Thomas Sankara e o nascimento revolucionário de Burquina Fasso

Por Mamadou Diallo, via Viewpoint Magazine, traduzido por Eros Viana.

Em 1983, 23 anos após a sua independência e a sucessão de vários regimes neocoloniais, o Alto Volta era um dos países mais materialmente desprovidos do mundo. 98 por cento da sua população era analfabeta e seu PIB per capita era pouco mais do que 100 dólares da época. De sete milhões de habitantes do país, seis milhões pertenciam ao campesinato. Este campesinato tinha de subsistir em solos difíceis, encaravam uma desertificação desenfreada, e a degradação dos termos do comércio de algodão, a maior fonte de moedas do jovem país. Desde seu estabelecimento como uma colônia dentro da África Ocidental Francesa em 1919, o Alto Volta era um território sem direitos e desprivilegiado, considerado pelo aparato colonial como uma reserva de mão de obra forçada e trabalhadores agrários para as grandes plantações de café e de cacau da vizinha Costa do Marfim. Equipamento de educação e saúde, mesmo para os padrões bem baixos da região, permaneciam particularmente escassos e inadequados para satisfazer as necessidades de uma população crescente.

Sankara, a Formação de um Sujeito Político

Thomas Isidore Noël Sankara, o filho de um soldado do exército colonial que se tornou um funcionário público, cresceu, no decurso das atribuições de seu pai no interior do país, em contato com o povo, mas blindado de sua miséria. Houve, porém, um momento em sua infância que demonstra a inclinação do jovem Sankara para a rebelião e a sua sensibilidade para a justiça social1. Mas em geral, ele era um garoto consciencioso que, segundo seus biógrafos, demonstrava uma seriedade precoce em seus estudos2. Em 1966, o ano em que Maurice Yaméogo, o primeiro presidente do Alto Volta, foi destituído por um golpe e foi substituído por um regime militar, o jovem Thomas foi aceito na academia militar de Kadiogo, nos subúrbios da capital Uagadugu. Foi lá que ele conheceu Adama Abdoulaye Touré, o diretor de estudos do estabelecimento e um membro do Parti Africain de l’Indépendance3, que havia reunido alguns de seus alunos para discussões políticas informais após horário escolar. Foi provavelmente lá que o jovem Thomas Sankara iniciou seu treinamento ideológico e ouviu pela primeira vez sobre o imperialismo.

Depois de se graduar no ensino médio em 1969, Sankara foi um dos três estudantes da academia a serem ofertados com uma bolsa de estudos e uma possibilidade de continuar seus estudos em Madagascar. Ele ficaria quatro anos na ilha, onde seria profundamente afetado pela Revolução Malagasy de 1972, considerada por alguns como sendo sua “segunda independência”. Em Madagascar, Sankara deu atenção especial ao papel do exército no desenvolvimento socioeconômico do país. Quando ele retornou ao Alto Volta com uma patente de oficial, foi dado a ele o comando de um campo de treinamento que se tornou conhecido por ambos o seu rigor e por suas ideias não-ortodoxas, uma delas sendo sua crença na importância de treinamento cívico e intelectual dos seus recrutas.

Quando a Revolução é a ação mais razoável

A Revolução de Thomas Sankara é rotineiramente descartada por um argumento que afirma que ela foi o resultado de um golpe militar, ao invés de ser o resultado de um movimento popular. O argumento sugere que já que a revolução nasce da vontade de apenas alguns radicais golpistas, ela não tinha nenhuma substância real e nem raízes na história e na sociedade Voltaica. Tal representação da Revolução, que foca apenas nas manobras militares de 4 de agosto de 1983, é superficial e não toma em perspectiva duas condições essenciais: (1) o contexto internacional e nacional no qual a Revolução surgiu; e (2) a legitimidade que Thomas Sankara adquiriu nos anos antes da Revolução.

(1) Thomas Sankara e seus aliados não tomaram o poder de estado em um contexto de instabilidade institucional, mas sim em um clima de instabilidade crônica e uma infindável sucessão de regimes que foram estes próprios estabelecidos por golpes4. Cada um destes regimes efêmeros – nascidos da impopularidade de seus predecessores – se demonstraram incapazes de resolver sua crise social, remover o Alto Volta da órbita da França, e libertar sua economia da dependência de ajuda estrangeira e das flutuações dos preços de algodão. O contexto internacional do começo dos anos de 1980 impunha aos países importadores de petróleo na África como era o caso do Alto Volta alguns choques diferentes: preços ascendentes do petróleo; crescimento da taxa de juros do Sistema de Reserva Federal dos EUA, no qual a dívida era indexada; os termos do comércio se deteriorando continuamente; e a desaceleração do comércio internacional graças a uma recessão global. A Revolução Sankarista foi neste contexto o ápice de uma série de revoltas, a quebra de um ciclo inepto, e o começo de uma sequência histórica que viria o Alto Volta se tornar em Burquina Fasso e, para lidar com sua situação crítica, “ousar inventar o futuro”.5

(2) Apresentar a Revolução Sankarista como apenas outro golpe, um dos muitos que tomaram lugar na África pós-colonial e frequentemente apoiado por estados imperialistas, é também ignorar o fio condutor dos eventos que constituíram a vida de Thomas Sankara como um oficial no Alto Volta antes da noite de 4 de agosto de 1983 e conferiram a ele ambos popularidade e legitimidade política. Três anos antes da Revolução, em 25 de novembro de 1980, um grupo de oficiais sênior do exército liderados pelo coronel Saye Zerbo instigaram um golpe e tomaram poder sob o pretexto de uma “erosão da autoridade do estado”6. Embora não fosse parte da trama, a Thomas Sankara que era conhecido pelo público por causa de suas ideias progressivas e por um feito com armas durante o conflito na fronteira com o Mali em 1974 foi oferecido uma posição no novo governo. Ele educadamente recusou inicialmente, mas por causa da insistência do presidente, ele foi compelido a aceitar sob a condição de que ele não ficaria no cargo por mais do que dois meses.

Ele foi nomeado para seu primeiro cargo político em setembro de 1981 como Ministro da Informação e levou um certo tempo para os habitantes de Uagadugu se acostumarem a ver um membro do governo indo trabalhar de bicicleta. O Ministério da Informação, que até então era na realidade um Ministério da Propaganda, mudou radicalmente em suas relações com a mídia quando Sankara tomou sua liderança. Ele encorajou jornalistas que não estavam acostumados com a liberdade, a escreverem notícias sobre os casos de corrupção. Artigos que documentavam casos de desvio em um banco público e que sugeriam a complacência de servidores públicos do Ministério do Comércio logo foram publicados. A polícia convocou o diretor da Agência Nacional de Notícias e o acusou de vazar essa informação para a mídia. Sankara, como Ministro da Informação, defendeu a mídia, reafirmou sua missão e sua liberdade de informar o público, protestando contra com Ministro do Interior.

Enquanto a popularidade do governo estava se despedaçando, os movimentos sindicais estavam sendo reprimidos e seus líderes sendo presos, Thomas Sankara renunciou de forma retumbante: ele mandou uma carta aberta ao Presidente Zerbo condenando o regime, que ele denominou ser burguês e acusou de servir os interesses da menor parte da população. Ele foi imediatamente tirado de seu posto bem como de sua patente e foi deportado a um campo militar remoto. Outro golpe ocorreu em 7 de novembro de 1982, sem a participação de Sankara e de seus camaradas de esquerda no exército que acreditavam que um movimento liderado apenas pelo exército não permitiria as profundas mudanças políticas as quais eles aspiravam.

Reconhecendo sua popularidade, uma assembleia extraordinária do CSP (Comité de Salut du Peuple, Comitê para a Salvação do Povo) presidida pelo capitão Jean Baptiste Ouedraogo, apontou o capitão Sankara como Primeiro-Ministro do Alto Volta em 10 de janeiro de 1983. Deste ponto em diante, quando Sankara começou suas funções diplomáticas com uma visita oficial a Tripoli e a presença na Conferência dos Não-Alinhados em Nova Déli onde ele se encontrou com Fidel Castro, a vizinha Costa do Marfim, com apoio da França, começou a se preocupar com a evolução política do Alto Volta. Entre março e maio em 1983, Sankara fez discursos contundentes para comícios massivos com mensagens e tons que não deixavam dúvida de suas tendências políticas.

Dois dias após o discurso de Sankara em Bobo-Dioulasso em 14 de maio de 1983, Guy Penne, o assessor de Mitterand para a África, chegou no Alto Volta para uma visita oficial. Cedo na manhã que se seguiu em 17 de maio, veículos blindados e armados cercaram a residência de Thomas Sankara, efetivamente o colocando em cárcere privado. Nos dias que se seguiram, grandes manifestações inflamaram em Uagadugu, onde o slogan “Liberte Sankara!” se ouvia. Manifestações populares, bem como uma fração do exército leal a Sankara, compeliram as autoridades a libertarem-no. Por dois meses, a situação política manteve-se sem solução, com cada um dos lados paranoico e consolidando suas posições. Sankara e a parcela de esquerda do exército fortaleceram os seus laços com as populações civis e com as organizações sindicais, e definiram uma plataforma política.

O capitão Blaise Compaoré, um amigo e camarada de longa data de Thomas Sankara, então levou um rumor de uma tentativa de assassinato de Sankara como um pretexto para mover com suas tropas até Uagadugu na tarde de 4 de agosto de 1983. Grupos civis apoiaram a operação cortando a eletricidade na capital. Às 21:30, as tropas de Compaoré tinham controle da capital. Às 22:00 Thomas Sankara anunciou por rádio a queda do governo de Ouedraogo e o início da um processo revolucionário, a formação do Conselho Nacional da Revolução, e defendeu a criação de comitês revolucionários em todas as localidades do país. Ele anunciou aquela noite no rádio que o propósito do governo dali em diante era ajudar o povo a atingir a sua “profunda aspiração por liberdade, independência verdadeira e progresso social e econômico”7. O Alto Volta, a invenção colonial, abriu caminho para Burquina Fasso, a Terra dos Homens Dignos.

A Revolução de quem?

Nenhum altar, nenhuma crença, nenhum livro sagrado, nem o Corão, nem a Bíblia e nem outros, jamais foram capazes de conciliar o rico e o pobre, o explorado e o explorador. E se o próprio Jesus teve de pegar o chicote para afugentá-los do seu templo, é porque de fato é a única linguagem que eles ouvem”8

O Marxismo tem ocupado um espaço proeminente no arsenal teórico de intelectuais e figuras políticas que lideram e lideraram lutas pela independência de África. Entretanto, poucos estão entre os intelectuais e chefes de estado que não sentiram a necessidade de expurgar do Marxismo uma dimensão que é essencial a ele: a luta de classes9. Pelo menos dois fatores parecem explicar essa rejeição da luta de classes como o motor da história.

Um deles é a posição de classe dos líderes da descolonização, recrutados ou da chefia – que foi ou estabelecida ou fundamentalmente transformada durante o colonialismo por uma poderosa tecnologia ou por governo indireto – ou, o que era mais comum, entre os intelectuais pequeno-burgueses. Embora esses dois grupos fossem significativamente diferente quando o assunto era cultura, eles eram aliados complementares e naturais no campo das políticas de classe já que ambos eram tanto produtos bem como engrenagens da máquina imperialista de dominação sobre as forças produtivas de suas sociedades. Enquanto intelectuais pequeno-burgueses usam as habilidades adquiridas para gerenciar o estado pós-colonial e negociar os termos da extroversão, enquanto os líderes tribais e autoridades religiosas organizam a participação das massas.10 A descolonização, para estes dois grupos, não quer dizer uma ruptura com o estado colonial e seus capitalistas, mas sim um potencial maior de negociação do lucro.

Um segundo conjunto de razões para a rejeição da luta de classes, e também do pensamento Marxista, é o resultado do desejo por uma independência cultural e epistemológica. Intelectuais de origem africana têm um longo histórico de se referirem aos efeitos psíquicos da negação da razão negra do pensamento pós-Iluminista. A especificidade histórico-cultural do Marxismo ao contexto da Europa do século XIX tem alienado muitos pensadores africanos que desejam por um pensamento sociológico e político autenticamente africano, que seria devedor inteiramente às mentes africanas e não pegaria nada das mentes europeias11. Isto, eu acho, tem a ver com o orgulho ferido e a tendência de idealizar as sociedades africanas anteriores e durante o comércio de escravizados do Atlântico. Em uma palestra dada em 1975 em Nova Iorque, Walter Rodney toma Kwame Nkrumah como uma figura paradigmática desta tendência de evitar a realidade da luta de classes, descrevendo que o primeiro presidente de Gana não era apenas um ideólogo burguês. Da década de 1950 até o fim de sua vida, Nkrumah – um sincero e devoto revolucionário, estadista e pensador – buscou desenvolver uma consciência emancipatória enquanto negava a importância de contradições de classe nas sociedades africanas. Tirado do poder pela pequena-burguesia ganesa aliada da CIA, cuja não-existência como uma classe ele estava ocupado teorizando, ele finalmente produziu uma reflexão que era ao mesmo tempo um exercício de autocrítica enquanto estava exilado na Guiné do companheiro anti-imperialista Sékou Touré.12

Com Thomas Sankara, que é de uma geração diferente da de Nkrumah e de Senghor, não há tal ambiguidade ou escapismo quando se trata de lidar com classe: os inimigos da luta anti-imperialista são a burguesia e seus aliados, do Norte e do Sul; seus aliados e maiores beneficiários, as massas trabalhadoras e, em um país como Burquina Fasso, o campesinato mais especificamente.

Quando questionado quanto à substância do seu programa econômico, Sankara respondeu que era para a Revolução usar os cérebros e os braços dos burkinabè, ou o povo de Burquina Fasso, para garantir duas refeições por dia e dez litros de água para todos. Pode-se suspeitar que este objetivo, uma vez sublime e modesto, não animava a burguesia. Mas a Revolução Burkinabè alcançaria este objetivo no curso de quatro anos, tudo enquanto era desmamado da assistência monetária da França, do Banco Mundial (Que cessou imediatamente após a Revolução de 1983), e diversos outros recursos de financiamento prometido a regimes liberais. A análise de classe sóbria de Sankara é, em minha opinião, um dos aspectos mais valiosos e únicos do seu legado para o presente africano. Foi sobre a base desta análise que ele foi capaz de formular e implementar políticas de redistribuição.

A Dívida como um Impedimento à Soberania

Quando Sankara tomou o poder quatro anos antes do seu discurso no encontro da Organização da Unidade Africana, a dívida estrangulava não apenas os países de África, mas também os da América Latina. Em 1985 de um orçamento de 58 bilhões de francos CFA, Burquina Fasso tinha que dedicar 12 bilhões de para abatimento de dívidas. O discurso de Thomas Sankara, bem como seu chamamento por uma frente unida contra o endividamento, está em conexão direta com uma campanha lançada por Fidel Castro em Havana em 1985. Esta campanha e seu discurso, que enfatizava a natureza odiosa da dívida, suas origens coloniais, seu efeito desastroso nas políticas públicas e sociais em particular, e a insolvência dos devedores não esgota, contudo, todo o descontentamento que Sankara nutria contra a instituição da dívida.

Thomas Sankara era crítico de ambas a dívida e da ajuda externa, que era parcialmente composta de empréstimos. Sobre o último, ele disse “Nós certamente encorajamos ajuda que nos ajude a acabar com ajuda externa. Mas no geral, a política de assistência e ajuda externa apenas nos desorganizou, nos escravizando, nos incapacitando em nossa esfera econômica, política e cultural”. Esta crítica à ajuda externa não era feita apenas no nível do discurso; ela era integrada nas decisões práticas. Em 1987, ele disse a um de seus biógrafos, Ernest Harsch, que ele sugeriu que os EUA substituíssem o programa de Corpos da Paz com apoio orçamentário. Quando os EUA se recusaram, Sankara prontamente suspendeu o programa. Sankara, embora fosse chefe de estado de um país muito pobre e isolado por suas opções ideológica, demonstrava uma rara fortitude de caráter e uma intransigência memorável na questão de soberania de seu país. Seu discurso na ONU em 1984 incluía esta forte afirmação: “Nós juramos, nós proclamamos, que de hoje em diante em Burquina Fasso, nada irá acontecer sem a participação dos Burkinabè. Nada que não for previamente decidido por nós e elaborado por nós. Não haverá mais um ataque contra a nossa decência e nossa dignidade”.

Esta preocupação com a autonomia, com a preservação da liberdade de pensamento e de ação da Revolução, tinha, como nós vimos, a consequência de cortar Burquina Fasso de diversas fontes de financiamento. Mas Sankara ansiava em agir, em resolver as dificuldades do seu povo, e para fazê-lo de forma rápida. E então decidiu, sem necessidade da determinação do FMI, em austeridade severa. Ele drasticamente cortou os custos de manter a administração, aboliu os bônus de servidores públicos e reduziu para o mínimo custo o estilo de vida de seu governo. O que era poupado destes cortes de verbas, era investido em educação, saúde e programas de agricultura em áreas rurais. Para se ter uma ideia do quão longe sua austeridade ia, nos lembremos que durante sua viagem à Nova Iorque para a ONU, sua delegação, que incluía ministros, foi alojada em colchões no chão da embaixada de Burquina Fasso. Jornadas oficiais e missões de oficiais de estado eram apenas feitas na classe econômica.

Falhas Culturais e Institucionais da Revolução

Esta austeridade, quase que uma política ascética, bem como a escala dos esforços requeridos dos Burkinabè, mas também um determinado autoritarismo, teve a consequência de desagradar ou fadigar até mesmo setores da população que eram um tanto quanto favoráveis à Revolução. Apesar de resultados inegáveis do ponto de vista da saúde, alimentação e educação, a Revolução em seus últimos anos alienou muitos Burkinabè, especialmente os mais privilegiados. Também deve-se notar que apesar de ser crítico ao parlamentarismo e o que ele chamava de democracia burguesa, Sankara falhou em criar uma alternativa institucional.

Ele também superestimou a capacidade dos seus compatriotas para o altruísmo e seu ardor revolucionário. A Revolução criou uma série de instituições que foram implementadas em todas as regiões do país com o objetivo de substituir as chefias feudais e canalizar a participação do povo no desenvolvimento do país mas também do sistema judiciário. Estes eram os CDR (Comités de Défense de la Révolution, Comitês de Defesa da Revolução) e os TPR (Tribunaux Populaires de la Révolution, Tribunais Populares da Revolução), que eram eleitoralmente constituídos. Eram pensados como canais de comunicação de duas vias entre o povo e a liderança revolucionária e como instituições de democracia direta, os CDR rapidamente viraram um veículo para as elites oportunistas. Por causa da falta de fiscalização e meios coercitivos da autoridade central, os CDR foram os culpados por numerosos abusos de poder e tendências reacionárias13. Também deve-se notar que os discursos, programas de rádio e televisão, jornais e a maior parte dos veículos de comunicação do regime dependiam do francês, uma língua que a maioria esmagadora do povo, aqueles cujos interesses a Revolução servia, não entendia. Vastos segmentos do campesinato, por causa de falhas culturais e institucionais, eram desconhecedores dos valores da Revolução, dos seus valores pela mudança e dos seus objetivos a longo-prazo.

Um espinho persistente contra o Imperialismo

Em 15 de outubro de 1987, enquanto Thomas Sankara estava liderando uma reunião de trabalho no Conseil de l’Entente (Conselho da Entente), tiros foram ouvidos do pátio. De acordo com o único sobrevivente daquela reunião, Alouna Touré, Sankara pediu aqueles que estavam presentes para ficarem na sala de reunião e disse para eles “É a mim que estão procurando”. Ele se dirigiu em direção à porta, levantando as mãos enquanto saía pela porta. Homens armados, comandados pelo capitão Gilbert Diendéré, um parente de Blaise Compaoré, atirou nele sem aviso. O processo revolucionário foi tragicamente encerrado. Compaoré, uma vez um companheiro e um aliado, tomou poder e prosseguiu a reinserir Burquina Fasso no domínio da França. O país estava mais uma vez em bons termos com o Banco Mundial e com o FMI, assim Blaise Compaoré o transformou em um pilar da Françafrique14.

Quando, em 2014, a juventude Burkinabè, reivindicando a memória de Sankara, forçou Compaoré a deixar o poder, a ele foi oferecida a direção de uma organização internacional pelo presidente francês Hollande e eventualmente ele foi para o exílio em Abidjan, Costa do Marfim. O sistema tribunal e o povo de Burquina Fasso estão hoje pedindo por sua extradição para que ele possa ser questionado na investigação da morte de Thomas Sankara, as circunstâncias das quais ainda não foram totalmente investigadas.

Thomas Sankara tinha 37 anos quando ele foi assassinado, e seus camaradas, o grupo de pessoas que liderou a revolução, estavam todos na faixa dos seus 30 anos. 30 anos se passaram, e progressistas no continente e fora dele ainda celebram sua memória todo dia 15 de outubro. Ele é uma das bússolas que dá direção, um dos gigantes, cujos ombros militantes podem subir para verem adiante e alcançar mais longe. Quando eu penso nas duras condições que a humanidade colocada a sofrer em um país como o Alto Volta na década de 1980, eu não consigo evitar de pensar no florescimento de Thomas Sankara, nutrido pelo seu povo de um espírito tão magnífico, como um testemunho extremamente eloquente do universal potencial humano e de sua capacidade de resiliência.

1 Enquanto frequentava a escola primária de Gaoua, Sankara e seus amigos babavam pela bicicleta do filho do diretor francês. Ele confessou em uma entrevista que ele deu em 1985 para um jornalista suíço de nome Jean Philipe-Rapp que ele e seus amigos costumavam ser prestativos com o filho do diretor para que ele emprestasse sua bicicleta eles mesmo que para dar uma breve volta, mas que o filho do diretor nunca permitiu. Sankara então decidiu pegar a bicicleta sem a permissão do dono, o que resultou em seu pai sendo mandado à cadeia.

2 Ernest Harsch, Thomas Sankara: An African Revolutionary (Athens, Ohio: Ohio University Press, 2014).

3 Um partido socialista e pan-africanista fundado em 1963.

4 Estes aliados eram ambos jovens membros do exército e de organizações da esquerda.

5 “Eu gostaria de deixar para trás a convicção de que, tendo tomado algumas precauções e tendo nos organizado em certo nível, nós veremos a vitória. […] Você não pode levar a cabo uma mudança fundamental sem um certo tanto de loucura. Neste caso, ela vem da não-conformidade, a coragem para dar as costas às fórmulas antigas, a coragem para inventar o futuro. Além disso, foram necessários os homens loucos de ontem para que nós pudéssemos agir com extrema clareza hoje. Eu quero ser um destes homens loucos. […] Nós devemos ousar inventar o futuro”. “Dare to invent the future: Interview with Jean-Philippe Rapp (1985)” In: Thomas Sankara Speaks: The Burkina Faso Revolution 1983–1987, 2nd ed., ed. Michael Prairie (New York: Pathfinder Press, 2007), 189–232, 228, 232.

6 Ernest Harsch, Thomas Sankara: An African Revolutionary (Athens, Ohio: Ohio University Press, 2014).

7 Thomas Sankara, “Déclaration du 4 aout 1983.” Em inglês ver “A radiant future for our country: Proclamation of August 4, 1983,”. In: Thomas Sankara Speaks, páginas 65–68.

8 Thomas Sankara, “Contra aqueles que nos exploram e nos oprimem – aqui e na França, em uma recepção oficial para o presidente francês François Mitterrand (17 de novembro, 1986)”. In: Thomas Sankara Speaks, págs. 325–34, 331–32.

9 Uma rejeição que se sustenta sobretudo em argumentos culturalistas e essencialistas e em uma tendência de criar uma imagem das sociedades africanas pré-coloniais como sociedades desprovidas de desigualdades e de relações de exploração. Neste ponto, uma referência crucial permanece em Frantz Fanon, “As desventuras da consciência nacional”. In: Os Condenados da Terra (Rio de Janeiro: Zahar, 2022), págs. 145-203.

10 Jean François Bayart, “L’Afrique dans le Monde: une histoire d’extraversion,” Critique Internationale 5, número. 1 (1999): 97–120.

11 Para o ápice dos esforços intelectuais africanos para ignorar a classe, pode-se olhar para os escritos de Léopold Sédar Senghor nos quais ele finge trabalhar em uma re-releitura de Marx de uma perspectiva pseudo “Valores Negro-Africanos“. Ver Léopold Sédar Senghor, Pour une relecture africaine de Marx et Engels (Abidjan: Nouvelles éditions Africaines, 1990).

12 Kwame Nkrumah, A Luta de Classes na África.

13 Benoit Beucher, “La Naissance de la communauté nationale Burkinabé, où comment le Voltaique devint un ‘homme intègre,’” Politique Africaine, número. 118 (2010), 165–86.

14 Um termo cunhado pelo primeiro presidente da Costa do Marfim, Houphouet Boigny, que usou para descrever de forma simpática a relação especial da França com países africanos, o significado atual e pejorativo da palavra é devido a François Xavier Verschave, um economista que a definiu como “uma nebulosa de atores militares, políticos e econômicos na França e na África, redes organizadas e lobbies, e polarizadas na captura de dois arrendamentos: matéria-prima e ajuda externa ao desenvolvimento público“. Ver: François-Xavier Verschave, La Françafrique, le plus long scandale de la République, (Paris: Stock, 1998).

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