Por Noor Karama, via Liberation School, traduzido por Gabrielle S.
Em 1970, Evelyn Coke, uma mãe solteira de cinco filhos, imigrou da Jamaica para os Estados Unidos. Contando com sua experiência em atender as necessidades dos outros, ela ganhava a vida cuidando dos idosos, dos doentes e dos moribundos. O trabalho era mal remunerado e cansativo, exigindo mais de 70 horas semanais, às vezes três turnos de 24 horas seguidos. Ela ganhava apenas US $ 7 por hora e nunca recebeu por horas extras. Para jogar sal na ferida, ela não era elegível para seguro de saúde e durante a maior parte da sua vida não pôde procurar cuidados médicos.
Após 20 anos de roubo e exploração salarial, Evelyn processou seus empregadores para receber o pagamento das horas extras que lhe era devido. O caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos. Citando a “Isenção de Companheirismo” na Fair Labor Standards Act [Lei Do Trabalho Justo] da década de 1930, o Tribunal decidiu em favor dos patrões. Esta isenção baseia-se no conceito moral de que o trabalho de cuidado é um “trabalho de amor” e, portanto, não pode ser quantificado ou regulado por meio de salários. A decisão da Suprema Corte deixou milhões de cuidadores vulneráveis à exploração e sem proteção legal básica até 2013. Finalmente, o Departamento de Justiça decidiu que os trabalhadores de cuidados são elegíveis para o salário-mínimo e pagamento de horas extras. Os Estados têm demorado a aplicar e fazer cumprir as novas regras. Os cuidadores não empregados ou empregados informalmente, permanecem fora de sua jurisdição.
Hoje, milhões de mulheres compartilham a realidade de Evelyn. O trabalho de cuidado – que é todo o trabalho, remunerado ou não, de serviços básicos para manter e reproduzir a vida – fica desproporcionalmente a encargo das mulheres. O trabalho doméstico, como limpeza, cozinha, cuidados infantis e cuidados com idosos; e cuidados de saúde, como enfermagem, auxiliares domésticos e outras ocupações de apoio na indústria de cuidados de saúde, são considerados trabalho não qualificado. Como resultado, estes são tipicamente os empregos mais mal remunerados e os mais feminizados.
Grande parte desse trabalho é informal e naturalizado na sociedade como dever das mulheres, independentemente de ser remunerado ou não. É difícil obter estatísticas que realmente representem a extensão do trabalho das mulheres neste setor, mas os números que temos demonstram a dramática diferença de gênero que existe em relação a este trabalho essencial. A Organização Internacional do Trabalho estima que existam pelo menos 67 milhões de trabalhadores domésticos com mais de 15 anos em todo o mundo. Desses 67 milhões, 80% são mulheres. Na realidade, esse número é provavelmente muito maior. Auxiliares de saúde domiciliar fornecem um bom exemplo: uma das ocupações que mais crescem nos Estados Unidos normalmente paga menos de US $ 30.000 por ano. Se expandirmos nossa perspectiva para incluir todas as formas de trabalho informal, 1,6 bilhão de pessoas em todo o mundo trabalhavam no setor informal antes da pandemia, e 60% são mulheres.
O gênero não é o único fator. A população de cuidadores tem uma super-representação de nacionalidades oprimidas, imigrantes e, onde isso é relevante, castas inferiores. Metade dos trabalhadores de saúde dos EUA com baixos salários são pessoas de cor. Em todo o mundo, 17% dos profissionais de saúde são migrantes. Novamente, esses números são certamente subestimados.
Este é apenas o trabalho de cuidado considerado trabalho assalariado. Na sociedade patriarcal e capitalista em que vivemos, a maior parte do trabalho de cuidado ocorre no lar, sem reconhecimento, embora seja essencial para manter a força de trabalho da qual o capitalismo depende. A Oxfam estima que as mulheres são responsáveis por 75% de todo o trabalho de cuidado não remunerado globalmente, equivalente a 12,5 bilhões de horas por ano e US$ 10,8 trilhões de valor subsidiado para a economia global. Para referência, isso é três vezes a quantidade da indústria global de tecnologia.
À medida que a pandemia se espalhava pelo mundo, causando perturbações dramáticas no funcionamento diário das economias capitalistas, pode parecer que os profissionais de saúde finalmente foram reconhecidos como os trabalhadores essenciais que são. Governos e corporações tornaram popular a categoria de trabalhadores essenciais, celebrando seus feitos heroicos enquanto esses profissionais arriscavam suas vidas todos os dias para manter a sociedade funcionando.
Para apontar a ironia aqui: embora consideradas essenciais, a maioria das sociedades capitalistas não fornecia proteção material suficiente para os trabalhadores que elas aplaudiam, e esses trabalhadores nem tinham a opção de não arriscar suas vidas todos os dias por um salário. Permanecendo com os números, dos quais são poucos, vamos investigar as consequências desta crise sobre as condições das mulheres que compõem a maioria dos trabalhadores essenciais.
Primeiro, há perda de emprego que acompanha a crise econômica: os 1,6 bilhão de trabalhadores informais, a maioria mulheres, perderam 60% de sua renda no primeiro mês da pandemia. Na América Latina e no Caribe, houve uma perda de renda de 80%. No Brasil, 55% das mulheres negras relataram que a pandemia colocou seus meios de subsistência em risco. Em todo o mundo, trabalhadores domésticos que dependem de empregos privados perderam o trabalho quando famílias de classe média e alta fecharam suas casas para prevenir a infecção por COVID-19. Muitas vezes, aqueles que não perderam seus empregos tiveram que enfrentar jornadas de trabalho mais longas e tarefas mais difíceis, sem remuneração extra.
Ademais, há o fardo adicional de cuidados não remunerados. Com escolas fechadas, centros médicos pouco seguros e sobrecarregados e familiares doentes, as obrigações da vida doméstica e familiar dobraram ou até triplicaram. As mulheres foram forçadas a deixar a força de trabalho em números sem precedentes. Nos Estados Unidos, citado em um estudo recente na A Woman’s Nation, a economia perdeu 140.000 empregos até dezembro de 2020, todos ocupados por mulheres. Esse afastamento da força de trabalho tem consequências sociais e econômicas. Enquanto o lar continua sendo um espaço privado onde os valores patriarcais e capitalistas são aplicados e reforçados, as taxas de violência doméstica aumentaram em todo o mundo durante a pandemia. Não precisamos quantificar as consequências da dependência financeira de um chefe de família do sexo masculino para entender o perigo para os direitos sociais que ela representa.
E ainda há o grande risco para a saúde. Quanto aos números, 73% dos casos de COVID-19 relatados entre os profissionais de saúde afetaram as mulheres. Durante o auge da pandemia, em maio de 2020, 87% dos enfermeiros relataram ter que reutilizar equipamentos de proteção individual e 27% dos enfermeiros relataram ter sido expostos à COVID-19 sem EPI. Os trabalhadores com baixa remuneração são frequentemente vistos como menos essenciais, especialmente no setor privado. Relatos de famílias que se testam regularmente para o vírus, mas nunca testam suas empregadas, demonstram as relações sociais desvalorizando aquele que presta o trabalho essencial.
Estados capitalistas, lutando para proteger o lucro acima de tudo, não ofereciam caminhos viáveis para proteger as mulheres cujo trabalho subsidia a economia, reproduz a força de trabalho e sustenta a vida. Mas a classe trabalhadora global tem construído soluções antes e durante a pandemia. O cuidado comunitário, ou ajuda mútua, tem sido uma característica da cultura da classe trabalhadora e dos métodos de sobrevivência em um mundo onde o Estado não fornecerá as necessidades básicas para a vida.
Na Argentina, o Movimiento Transexual Argentino forneceu refeições regulares a mais de 500 pessoas transexuais que haviam perdido sua fonte de renda através de um projeto de cozinha comunitária. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra alimentou comunidades por meio de entregas de produtos, e defendeu seus acampamentos contra o despejo. Na África do Sul, o Abathlali baseMjondolo (movimento Shackdwellers) construiu comunas para os desabrigados com escolas, produção de alimentos, estradas e centros culturais, e lutou para libertar suas mulheres líderes da prisão política e do abuso.
Rompendo com uma tradição internacional de cuidado comunitário, nos Estados Unidos, a ajuda mútua tende a ser efêmera. Vimos bairros e coletivos rapidamente se unirem para apoiar a insegurança alimentar, os doentes e os mais vulneráveis ainda mais ameaçados pela pandemia, como o programa de assistência alimentar Unity & Survival [Unidade e Sobrevivência] do Centro de Libertação da Filadélfia.
A governança socialista permite que os cuidados comunitários atinjam uma escala maior. Em Kerala, na Índia, o Estado abasteceu milhares de trabalhadores migrantes deslocados e desempregados. A sociedade rapidamente se reorganizou para fornecer comida, abrigo e cuidados de saúde que permitissem a todos tomar as medidas necessárias de quarentena e distanciamento para prevenir a infecção. Cuba, sob um bloqueio de 60 anos, protegeu sua população e forneceu ajuda significativa para o resto do mundo também. Há lições imensuráveis do exemplo da China, em que os voluntários da comunidade realizaram testes regulares, saneamento e entrega de alimentos durante os piores meses da crise.
É uma tragédia que Evelyn Coke nunca tenha recebido justiça. Quando atingiu a idade de aposentadoria e se tornou elegível para o Medicaid, ela já estava perto da insuficiência renal e tinha que fazer diálise três vezes por semana. Quando morreu, aos 74 anos, seu filho afirmou que as escaras, uma condição que ela passou a vida aliviando em outras pessoas, contribuíram para a deterioração de sua saúde. Sua bravura é um exemplo. A história é um guia: com a luta organizada, a superexploração das mulheres marginalizadas pode se tornar coisa do passado. O mundo socialista que Alexandra Kollontai vislumbrou tão claramente, que as mulheres revolucionárias ao longo da história nos empurram para construir, distribuirá o fardo do cuidado entre todos nós para que não seja mais um peso esmagador. Pelo contrário, é um valor, uma causa comum, uma prioridade em todos os níveis da sociedade.