Por Georgi Plekhanov, via Marxists.org, traduzido por Arthur H. R. Zullo
Este e os seguintes artigos, escritos por Plekhanov contra Conrad Schmidt, apresentam, juntamente com artigos contra Bernstein, suas mais brilhantes exposições contra o revisionismo do marxismo. Já em fevereiro de 1898, após os artigos revisionistas de Bernstein nos quais ele aludia a Conrad Schmidt como uma autoridade em filosofia aparecerem na imprensa, Plekhanov decidiu se manifestar contra Conrad Schmidt. O artigo foi escrito em francês no outono de 1898 e publicado no Neue Zeit, nº 5, 29 de outubro de 1898. O artigo de Plekhanov foi recebido com grande satisfação por todos os marxistas revolucionários. O artigo foi publicado em russo em 1906, na coleção de obras de Plekhanov intitulada ‘A Critique of Our Critics’. [Os ‘artigos seguintes’ são ‘Materialism or Kantianism’ e ‘Materialism Yet Again’ – MIA].
* * *
O leitor está ciente de que Eduard Bernstein está retornando a Kant ‘bis zu einem gewissen Grad’[1], e que este retorno, “até certo ponto”, foi devido à influência de Conrad Schmidt. Quais são os pontos de vista filosóficos deste último?
Ele os expôs: 1) em um artigo intitulado “Ein neues Buch über die materialistische Geschichtsauffassung[2]” e publicado no Berlin Akademiker, 1896 (julho e agosto), [1] e 2) em um artigo que trata de um livro de Kronenberg, Kant, sein Leben und seine Lehre[3]. Este último artigo foi publicado no terceiro suplemento do jornal berlinense Vorwärts, de 17 de outubro de 1897.
Proponho aqui tratar destes dois artigos.
Se acreditarmos que Conrad Schmidt, Marx e Engels declararam como desmentido o “idealismo teórico-cognitivo” em um momento em que ainda não havia sido refutado. O termo idealismo teórico-cognitivo deve ser tomado como significando o idealismo de Kant; isso é evidente por si mesmo, e Conrad Schmidt o disse categoricamente. ‘Não é a… metafísica dialético-evolucionista de Hegel mas a Crítica da Razão Pura de Kant que é representativa do idealismo’, diz ele.
Na realidade, Marx e Engels eram opositores da doutrina kantiana, e pela seguinte razão.
Em sua excelente obra Ludwig Feuerbach, Engels diz que a doutrina de Kant sobre a incognoscibilidade das coisas-em-si já foi rejeitada por Hegel, e seguindo este último, embora com menos profundidade, por Feuerbach. Ele prossegue dizendo:
A refutação mais reveladora disto assim como de todas as outras manias filosóficas é a prática, ou seja, a experimentação e a indústria. Se formos capazes de provar a corretude de nossa concepção de um processo natural por nós mesmos, fazendo-o sair de suas condições e servir nossos próprios propósitos na barganha, então há um fim para a incompreensível “coisa-em-si” kantiana. [2]
Criticando o agnosticismo na Introdução da tradução para o inglês de seu Socialism: Utopian and Scientific, Engels argumenta da mesma forma:
Novamente [ele diz], nosso agnóstico admite que todo nosso conhecimento se baseia nas informações que nos são transmitidas por nossos sentidos. Mas, ele acrescenta, como sabemos que nossos sentidos nos dão representações corretas dos objetos que percebemos através deles? E ele continua a nos informar que, sempre que ele fala de objetos ou de suas qualidades, ele não está se referindo na realidade a esses objetos e qualidades, dos quais ele não pode ter certeza de nada, mas meramente às impressões que eles produziram em seus sentidos. Ora, esta linha de raciocínio parece sem dúvida difícil de ser superada por mera argumentação. Mas antes de haver argumentação, havia ação. ‘Im Anfang war die Tat’[4]. E a ação humana havia resolvido a dificuldade muito antes que a engenhosidade humana a inventasse. A prova do pudim está no comer. A partir do momento em que nos voltamos para nosso próprio uso desses objetos, de acordo com as qualidades que percebemos neles, colocamos à prova infalível a corretude ou não de nossas percepções sensoriais. Se estas percepções estiverem erradas, então nossa ideia do uso que pode ser atribuído a um objeto também deve estar errada, e nossa tentativa falhará. Mas se conseguirmos atingir nosso objetivo, se descobrirmos que o objeto combina com nossa ideia sobre ele e responde ao propósito ao qual o destinamos, então isso é uma prova positiva de que nossas percepções sobre ele e sobre suas qualidades, até agora, concordam com a realidade fora de nós mesmos. [3]
Assim, ‘a prova do pudim está no comer’. Este é o principal argumento dirigido por Engels contra a doutrina de Kant, e contra o agnosticismo em geral.
Em essência, Marx seguiu a mesma linha de argumentação quando, em 1845, escreveu na segunda tese sobre Feuerbach:
A questão se a verdade objetiva (gegenständliche) pode ser atribuída ao pensamento humano não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. Na prática, o homem deve provar a verdade, ou seja, a realidade e o poder, a mundanidade (Diesseitigkeit) de seu pensamento. [4]
Herr Conrad Schmidt, no entanto, considera esta linha de argumentação muito fraca:
É o mesmo [ele escreve] que se disséssemos que o fato de encontrarmos nexo e conformidade com a lei na Natureza externa e, graças a isso, podemos exercer uma influência proposital sobre a Natureza – este fato provaria com a máxima clareza que nosso conhecimento da Natureza é uma percepção do que existe na realidade; não há absolutamente nenhuma necessidade de analisarmos cientificamente e rejeitarmos as dúvidas levantadas sobre este ponto pelo idealismo; podemos simplesmente descartá-las como sofismas ocos.
Em outro lugar, ele se expressa da seguinte forma:
Nem Feuerbach nem Marx e Engels, que experimentaram sua influência, entraram em um exame da questão fundamental, e não “pegaram o touro pelo chifre”
O Dr. Conrad Schmidt poderia dizer isso pela única razão de que ele mesmo não entendeu onde está a questão fundamental do idealismo kantiano, ou seja, pela única razão de que ele mesmo não foi capaz de pegar o touro pelos chifres.
Vou tentar explicar-lhe o assunto nos termos mais simples.
O que é um fenômeno? É uma condição da nossa consciência evocada pelo efeito das coisas-em-si sobre nós. É o que Kant diz. A partir desta definição, antecipar dado fenômeno significa antecipar o efeito que uma coisa-em-si terá em nossa consciência. É possível que agora se pergunte se podemos antecipar certos fenômenos. A resposta é: é claro, nós podemos. Isso é garantido por nossa ciência e nossa tecnologia. Isto, contudo, só pode significar que podemos antecipar algum efeito que as coisas-em-si podem gerar em nós. Se podemos antecipar algum efeito das coisas citadas, isso então significa que estamos cientes de (pelo menos) algumas de suas propriedades. Logo, se estamos cientes de algumas de suas propriedades não temos o direito de chamá-las de incognoscíveis. Este ‘sofisma’ de Kant cai por terra, despedaçado pela lógica de sua própria doutrina. Era isso que Engels queria dizer com seu ‘pudim’.
Sua prova é tão clara e irrefutável quanto a de um teorema matemático. A posição teórica de Marx e Engels é inexpugnável [5], mas o Dr. Schmidt nem sequer tenta desmenti-la, limitando-se à observação de que assumir tal posição significa, não refutar o idealismo, mas fugir de qualquer consideração sobre o assunto. Deixo ao leitor a tarefa de julgar quem está ‘fugindo’ de qualquer consideração sobre o assunto: Marx e Engels, ou Herr Conrad Schmidt.
Talvez me perguntem exatamente onde Kant disse que um fenômeno é um produto do efeito das coisas-em-si sobre nós. A resposta é fornecida pela seguinte passagem de Prolegomena:
O idealismo consiste na afirmação de que não existem outros seres senão aqueles que pensam; de acordo com isso, as outras coisas que pensamos perceber seriam meramente representações em seres pensantes, representações às quais nenhum objeto fora desses seres corresponderia. Pelo contrário, eu afirmo que as coisas nos são dadas como objetos externos de nossos sentidos; entretanto, não sabemos nada do que essas coisas podem ser em si mesmas; estamos conscientes apenas dos fenômenos, ou seja, das representações que elas evocam em nós ao afetar nossos sentidos. Consequentemente, reconheço, em qualquer caso, que existem fora de nós corpos, isto é, coisas que são totalmente desconhecidas para nós por si mesmas, mas que conhecemos a partir das representações evocadas em nós por seu efeito sobre nossos sentidos, e que denotamos pela palavra ‘corpo’, palavra que consequentemente se refere apenas à aparência daquele objeto que é desconhecido para nós, mas que ainda existe de fato. Pode isto ser chamado de idealismo? É seu direto oposto. [6]
Não pode haver dúvidas a respeito do que Kant disse aqui; enquanto continuar impossível, as objeções também permanecerão irrefutáveis, as quais foram levantadas por Marx e Engels à suposta incognoscibilidade das coisas-em-si. Conhecer estas coisas através das representações que elas evocam em nós significa conhecê-las. Os materialistas ‘dogmáticos’ nunca afirmaram que existe qualquer outro meio de conhecer as coisas-em-si senão seu efeito sobre nossos sentidos. Mostramos isso suficientemente em nosso artigo “Bernstein and Materialism”. [7] Seria inútil repetir as passagens citadas no artigo, mas outras duas breves declarações de dois materialistas bem conhecidos poderiam ser citadas aqui. ‘Qualquer que seja o efeito sobre nós de um determinado corpo’, diz Holbach, ‘só o conhecemos graças às mudanças que ele traz em nós’.
No Abrégé des Systèmes de La Mettrie, encontramos algumas observações interessantes no sentido de que podemos conhecer apenas algumas propriedades ‘absolutamente relativas’ das coisas “externas”; a maioria de nossas sensações e representações são tão dependentes de nossos órgãos que elas mudam imediatamente, após mudanças ocorridas nestes.
Deve-se lembrar que ‘conhecer’ não tem nenhum outro significado em geral. Reconhecer uma determinada coisa significa reconhecer suas propriedades. O que se entende por uma propriedade de uma coisa? Significa a forma pela qual ela nos afeta direta ou indiretamente. [8]
Dizer que as coisas-em-si são incognoscíveis para nós e que só conhecemos as impressões que elas produzem em nós significa dizer que se ignorarmos o efeito que as coisas-em-si têm sobre nós, seremos incapazes de ver como elas podem nos afetar. Se os materialistas do século XVIII disseram que só conhecemos o exterior, a ‘casca’ das coisas, eles estavam dizendo, em essência, exatamente o que expressei na frase anterior. Mas essa é uma ideia errônea, e os materialistas que a expressaram estavam de fato, embora involuntariamente, traindo sua própria teoria do conhecimento. Goethe colocou isso muito melhor quando disse:
Nichts ist innen, Nichts ist draussen, Denn was innen, das ist aussen! [9]
Esta é uma visão verdadeiramente materialista do assunto do qual estamos tratando.
Além disso: Kant admite que as coisas em-si nos afetam. Afetar um objeto significa ter uma certa relação com esse objeto. Consequentemente, se sabemos – ao menos em parte – como as coisas nos afetam, então também sabemos – ao menos em parte – as relações existentes entre nós e eles. Mas se sabemos o que são essas relações, então também estamos cientes – isto através da agência de nossas percepções – das relações existentes entre as coisas-em-si como tais. Isto, é claro, não é conhecimento ‘imediato’, mas ainda assim é conhecimento e se o possuímos, não temos o mínimo direito de afirmar que as relações existentes entre as coisas-em-si estão além do alcance de nosso conhecimento.
As coisas-em-si afetam nossos sentidos externos e evocam certas sensações em nós: isso é o que Kant diz. Mas isso significa que as coisas provocam sensações em nós. Mas o mesmo Kant diz que a categoria da causalidade, como todas as outras categorias, não pode ser aplicada às coisas-em-si. Nisso, ele está evidentemente se contradizendo.
Ele se contradiz de maneira igualmente categórica na questão do tempo.
As coisas-em-si podem nos afetar evidentemente apenas em termos de tempo, mas Kant considera o tempo como apenas uma forma subjetiva de nossa contemplação.
A doutrina de Kant também contém outras contradições, as quais não trataremos aqui. O que dissemos acima é prova suficiente de que esta doutrina permanecerá contraditória enquanto continuarmos a sustentar, em plena conformidade com o que o próprio Kant diz em seu Prolegomena, que as coisas-em-si são a causa de nossas sensações.
Alguns adeptos do kantianismo notaram esta contradição, e tentaram removê-la. Assim, por exemplo, o Dr. Lasswitz diz o seguinte em seu livro Die Lehre Kants von der Idealität des Raumes und der Zeit [5](BERLIM, 1883):
É bem verdade que nem o tempo nem a causalidade existem para as coisas-em-si; isto foi demonstrado por Kant. Mas quem afirmou que as coisas-em-si são a causa de nossas sensações? [Vimos que o próprio Kant afirmou isto – GP] Esta interpretação errônea da doutrina de Kant é muitas vezes encontrada até mesmo com os filósofos. É constantemente reiterado que as coisas-em-si, ao afetarem nossa consciência, causam sensações em nós, mas é claro que um númeno, como o oposto do que realmente existe, simplesmente não pode produzir qualquer efeito. As coisas-em-si podem ser qualquer coisa no mundo – isso é uma questão de suprema indiferença à nossa experiência. A experiência surge através da interação entre razão e sensibilidade, enquanto uma coisa-em-si é sempre nada mais que um vago reflexo, em nosso entendimento, sobre seus próprios limites; essa coisa exerce tão pouca influência sobre a natureza de nossa experiência quanto meu reflexo em um espelho afeta os movimentos do meu corpo.
Para salvar o kantianismo, Herr Lasswitz entra em flagrante contradição com o próprio Kant ao declarar inexistente e impossível uma declaração inequívoca deste último. Um artifício estranho! Como Herr Lasswitz poderia ter recorrido a ele?
Ele só podia fazer isso porque, embora contradizendo Kant, ele era ao mesmo tempo capaz de se basear neste último.
Já dissemos que Kant contradiz a si mesmo com bastante frequência. Aqui, por exemplo, é o que lemos em sua Crítica da Razão Pura:
Compreender adequadamente limita… a sensibilidade, sem ao mesmo tempo ampliar seu próprio campo. Embora, além disso, proíba a sensibilidade de aplicar suas formas e modos às coisas-em-si e a restrinja à esfera dos fenômenos, ela cogita um objeto em si mesma, apenas, porém, como um objeto transcendental, que é a causa de um fenômeno (consequentemente, não é ela mesma um fenômeno), e que não pode ser pensado nem como uma quantidade nem como realidade, nem como substância (porque estas noções sempre requerem formas sensoriais para determinar um objeto) – um objeto, portanto, do qual somos bastante incapazes de dizer se ele pode ser encontrado em nós mesmos ou fora de nós. .. Se quisermos chamar este objeto de númeno, porque a representação dele é não-sensorial, temos a liberdade de fazê-lo. Mas como não podemos aplicar a ele nenhuma das concepções de nosso entendimento, a representação é bastante nula para nós, e está disponível apenas para a indicação dos limites de nossa intuição sensorial. [10]
Um objeto transcendental é a causa dos fenômenos, mas não podemos aplicar a ele nenhuma de nossas noções de compreensão, ou seja, a categoria de causalidade também é inaplicável a ele. Aqui temos uma contradição óbvia, mas por enquanto não entraremos nessa contradição. O que é inquestionável é que aqui Kant diz algo quase completamente oposto ao que ele disse no longo trecho do Prolegomena citado acima. O que isso significa? É possível que, em seu Prolegomena, Kant tenha uma visão diferente do que em sua Crítica da Razão Pura?
A resposta é sim e não. O ponto de vista da Crítica da Razão Pura de Kant nem sempre foi o mesmo. Em sua primeira edição, Kant tendeu a ver a coisa-em-si como uma noção última, à qual nada fora de nossa consciência corresponde, ou – para colocar de forma mais precisa – Kant era muito cético quanto à existência de coisas fora de nossa consciência. Seu ponto de vista era de um idealismo cético.
Criticado quanto a isso por seus adversários, ele respondeu escrevendo a passagem acima citada em seu Prolegomena, e tentou revisar a segunda edição de sua Crítica no sentido ‘realista’. Isto será suficientemente confirmado por uma referência à sua Introdução a essa edição e à sua ‘refutação do idealismo’. No entanto, esta revisão não foi um grande sucesso; o ponto de vista contido na primeira edição é discernível em muitas passagens da segunda edição, e até mesmo a refutação do idealismo poderia ser interpretada num sentido oposto ao que ele disse no Prolegomena. Foi devido a esta circunstância que o Dr. Lasswitz pôde contradizer Kant apelando para o próprio Kant.
Isso é indiscutível. O que também está fora de dúvida é que, apesar de suas inúmeras contradições, Kant, após a publicação de seu Prolegomena, isto é, a partir de 1783, se rebelou contra a interpretação idealista de sua doutrina. Pediremos ao leitor que tenha este fato em mente, tendo em vista sua grande importância.
Vejamos agora os resultados finais aos quais chegou o Dr. Lasswitz em sua exposição da filosofia kantiana:
Todo ser [ele diz] está agrupado em dois tipos de ser – o subjetivo e o objetivo. Os dois são encontrados em nossa consciência e ambos possuem um grau igual de realidade e autenticidade. Não há nenhum ser que exista fora da consciência, mas há um ser que não é o nosso Eu, a saber, as coisas fora de nós mesmos. Tais coisas estão sempre dispostas em nossa consciência em uma certa ordem, e é exatamente isso que nos dá uma consciência do Eu contra o mundo dos objetos externos. [11]
Para que o leitor tenha uma melhor compreensão deste ponto de vista do Dr. Lasswitz, pediremos a ele que considere também as seguintes linhas:
Consequentemente, o ser, real e verdadeiro, tem um caráter espiritual; não há outro ser… Qualquer ser – o ser do Eu e do não-Eu – é uma modificação definitiva da consciência; sem consciência não há ser…
O leitor, é claro, pode pensar que ainda estamos citando Lasswitz. Ele está equivocado. Os dois últimos trechos vêm de Fichte. [12] Para salvar o kantianismo, ou seja, para eliminar sua contradição interna, o Dr. Lasswitz foi obrigado a abandonar o ponto de vista vacilante de Kant e passar ao ponto de vista do idealismo subjetivo. Seu neokantianismo é meramente um neofichteanismo mais ou menos consciente.
Consequentemente, o Dr. Lasswitz não poderia dizer, juntamente com o Dr. Conrad Schmidt, que a Crítica da Razão Pura de Kant é representativa do idealismo. Ele teria que reconhecer que o idealismo é melhor representado no Wissenschaftslehre de Fichte (a teoria da ciência). Estou falando convencionalmente: ele teria que fazê-lo, pois duvido que tivesse coragem para tanto; como é de conhecimento geral, Kant protestou contra sua doutrina ser interpretada no sentido de teoria da ciência. [13] Portanto, ele também teria protestado contra o trabalho do Dr. Lasswitz, citado acima.
Em uma carta para Reinhold, Fichte chamou Kant de ‘ein Dreiviertelskopf’ (três quartos de uma mente), dizendo que o Espírito Santo em Kant estava mais próximo da verdade do que a personalidade de Kant. Por sua vez, os neokantianos como Lasswitz podem conceder a Kant o mesmo tipo de característica, e seriam obrigados a fazê-lo se fossem coerentes. Independentemente do que digam, eles nunca serão capazes de esconder daqueles com alguma compreensão do assunto que abandonaram a doutrina de Kant e se inclinaram para o idealismo subjetivo.
É claro que também existem neokantianos que, como o professor Riehl, não aprovam de forma alguma essa transição. Os neokantianos destes últimos são mais fiéis a seu professor do que o Dr. Lasswitz, mas então são mais fiéis em preservar todas as inconsistências de seu professor.
Incidit in Scyllam qui vult vitare Charybdim![15]
Qual edição da Crítica da Razão Pura deveria ser considerada uma verdadeira expressão do idealismo? Herr Conrad Schmidt não nos disse uma palavra sobre este ponto. Ele não parece sequer suspeitar que o ponto de vista da ‘crítica’ na primeira edição seja diferente do ponto de vista da segunda. Além disso, ele nem parece ter uma compreensão da primeira edição nem da segunda. Isto será percebido por qualquer pessoa que se dê ao trabalho de se familiarizar com a prosa filosófica do estimado doutor. Por exemplo, ele escreve o seguinte:
A teoria do conhecimento com base na qual Kant expõe os erros de qualquer filosofia que metafisicamente se esforça, com a ajuda de noções puras, para transcender os limites da própria experiência traz o selo do fenomenalismo completo, ou seja, considera como mero fenômeno o mundo que vemos e que serve de objeto à nossa experiência.
Kant teria ficado muito surpreso se tivesse lido estas linhas escritas por um homem buscando defendê-lo contra Marx e Engels.
O que é experiência? Essa é uma pergunta que Kant tinha que responder, como qualquer pessoa que tentasse resolver o problema fundamental da filosofia, o de determinar a relação de sujeito a objeto, de pensar a ser. A teoria do conhecimento de Kant nada mais é do que uma resposta a essa pergunta. Em resposta a ela, ele explicou, aliás, a diferença existente, em sua opinião, entre númeno e fenômeno, entre uma coisa-em-si e um fenômeno. Pode-se não estar de acordo com Kant – e nós não estamos – mas é completamente impossível considerá-lo um pensador trivial e superficial, como parece fazer Conrad Schmidt. Se Kant tivesse simplesmente declarado que nós vemos fenômenos e que nossa experiência diz respeito a fenômenos, isso teria significado que sua filosofia fora construída sobre a absurda petitio principii, partindo do pressuposto de que a própria questão que aguarda solução já foi resolvida:
Aqui naturalmente surge a questão [nosso doutor continua] se, em geral, podemos ter conhecimento imediato do mundo externo que povoamos, de certa forma, com as impressões de nossos sentidos, e que se torna compreensível para nós com a ajuda da categoria de causa e efeito; não é mesmo a representação mais geral de um mundo corpóreo que está se movendo no tempo e no espaço, de natureza subjetiva?
Na filosofia de Kant, as palavras ‘mundo externo‘ significam todos os fenômenos pertencentes à nossa ‘experiência externa‘, ou, como diria Fichte, ao nosso nicht-Ich[6]. Mesmo um conhecimento mais superficial desta filosofia será suficiente para nos fazer compreender que nosso conhecimento deste grupo de fenômenos é tão imediato quanto nosso conhecimento dos fenômenos que pertencem ao nosso Eu. Nenhuma ‘questão’ poderia ter ‘surgido’ nesta direção. Da mesma forma, Kant não poderia ter se perguntado se nossa representação do mundo externo era de natureza subjetiva. É evidente que tal representação não poderia ser de outra natureza. Questionar isso significa não ter uma ‘representação’ do assunto que está sendo discutido. Mas as palavras ‘mundo externo’ também poderiam se referir às coisas-em-si, que são a base do mundo dos fenômenos. Kant nunca questionou se era possível ter um conhecimento imediato destas coisas. Para ele, o conhecimento imediato era aquele que não depende do efeito das coisas sobre nós, e ele estava muito bem ciente da impossibilidade de tal conhecimento. ‘Pois a sensação só é possível dentro de si mesmo, não sem si mesmo’, diz ele na segunda edição de sua Crítica da Razão Pura. [16] Mas Kant tinha o direito de se perguntar – e o fez – se podemos ter certeza da existência de coisas fora de nossa consciência. O leitor já sabe como ele respondeu a esta pergunta em diferentes períodos de sua vida. Vejamos agora o que o Doutor Schmidt tem a nos dizer sobre isso:
Como aqui, também, parecia a Kant que havia motivos convincentes para dúvidas, ele não se encolheu em relação a essa etapa final. Para ele, espaço e tempo, matéria e os conceitos com a ajuda dos quais deciframos o mundo existiam apenas na representação e no pensamento humano; ele considerava o incognoscível, a coisa-em-si, como a fonte primária de onde aquela sensação fluía. O fundamento mais subjacente de tudo o que existe é algo além da compreensão humana; tudo o que acontece é um milagre constante, porque provém do que está além da compreensão. A falta de fundamento [die Bodenlosigkeit] deste pensamento forneceu a Fichte, Schelling e Hegel as premissas iniciais para um novo tipo de metafísica, que era muito mais profunda e rica em pensamento, mas ainda mais frágil e ainda mais carente em substância.
Este longo ataque se resume a Kant ter negado a existência de coisas-em-si fora de nossa consciência. Não há necessidade de expormos a ‘falta de fundamento’ de uma afirmação tão categórica: ela contradiz um fato concluído no tempo e no espaço.
O Dr. Schmidt está firmemente convencido de que as coisas não existem apenas em nossa consciência. Deste ângulo, ele repreende Kant (o Kant que existe em sua ‘consciência’) de forma bastante severa: ‘Um intelecto que começa a duvidar até mesmo da existência objetiva do próprio mundo material, uma existência bastante independente da consciência humana, perde terreno firme para se sustentar’.
Neste ponto, nos vemos constrangidos a sair em defesa do Sábio de Konigsberg. [17]
Já sabemos que quando seu Prolegomena foi publicado (em 1783), Kant tinha francamente reconhecido a existência de coisas-em-si, independentemente de nossa consciência. Isto, entretanto, não o impediu e não pôde impedi-lo de considerar o mundo material como um dos fenômenos. ‘É somente na mente empírica’, diz ele, ‘isto é, somente em conexão com a experiência, que a matéria é realmente dada aos nossos sentidos externos… como substância em um fenômeno’. Atribuir a tal matéria, e portanto ao mundo material por ela criado, uma existência independente de nossa consciência significaria, do ponto de vista de Kant, cometer um erro imperdoável em um pensador.
De qualquer maneira, nosso Doutor se recusa a examinar o ponto de vista de Fichte, e é por isso que o convidamos a nos dizer como ele resolve as contradições da filosofia kantiana, aquelas indicadas acima e óbvias até mesmo para uma certa parte dos neokantianos. Foram precisamente nestas contradições que Marx e Engels se basearam em suas críticas à filosofia de Kant.
O Doutor Schmidt reconhece a existência dessas contradições? O que exigimos é uma resposta franca: sim ou não. Conrad Schmidt parece admitir que elas existem, mas, em vez de levá-las em consideração e tentar resolvê-las, ele prefere nos regalar com um pedaço de ‘escrita’ redigido nos seguintes termos:
Mas o abismo sem fundo revelado – corretamente ou não – ao se… pensar pela filosofia kantiana é apenas seu resultado negativo; seu aspecto genuinamente fecundo consiste na pesquisa magistral sobre o funcionamento agregado de nossa organização alma-espiritual [seelischgeistigen Organisation], através da qual o mundo dos fenômenos nasce… Mas nisto, na revelação de nossa representação-faculdade, está a verdadeira tarefa perseguida pela Crítica da Razão Pura, uma tarefa que ninguém, nem antes nem depois de Kant, empreendeu com uma visão tão surpreendente. Pouco como a análise de Kant pode afirmar ter proporcionado uma solução satisfatória, livre de contradições e final do problema – provavelmente o mais difícil objetivo que qualquer pesquisa científica pode estabelecer a si mesma – é óbvio, no entanto, que nenhuma tentativa de penetrar mais profundamente nas misteriosas profundezas do mundo interior pode ignorar aquilo que foi feito por Kant… Um retorno a Kant de forma alguma significa, portanto, um movimento inverso num sentido retrógrado. [18]
Com a ajuda de ‘escritos’ nesta linha, pode-se, é claro, evitar uma consideração das objeções levantadas à filosofia de Kant, mas tais objeções não podem ser refutadas.
Em sua Crítica da Razão Pura, Kant se propôs a tarefa de estudar nossa faculdade de cognição, não nossa representação-faculdade, como afirma o Doutor Schmidt. Por que distorcer o que deve ser exposto com a máxima precisão possível? Mas isso se diz somente de passagem.
Kant toma como seu ponto de partida a consciência como algo já pronto; não é em seu devir que ele considera essa consciência. Aí reside a maior falha em sua ‘análise da consciência’, e é surpreendente que Herr Conrad Schmidt não a tenha percebido atualmente, quando a teoria da evolução é triunfante em todos os ramos da ciência. [19]
Herr Conrad Schmidt está firmemente convencido de que o mundo ‘material’ existe, não apenas dentro de nossa consciência, mas também sem ela. O que gostaríamos de ouvir dele é se ele pensa que este mundo material, que existe fora de sua consciência, atua sobre sua faculdade cognitiva. Se a resposta for não, ele estará assumindo assim a posição do idealismo subjetivo, e seremos incapazes de entender o que é que o convence da existência de um mundo material independentemente de sua consciência. Se a resposta for sim, ele será obrigado a reconhecer, junto com Marx e Engels, que o ‘Incognoscível’ de Kant está cheio de contradições. A lógica também impõe obrigações, e muito mais do que a nobreza o faz.
O estimado doutor continua:
O materialista que se agarra ao mundo corporal objetivo, ou seja, um mundo que existe de si mesmo, independentemente de suas relações com a mente humana, como base e fonte do processo de vida é tão pouco isento de um estudo de nossa organização espiritual quanto é o idealista.
O materialista defende firmemente a opinião de que o mundo material tem uma existência objetiva. O mesmo faz Herr Conrad Schmidt. Ele está convencido de que ‘um intelecto que começa a duvidar até mesmo da existência objetiva do próprio mundo material, uma existência bastante independente da consciência humana, perde terreno firme para se sustentar’ (ver acima). Qual é, então, a diferença entre a visão do ‘materialista’, por um lado, e do Doutor Conrad Schmidt, por outro? Eu não vejo nenhuma.
Mas o leitor vai me perdoar: há uma diferença! As conclusões do ‘materialista’ estão de acordo com suas premissas, enquanto o Doutor Conrad Schmidt prefere o ‘caldo de ecletismo do pobre’. [20] Isso, como vemos, é uma grande e muito séria diferença. A quem você dá preferência, caro leitor: ao ‘materialista’, ou ao Doutor Conrad Schmidt? De fato, de gustibus non est disputandum. [21]
O “materialista” não está isento de um estudo de nossa organização espiritual. É claro que não! Mas para estudar essa organização, o ‘materialista’ se dirige à psicologia experimental, que trata apenas de fenômenos e faz uso de métodos emprestados da biologia. Esse é o caminho mais confiável.
Mas isso já não é materialismo, exclama nosso erudito doutor:
Quem vê a principal distinção entre materialismo e idealismo em um reconhecimento dos padrões governados pela lei em todos os lugares a serem vistos no mundo dos fenômenos está obscurecendo a natureza específica da controvérsia entre materialismo e idealismo, despojando assim o conceito de materialismo de sua definição específica. O próprio Engels pode servir como um exemplo característico.
Mas como? O que Engels realmente disse sobre a distinção entre materialismo e idealismo?
Herr Conrad Schmidt cita a seguinte passagem do livro Ludwig Feuerbach:
A separação da filosofia Hegeliana foi aqui [com Marx – GP] também o resultado de um retorno ao ponto de vista materialista. Isso significa que foi resolvido para compreender o mundo real – natureza e história – assim como se apresenta a todos que se aproximam dele, livre de preconceitos idealistas. Foi decidido sacrificar impiedosamente todos os preconceitos idealistas que não puderam ser postos em harmonia com os fatos concebidos em si mesmos e não em uma interconexão fantástica. E o materialismo nada mais é do que isso. [22]
Esta passagem obviamente não contém uma definição completa do materialismo. Mas por que Herr Conrad Schmidt citou esta passagem, e nenhuma outra? Por que ele esqueceu o seguinte argumento usado por Engels?
A questão da posição de pensar em relação ao ser, uma questão que, por sinal, tinha desempenhado um grande papel também no escolasticismo da Idade Média, a questão: qual é primária, espírito ou natureza – essa questão… em relação à Igreja foi se tornou esta: Deus criou o mundo ou o mundo existe eternamente?
As respostas que os filósofos deram a esta pergunta os dividiram em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a primazia do espírito para a natureza… compreendiam o campo do idealismo. Os outros, que consideravam a natureza como primária, pertencem às várias escolas do materialismo. [23]
Segundo Engels, o materialismo é, consequentemente, uma doutrina que considera a Natureza como algo primário em relação ao espírito. Esta definição é correta?
Recordemos os materialistas franceses do século XVIII. Em que consistia a proposição fundamental de suas teorias?
Atribuir os efeitos que testemunhamos à Natureza, à matéria em suas diferentes combinações, aos movimentos inerentes a ela significa dar a esses efeitos uma causa geral e familiar; desejar ir além significa perder-se em espaços imaginários onde nunca encontraremos nada além de uma infinidade de incertezas e obscuridades. Portanto, não procuremos um princípio motivador fora de uma Natureza cuja essência sempre foi existir e se mover… [diz o autor do Système de la Nature]. Que necessidade há de se buscar fora da matéria uma força motriz que a ponha em jogo? [24]
Você, instruído doutor, gostaria que eu lhe fornecesse outro trecho? Terei o maior prazer em fazê-lo e trazer-lhe à atenção outras duas passagens mais convincentes:
Só pode haver causas e efeitos naturais na Natureza. Todos os movimentos que ocorrem nela seguem leis constantes e necessárias; as operações naturais que estamos em condições de julgar são suficientes para nos permitir descobrir aquelas que estão ocultas de nosso olhar; podemos ao menos julgá-las por analogia; e se estudarmos a Natureza com atenção, os modos de ação que ela nos mostra nos ensinam a não nos desconcertar por aqueles que ela se recusa a exibir para nós. As causas mais distantes de seus efeitos, indubitavelmente operam através de causas intermediárias… Se, na cadeia de tais causas, aparecerem alguns obstáculos que dificultem nossas pesquisas, devemos nos esforçar para superá-los; e se não formos capazes de ter sucesso nisso, jamais teremos o direito de concluir que a cadeia foi quebrada ou que a causa é sobrenatural. Nesse caso, contentemo-nos em admitir que a Natureza possui recursos que desconhecemos, mas nunca substituamos fantasmas, ficções [fabricações como teria dito Engels – GP]… por causas que nos escapam; assim, só iríamos confirmar nossa ignorância, parar nossas pesquisas e persistir em estagnar em nossos erros. [25]
E mais:
Digamos que a Natureza contém tudo o que podemos saber… Digamos que a Natureza faz tudo e que o que ela não faz é impossível, que fora da Natureza nada existe ou pode existir… Se não podemos descobrir as causas primárias, vamos nos contentar [marque isto, Doutor, marque isto!] com as causas secundárias e os efeitos que a experiência nos mostra; devemos observar os fatos disponíveis e conhecidos por nós; eles são suficientes para nos permitir julgar o que não sabemos; devemos nos contentar com os leves vislumbres da verdade que nos chega através de nossos sentidos externos [o que significa, Herr Schmidt, que nunca devemos abandonar a plataforma da experiência – GP]. [26]
Todo o Système de la Nature nada mais é que um desenvolvimento deste pensamento, que está subjacente a toda a doutrina materialista do autor, ou melhor, dos autores, desta célebre obra.
Nosso erudito doutor obterá grande benefício em ouvir o que outro materialista francês tinha a dizer:
O homem é uma criação da Natureza; ele vive na Natureza; ele está subordinado às suas leis; ele não pode deixá-las; ele não pode nem em pensamento emergir de seus confins… Para uma criatura produzida pela Natureza nada existe além dos limites desse grande todo, do qual ele faz parte… Aquelas criaturas que se diz estarem acima da Natureza não são mais que quimeras, e não podemos ter nenhuma ideia sobre elas. [27]
Desde que o homem, para sua desgraça, desejou sair de dentro dos confins de seu âmbito, ele fez uma tentativa de elevar-se acima do mundo visível [o mundo dos fenômenos, Herr Doktor – GP]. Ele tem negligenciado a experiência para se engajar em conjecturas. [28]
O que você acha de tudo isso, Herr Conrad Schmidt? Vemos que nosso antigo professor Engels estava certo. Vemos que o materialismo é de fato uma doutrina que deseja explicar a Natureza através de suas próprias forças, e que olha a Natureza como algo primário em relação ao ‘Espírito’. Por último, parece-nos que a definição de materialismo de Engels pode ser reconhecida como a mais geral e satisfatória.
Digo: a mais geral, mas sei que também há exceções à regra geral. Assim, por exemplo, os materialistas ingleses sustentavam que existem criaturas que estão acima da Natureza. Basta mencionar Joseph Priestley, cuja doutrina é embelezada por uma multidão de pingentes absolutamente não-materialistas. Mas todos estes são meros pingentes, e como os materialistas ingleses atribuem grande importância a tais pingentes, eles deixaram de ser materialistas. Seu materialismo, como tal, está limitado a um exame da questão da relação da alma com o corpo. Nesta questão, no entanto, suas opiniões são bastante claras e definitivas.
O que eu chamo a mim mesmo, diz o mesmo Priestley, não é nada além de matéria organizada. Ele acrescenta ainda que não pode de forma alguma admitir a existência do princípio não-material no homem: ‘Pela mesma razão que o homem supostamente tem uma alma, cada substância particular à qual quaisquer poderes ou propriedades são atribuídos também poderia ter uma alma separada’. [29]
O livro que citei cima – Le vrai sens du ‘Système de la Nature‘ – é atribuído a Helvétius. O Doutor Schmidt tem alguma ideia clara do materialismo deste interessante escritor, que tem sido tão difamado pelos filisteus? Vou tentar dar-lhe pelo menos um ligeiro conhecimento de Helvétius.
Embora Herr Doutor Schmidt não duvide da existência de um mundo externo independente de nossa consciência, essa existência só era provável para Helvétius. A probabilidade (de sua existência) é sem dúvida muito alta e as conclusões que dela derivam são equivalentes à confiabilidade, mas isto não é mais do que uma probabilidade. [30]
Isto é tão surpreendente que nunca se poderia esperar: Doutor Conrad Schmidt no papel de ‘dogmático’ em comparação com um materialista do século XVIII. Fale de ‘progresso’ depois disso!
Talvez Herr Schmidt agora consinta em admitir que ele – o erudito doutor – está enganado, mas não Frederick Engels, a quem ele corrigiria.
O célebre biólogo inglês Huxley disse certa vez em um artigo que a fisiologia atual leva diretamente ao materialismo, na medida em que esse nome é aplicável a uma doutrina que afirma que, além da substância que possui extensão, não existe outra substância pensante, e que a consciência, como o movimento, é uma função da matéria. Huxley estava enganado apenas em uma coisa, a saber, em imaginar que o materialismo alguma vez significou outra coisa. Todos os materialistas têm considerado a matéria exatamente da mesma forma que, segundo Huxley, a fisiologia atual nos ensinou. Com sua consistência e destemor característicos, os materialistas franceses puderam tirar, a partir dessa ideia fundamental, todas as conclusões possíveis para seu tempo, enquanto os materialistas ingleses tiveram medo de ir até o fim. No entanto, todos eles compartilharam e defenderam esta base subjacente da teoria materialista.
Em conclusão, vamos resumir o que foi dito por nós.
- Herr Doktor Conrad Schmidt entendeu muito mal Kant, a quem ele se propôs a defender contra Marx e Engels.
- Ele também entendeu mal Marx e Engels, os quais ele tentou criticar em nome de Kant.
- Ele revelou ter uma ideia absolutamente errônea de materialismo.
Estes três graves erros de nosso erudito doutor são suficientes para levantar a seguinte questão na mente do leitor: que espírito maligno o induziu a se envolver em discussões sobre coisas que, naturalmente, não poderiam ser ‘incognoscíveis’ para ele, mas que evidentemente permaneceram desconhecidas para ele? Esta é uma pergunta muito interessante. Para respondê-la, é preciso lembrar o que Tardes chamou de leis da imitação.
Os teóricos da burguesia de hoje aderem firmemente à filosofia de Kant e condenam o materialismo sem sequer se dar ao trabalho de saber algo sobre ele.
Herr Schmidt seguiu seu exemplo e condenou o materialismo de Marx e Engels.
Nisso, ele esqueceu que os teóricos da classe trabalhadora estão traindo a si mesmos quando se propuseram a imitar os teóricos da burguesia.
A aversão da burguesia pelo materialismo e sua predileção pela filosofia de Kant pode ser muito bem explicada pelo atual estado da sociedade. Na doutrina de Kant, a burguesia vê uma poderosa ‘arma espiritual’ na luta contra as aspirações finais da classe trabalhadora. É por isso que o kantianismo se tornou a moda entre os burgueses instruídos.
As classes mais baixas são conhecidas por muitas vezes imitarem seus superiores, mas quando o fazem? É quando elas ainda não alcançaram uma consciência de si. A imitação de uma classe alta por uma classe baixa é um sinal de que esta última ainda não amadureceu para a luta por sua emancipação; aquele que deseja promover essa maturidade está no dever de travar também uma luta contra essa cópia. O desenvolvimento da consciência no oprimido é um tremendo ‘fator de progresso’.
Também desejamos discutir dialética com o Dr. Schmidt, mas a falta de espaço nos impede de fazer isso. Consequentemente, isso deve ser adiado para algum outro momento, por isso agora vamos dizer-lhe: Adeus. Ich salutiere den gelehrten Herrn! [31]
Notas
As notas são de Plekhanov, exceto as dos editores de Moscou desta edição do trabalho, que são anotadas como ‘Editor’, ou MIA, as quais estão devidamente anotadas.
- Neste artigo Conrad Schmidt critica meu livro Essays on the History of Materialism (Ensaios sobre a História do Materialismo). Acho esta crítica muito fraca, mas não considero necessário responder a ela aqui. O que me interessa atualmente são suas objeções ao materialismo de Marx e Engels, e sua interpretação de Kant.
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 3 (Moscou, 1973), p 347 – Editor.
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 3 (Moscou, 1973), p 101 – Editor.
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 1 (Moscou, 1973), p 13 – Editor.
- Não pretendo com isto dizer que Marx e Engels foram os primeiros a avançar esta prova contra Kant. Na verdade, ela já pode ser encontrada em Jacobi. Isso, no entanto, não tem importância para mim aqui. Quero apenas mostrar que Marx e Engels criticaram o kantianismo, e não ‘fugiram à consideração dele’, como afirmou o Doutor Schmidt (que não entendeu nenhum de seus argumentos).
- Prolegomena (publicado por JH von Kirchman, Heidelberg, 1882), pp 39-40.
- Ver Georgi Plekhanov, Selected Philosophical Works, Volume 2 (Moscou, 1976), pp 325-39. Disponível em < http://www.marxists.org/archive/plekhanov/1898/07/bernsteinmat.html > – MIA.
- ‘É impossível saber mais sobre a matéria do que o que se pode inferir dos fenômenos em que ela está envolvida’. (Dr. Priestley, A Free Discussion on the Doctrine of Materialism (Londres, 1778), p 20) ‘Uma definição de qualquer coisa, substância ou ser (chame do que quiser) não pode ser nada mais do que uma enumeração de suas propriedades conhecidas… Se retirarmos todas as propriedades conhecidas, nada do qual podemos ter alguma idéia restará…” (Ibid, pp 45-46)
- Nada está dentro, nada está fora, pois o que está dentro, está fora. (Goethes Werke, Volume 2 (Gustave Hempel Edition, Berlim), p 230) – Editor.
- Kritik der reinen Vernunft (segunda edição, publicado por Dr Kehrbach, Reclam), p 258.
- Die Lehre Kants, p 138.
- Fichtes Werke, Volume 11, p 32; Volume 3, p 2.
- Em sua Erklärung de 7 de Agosto de 1799.
- Ver sua Der philosophische Kritizismus, Volume 1 (Leipzig, 1876), pp 423-39, e Volume 2, Parte 2 (Leipzig, 1876), pp 128-76.
- Querendo evitar Charybdis, ele se encontra com Scylla – do Alexandreis de Walther von Châtillon. Ou seja, tentando evitar um perigo, ele se depara com outro – MIA.
- The Kehrbach edition, p 320.
- O Sábio de Konigsberg, ou seja, Kant – Editor.
- Vorwärts!, o artigo acima mencionado. [Ou seja, na edição de 17 de outubro de 1897 – MIA].
- ‘Não sei’, diz P. Beck, ‘como a teoria da evolução é tratada pelos filósofos que aderem à teoria kantiana do conhecimento. Para Kant, a alma humana era uma dada magnitude sempre permanecendo igual a si mesma. Para ele, era uma questão de determinar sua propriedade à priori, deduzindo todo o resto a partir daí, mas não uma questão de mostrar a origem daquela propriedade. Mas se procedermos do axioma que o Homem se desenvolveu gradualmente a partir de um pouco de protoplasma, então será necessário deduzir das manifestações elementares da célula primária precisamente aquilo que foi para Kant a base de ‘todo o mundo dos fenômenos’ (Die Nachahmung und ihre Bedeutung für Psychologie und Völkerkunde (Leipzig, 1904), p 331). Os kantianos, no entanto, não pensam se sua teoria está de acordo com a doutrina da evolução. É apenas mais tarde que alguns deles, por exemplo, Windelband, começaram a demonstrar dúvidas sobre este ponto.
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 3 (Moscou, 1973), p 335 – Editor.
- Literalmente: ‘Em questões de gosto não há disputa’. Significado comum: ‘Gosto não se discute’. [MIA]
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 3 (Moscou, 1973), p 361 – Editor.
- Karl Marx e Friedrich Engels, Selected Works, Volume 3 (Moscou, 1973), p 346 – Editor.
- Système de la Nature, Volume 2 (edição de 1781), p 146.
- Système de la Nature, Volume 1 (edição de 1781), p 38.
- Système de la Nature, Volume 2, pp 161-62.
- Le vrai sens du ‘Système de la Nature’, Capítulo 1, e a Introdução do Recueil nécessaire (Leipzig, 1765).
- Ibid, p 76.
- A Free Discussion, p 123.
- Oeuvres complètes d‘Helvétius, Volume 1 (Paris, 1828), pp 5-6, nota.
- Citação de Fausto, de Goethe, p 397 – Editor. [Eu me curvo aos mais instruídos dentre os homens! – MIA]
Notas Gerais
[1] “até certo grau” (N. do Tradutor).
[2] “Um novo livro sobre a concepção materialista da história” (N. do T.)
[3] “Kant, sua vida e doutrina”
[4] “Ao princípio era a ação”. Essa frase faz parte do poema “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe. (N. do T.)
[5] “A doutrina de Kant sobre a idealidade do espaço e do tempo.” (N. do T.).
[6] “Não-Eu” (N. do T.).