isso, o fato é que, no plano econômico, o Estado está muito distante da realidade da economia de uma empresa. O Estado é um ente soberano, emissor de sua própria moeda, com a qual paga despesas e contrai dívidas, e por isso não possui limites estáticos ou pré-estabelecidos de endividamento e investimento. Infelizmente empresas não podem emitir moeda (não de forma legal).
O investimento estatal possui um papel estratégico para a transformação social de um país. Peguemos o exemplo do Projeto do Pré-Sal. Nele, foi o investimento estatal de longo prazo (e não o investimento privado) que possibilitou a pesquisa, criação de tecnologia, de capacidade técnica/operacional para a exploração de um patrimônio inestimável de combustíveis fósseis. À época, algo impraticável pela iniciativa privada. E que certamente seria impraticável pelo Estado Brasileiro sob uma política de austeridade.
Mesmo levando em conta o alto custo social e ambiental da exploração de petróleo, o gigantesco excedente econômico produzido com o Pré-Sal representou um potencial imenso em termos de transformação nacional. Uma promessa na promoção de soberania nacional, justiça social, desenvolvimento, autossuficiência energética e financiamento de políticas públicas.
E qual foi o papel do capital privado nessa história? Ora, se falamos anteriormente em “potencial” do Pré-Sal, é porque sabemos que grande parte de seu excedente econômico foi cooptado pelos interesses do capital internacional e da burguesia local. Foi subtraído, saqueado, usurpado pela classe dominante. Os mesmos que tentaram sabotar a criação de uma estatal brasileira petróleo, pois o país não possuiria vocação para tal atividade; que posteriormente atacaram o Projeto do Pré-Sal, alegando sua inviabilidade técnica e econômica; foram os mesmos que se beneficiaram economicamente de sua viabilização. Isso porque desde a criação da Petrobras impetraram uma luta pela terceirização de atividades de pesquisa, refino e transporte de petróleo e gás no país, como também pela privatização dos campos de petróleo, refinarias, distribuidoras e outras empresas estatais. Uma luta que para a infelicidade do povo brasileiro, se sagrou exitosa.
O fim do monopólio da Petrobras foi conquistado pelo capital privado em 1995, durante o governo FHC, mas é preciso lembrar que a maior parte dos leilões de concessão e partilha de campos de petróleo aconteceu com a anuência dos governos de Lula e Dilma.
Se para as amplas massas de um povo o investimento estatal pode representar uma mudança positiva e substancial das condições de vida, para a classe dominante o investimento estatal pode representar um obstáculo quando absorve demandas que poderiam ser solucionadas através da dinâmica de mercado. Quando produz divergência ou antagonismo com a lógica da reprodução e acumulação de capital.
A problemática, como podemos perceber, não é o “déficit” em si, mas o resultado prático da política fiscal, de receitas e gastos públicos.
Comprovação disso é que não há recepção negativa do mercado frente à notícia de que o governo federal gastou, no ano de 2022, 1,879 trilhões de reais com o pagamento de juros e amortização da dívida pública, o que representa 46,3% do orçamento federal. Ou com 800 bilhões de reais gastos pelo governo liberal-fascista de Bolsonaro/Guedes, acima do limite do teto de gastos estabelecido, para garantir auxílios sociais que potencialmente garantiriam sua reeleição. Sem mencionar a renúncia de receita praticada com o perdão e refinanciamento de dívidas de grandes empresários, isenções tributárias aos lucros e dividendos, às grandes fortunas, e ao agronegócio, por meio da Lei Kandir.
Isso que chamamos de conflito distributivo, disputa pelo orçamento, é na verdade o reflexo da luta de classes. Uma luta entre interesses antagônicos pela aplicação de recursos que são mais ou menos limitados.
O teto de gastos, agora defendido pelo governo Lula, é a materialização da mitologia neoliberal do “Estado-Empresa” enquanto política fiscal. É parte de uma profecia autorrealizável, que ao se acreditar, se concretiza. Pois o problema está mal compreendido. Quando os neoliberais dizem que a austeridade é a saída para a crise, não se referem à crise da fome, do desemprego, do genocídio indígena e extermínio da população negra, referem-se à crise que está submetida a burguesia, que percebe a impossibilidade do aumento indefinido de suas taxas de lucro. Para solucionar esta crise, em específico, é preciso garantir a diminuição da participação do Estado em setores estratégicos, que possibilite a incorporação de novos nichos de mercado à iniciativa privada, o aumento da exploração sobre a classe trabalhadora e o aumento da transferência de valor aos países da centralidade do capitalismo.
Da maldição decorrente dessa profecia, nenhuma política de conciliação nos salvará. Se o social-liberalismo insiste em permanecer mergulhado no universo da mitologia neoliberal, insistamos na construção do poder popular, rumo ao socialismo! Pois como nos mostra a experiência prática, é a luta popular que muda a vida e destrói mitos!