Cinema, história e política: por um retorno ao cinema engajado

Por Lucas Pereira da Paz Bezerra

Esse texto tem como pressuposto o debate acerca do que foi caracterizado como cinema engajado e sua maior expressão no Cinema Novo, sua importância na busca de uma arte emancipadora e seus compromissos com o povo brasileiro, dando ênfase na importância do seu retorno para contribuir no processo político brasileiro, retomando no campo cinematográfico elementos para sua efetivação.


A constituição do cinema brasileiro se cruza com o próprio desenvolvimento econômico e social do país nos últimos 100 anos, sem contar na expansão de setores que trataram como parte constituinte na criação de uma identidade nacional. Um desenvolvimento desigual e combinado como o nosso, assentado em modernizações conservadoras no âmbito econômico e levado por uma manutenção da autocracia burguesa no campo político fez com que o cinema brasileiro tratasse de temas dos mais coletivos e dinâmicos ao longo de sua história.

 Se na década de 10 do século XX até metade dos anos 50 o cinema se relacionou de uma forma contemplativa com relação a temas brasileiros ligados à arte, literatura e sociedade, absorvendo técnicas estrangeiras no fazer cinema , nos anos 60 temos se constituindo um grupo formado por jovens cineastas acompanhado de alguns mais experientes no campo cinematográfico com um elevado senso antropofágico, com cuidado podemos dizer que essa geração tem um fio de continuidade com a Semana de Arte Moderna de 22. Ligados a um projeto nacional-popular, que dava a tônica naquele período no campo da esquerda em todos os segmentos artísticos, de modo que o cinema foi a possibilidade de se materializar diante o povo os desejos de uma vanguarda política ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) que fora isso, muito se explica pelos acontecimentos externos, a Revolução Cubana (1959) as guerras de libertação e a luta anticolonial , o conflito no Vietnam  e o desenvolvimento do socialismo na China, ou seja, elementos políticos-ideológicos que possibilitaram a organização e a aplicação de uma estratégia revolucionária que também colocasse fim a velho estrutura colonial e o sistema de exploração brasileiro, movimentos esse que em síntese davam corpo à revolução brasileira.

A criação do Centro Popular de Cultura (CPC) em 1962, ligado à UNE, além da grande movimentação artística entusiasmada com o projeto de reforma de base proposto por Jango influíram em uma série de criações cinematográficas que expressavam esse sentimento, mais do que isso, fazia parte de caldo político-cultural que se firmara no Brasil, em um país de grande desigualdade com um alto índice de analfabetismo o cinema poderia ser a porta de entrada para a conscientização do povo, assim como o uso de imagens fez parte da estratégia soviética no processo revolucionário. A introdução das principais ideais preconizadas pela vanguarda que se baseava, sobretudo, na estratégia nacional-popular que guiava a ação do principal partido de esquerda, PCB, tinha como princípio uma aliança com setores da burguesia nacional na luta contra o imperialismo e os resquícios feudais que assolavam o povo brasileiro para conseguinte avançar na estabilização de um capitalismo nacional independente e que traria as bases de um proletariado forte e que conseguisse levar a cabo a estratégia socialista. Esse plano político se colocava em um modelo etapista que norteou o pensamento progressista naquele período e que trouxe ações diretas para a sociedade através de uma “vanguarda esclarecida” pronta para efetivar esses objetivos que a história colocava.

Filmes como Barravento (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha, os Fuzis (1964) de Ruy Guerra, Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos além das produções que o mesmo já realizara na década de 50 e que é ponto inicial do cinema moderno brasileiro em certa medida[1] e o “estreante” ligado ao CPC Leon Hirszman como seu filme Pedreira de São Diogo (1962). Muitas outras produções foram criadas não só no cinema, mas na literatura, artes plásticas, arquitetura e na música, isto é, um ethos que levava à condição de um suposto encaminhamento para mudanças estruturais que rompesse com as formas historicamente arcaicas de nossa formação social e econômica. O Cinema Novo, assim como expressões artísticas de outros campos, colocou o fazer da arte algo mais que pessoal do autor, dando voz a dinâmica coletiva da sociedade, ao povo que sempre se passava a margem dos processos de decisão políticas na história brasileira e ao mesmo tempo traçando possibilidades de uma superação que rompesse também como certas práticas culturais e mitos findados entre as classes populares a uma condição de passividade e resignação diante o dominador, em verdade

Havia, de um lado, a ideia de que certas práticas tipicamente nacionais eram formas de alienação; de outro, havia o zelo por estas mesmas práticas culturais que derivava de uma vivência direta destes traços de cultura e, por outro lado, da falta de confiança no processo de modernização técnico-econômica tal como ocorria. De um lado, o Cinema novo e muito menos o Cinema Marginal, em sua iconoclastia, apresentaram aqueles traços conservadores de idealização de um passado pré-industrial tomado como essência. Origem mítica da nação.[2]

O cinema engajado, dessa forma, incorporava dilemas que extravasavam a própria classe do cineasta e o colocava em uma noção de que o próprio cinema é uma expressão de seu tempo e que, portanto, o cinema deveria estar à disposição da causa ideológica e política que estivesse ao lado do povo. Sem nenhum tipo de romantização, mas também sem perder a noção da realidade particular daquele momento histórico, podemos dizer que as condições objetivas propiciaram um ambiente intelectual para tais produções e que superaram até mesmos questões mais técnicas, introduzindo o a estética da fome que tinha mais a ver com as condições de fazer cinema, com a câmera na mão e equipamentos de audiovisual de baixo preço do que com a ambientação fílmica. Houve um ponto de inflexão nesse processo que tem ligações diretas com o golpe militar-bonapartista que se instaurou em 1964, o choque maior do campo progressista veio do setor artístico que foi como entrar em um período de transe, imobilidade que cercava suas ações e uma descrença generalizada, vale aqui fazer citação de um dos estudiosos do cinema brasileiro moderno, trata-se do trabalho de Reinaldo Cardenuto que tem um trabalho dentro da história do cinema focalizando-se nas obras e pensamento de Leon Hirszman (1937-1987).

“Com o fracasso do projeto político da esquerda nacionalista e com a crise das representações existentes na primeira arte do nacional-popular, o Cinema Novo não mais encontraria disposição para reencenar pretensões revolucionárias ou aferir idealizações utópicas de futuro. No geral, os cineastas acabaram por desistir da positividade anterior para adotar uma outra dialética cuja a força, em tempos ditatoriais, residiria em observar criticamente os sintomas de uma sociedade em crise. Ao recusarem a antiga inflexão teleológica como politicamente ingênua, acusando-a de populista, partiram para narrativas que refletiam sobre o recuo histórico da esquerda, nas quais o clima de derrota colocava em cena personagens em profunda agonia. Propondo um contradiscurso na tentativa de denunciar o Brasil tomado pelo autoritarismo, o drama político passou a compor o esgotamento do sujeito à deriva, destituído de projeções utópicas e posto violentamente à margem dos processos de transformação social. Em suas múltiplas manifestações, essa crise é nuclear em filmes como O Desafio (1964), de Paulo César Saraceni, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, Fome de Amor (1967), de Nelson Pereira dos Santos, Garota de Ipanema (1967), de Hirszman, O Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl, e os Herdeiros (1969), de Carlos Diegues”.[3] [grifos do autor].

O debate entre os cineastas se expande ao longo da década de 60 e 70 sobre o tipo de cinema a ser feito e, mais do que isso, pensando nas possibilidades de um apoio material no cinema nacional que durante sua história sempre foi uma das principais dificuldades para quem estava nesse meio buscando desenvolver uma arte expressiva para os demais. De modo que, muitos cineastas se voltaram para temas retratando personagens, clássicos da literatura, períodos e acontecimentos na história brasileira para angariar recursos públicos e consequentemente dar continuidade em suas obras. Isso não foi consenso dentro do Cinema Novo, muitos alegavam que isso era um princípio que negavam as produções anteriores e que fugia de o próprio fazer artístico dentro do cinema, outros dialogavam entre o meio termo em que reconheciam a ligação desse fazer fílmico com a indústria cultural, mas que ainda daria margem para uma abordagem crítica e subjetiva nestes mesmos espaços.

Debates como esses ocorreram de forma contínua nas décadas ulteriores, como não temos a pretensão de realizar um texto amplo sobre história do cinema, mas apenas indicar apontamentos, podemos voltar justamente para o título do texto: por um cinema engajado. No mundo hodierno, como uma expansão neoliberal em todas as esferas da vida humana, as palavras mudaram de cabeça para baixo, trabalhador virou colaborador, patrão virou empregador e engajamento virou sinônimo visualizações nas redes sociais. Longe disso, propomos aqui a noção de engajamento no seu sentido mais político possível que é justamente reprodução de uma práxis nas esferas da vida humana na sua representação e transformação objetiva e subjetiva das condições sociais. O cinema na atualidade,  nesse sentido, mais do que uma reconstituição estética da fome precisa encarar objetivamente uma sociedade que passou por uma modernização capitalista conservadora durante o período militar e que nos últimos 25 anos se reestruturou para atender as necessidades do capital externo com uma pauta neoliberal e ainda com a intensificação da dependência através do endividamento externo e uma alocação do Estado para financiar os prejuízos da burguesia interna e socializar a miséria entre o povo brasileiro. As reformas trabalhistas, previdenciária e administrativa tem como objetivo a reprodução dessa lógica e que, fora isso, engendrou-se uma base de trabalhadores informais em um nível crescente. O cinema engajado precisa dar conta desse movimento, algo que já vem sendo explicitado em cineastas ingleses e como exemplo podemos citar os filmes de Ken Loach o Sorry we missed you (2019) e também  I, Daniel Blake (2016), realçar pontos centrais que estruturam as bases das relações sociais e de trabalho no capitalismo hodierno, talvez, seja a base também para a renovação do cinema brasileiro, em vez da busca pelo sujeito pós-moderno, o cinema atual deve retomar o coletivo e traçar pontos que dialoguem com uma estética negativa do sociedade, colocando elementos de mal-estar a questão das imagens e suas medições como formas de relação social, dentro desse caldo político-ideológico o que é real e o que é apenas farsa? A tecnologia e o avanço das informações se colocam em um desenvolvimento contínuo no sentido em que uma pessoa em que nasceu nas últimas décadas não está habituada a analisar de forma integral todas elas e, portanto, vira-se um escravo da fragmentação e da exploração subjetiva, questões essas fazem com que o cinema com a política se expanda e esses apontamentos sirva para uma reflexão ativa.


Notas

[1] Produções como: Rio 40 graus (1954) e Rio Zona Norte (1957).

[2] Ismail Xavier, Cinema Brasileiro Moderno, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2001, p.21.

[3] Reinaldo Cardenuto, Por um Cinema Popular: Leon Hirszman, Política e Resistência, São Paulo, Ateliê Editorial, 2020, p.66.

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