Por Armiche Carrillo, via Nossa Política, traduzido por Flávio Herculano
Poucos acontecimentos na história contemporânea provocaram um número tão grande de tentativas de compreensão e explicação. Nas apertadas linhas que seguem, nos propomos ressaltar três das lições que podemos extrair daqueles acontecimentos.
Contextualizando
O capitalismo gera continuamente uma anomia entre o que promete e o que é capaz de cumprir. Assim, os anos anteriores a 68, a fartura econômica parecia assegurar a classe operária, a pequena burguesia e a outras camadas da sociedade com uma satisfação plena das necessidades económicas e culturais. Quando a realidade demonstrou que as ilusões eram em vão e que a única classe beneficiada era a burguesia, a frustação não demorou a aparecer.
Nesse clima, o PCF eurocomunista vai perdendo em grandes passos seu caráter revolucionário e deixa a classe trabalhadora órfã de partido político e que passa a ser ocupado por setores de estudantes, intelectuais da pequena burguesia e de filiações, em muitos casos, declaradamente anticomunista.
No que se diz respeito sobre o cenário internacional, a revolução cubana, a brutal guerra da Argélia e a guerra do Vietnã, particularmente a ofensiva do Tet em janeiro de 68, são cada vez mais espelhos potentes sobre os reflexos da verdadeira natureza do capitalismo e servem de inspiração a um número cada vez maior de pessoas.
O gatilho e os acontecimentos
Só faltava um gatilho para acender o pavio das revoltas. E se acendeu no final de abril quando um grupo de estudante da Universidade de Nanterre se manifestou em apoio a vários outros estudantes que haviam sido detidos sobre acusação de atacar interesses norte- americanos em um protesto contra a guerra do Vietnã. A resposta veio por parte das organizações de extrema direita, que invadiram a universidade em 2 de maio.
A primeira semana de manifestação teve seu ápice na noite de 10 de maio, quando milhares de estudantes encheram de barricadas um bairro latino e a implantação de carros blindados por Paris.
Para o dia 13, convocaram uma greve geral em todo país e os acontecimentos tomam uma nova dimensão, milhões de trabalhadores e trabalhadoras adere a greve. Embora o movimento estudantil houvesse apoiado o movimento trabalhista, não é possível afirmar que havia uma relação de causalidade. Não em vão, durante toda a década de dos anos 60 se sucedeu greves operárias cada vez maior. Por mais que 1967 acabou com inúmeras greves em todo país, 1968 nasceu com as mesmas perspectivas.
Diante da força do movimento trabalhista e estudantil, o governo recua, até que no final de maio De Gaulle declara dissolvida a assembleia e convoca eleições para final de junho.
Assim, reestabelecida a ilusão parlamentar, vai se apagando os últimos focos da revolta.
Várias perguntas
No entanto, existem questões para responder: maio de 68 foi uma revolução? Que papel tiveram no desfecho as figuras políticas? E as diferentes classes?
Começamos pelos últimos aspectos. Como vimos, a situação política da classe operária francesa era ambivalente. Por uma parte, a década de 60 promoveu o auge da luta operária como não se havia visto desde antes da última guerra mundial, na verdade, o conflito trabalhista estava em alta quando chegou maio de 68. No entanto, o papel do PCF como dirigente natural da classe operária só deixou muito a desejar, sendo que além disso, teve uma vasta influência do desfecho dos acontecimentos.
Com a vantagem da perspectiva do tempo, hoje sabemos que verdadeiramente não podia ser de outra maneira. O revisionismo imperante na PCUS depois do XX Congresso, abriu as portas para que seus homólogos ocidentais trocassem o marxismo-lenismo, que havia levado a classe operaria ao poder, pela corrente eurocomunista, que prometia grandiosamente um triunfo pacífico da revolução em troca de um pacto social com a burguesia.
Em apenas três dias, o PCF e seu sindicato, a CGT, deram mostras práticas do que significava o eurocomunismo. Efetivamente, entre 25 e 27 de maio se substanciam, entre os sindicatos – a CGT entre eles – o empregador e o Governo Pompidou os chamados acordos de Grenelle, que embora nominalmente eles supunham a melhora do salário, não era nem de longe o que os representantes da classe operária reclamavam. Um segundo acontecimento ocorre no mesmo dia 27, quando em um comício em massa, o PCF propõe o que chama de um “Governo Popular”, que em efeitos práticos, significava renunciar a possibilidade de uma insurreição, como pediam cada vez mais os setores do movimento trabalhista em favor de uma frente de esquerdas, com o setor da burguesia comandado por François Miterrand.
Quando dias depois o próprio De Gaulle dissolvia a assembleia e convocava novas eleições, o PCF terminou seu trabalho de desmontagem da mobilização convocando, não para prosseguir as greves, mas sim para votar. Ambos os acontecimentos tiveram o efeito de cortas as asas do movimento trabalhista e recuá-lo, uma vez mais, nos canais controláveis do parlamentarismo burguês.
Sem uma direção revolucionária, como foi notado, a direção política do movimento trabalhista e estudantil ficou nas mãos dos intelectuais da pequena burguesia que, além de uma fraseologia revolucionária, só buscavam uma melhor posição no sistema capitalista. A maioria deles, professores de diferentes universidades francesas, os que lhe deu uma grande oportunidade de influenciar o outro grande ato social dos acontecimentos de maio. De fato, os estudantes, uma complexa mistura de jovens procedentes de famílias da pequena burguesia e em uma menor parte da classe operária, viram na intelectualidade francesa, muito deles seus professores e seus dirigentes naturais.
Um deles foi Alain Touraine, professor de Cohn Bendit em Nanterre, na época, um dos líderes do movimento estudantil. Touraine – como Marcuse já havia feito – não poupou desqualificações da classe trabalhadora como sujeito revolucionário em favor dos novos movimentos sociais, tornaram-se, em sua opinião, os verdadeiros representantes dos interesses gerais. Touraine, sendo consistente com sua posição classista, afirmou que esses novos movimentos “não se orientam a tomada do poder sem uma mudança da sociedade”
Ao mesmo tempo em que a realidade universitária, carente de um verdadeiro discurso de classe, surgiram o calor dos eventos de grupos esquerdistas a flor da pele. Maoístas, trotskistas ou os “conselheiros” de Anton Pannekoek, coloridos de anarquismo galopante, proliferaram como cogumelos depois da chuva, contribuindo para desfocar uma frente unitária da luta revolucionária em favor das mais diversas aspirações. O resultado final dessa confusão ideológica foi um movimento estudantil combativo, mas sem direção revolucionária, carente de um projeto comum a partir de estabelecer uma aliança estratégica com a classe operária com a intenção da tomada de poder.
A questão da tomada de poder nos leva a nossas primeiras perguntas: o que foi maio de 68? Pelas linhas que antecedem ficou claro que em termos gerais, a questão da tomada de poder e a revolução socialista não figurava entre os objetivos dos sujeitos políticos dos acontecimentos de maio. Não era, pois, a revolução que estava em jogo, sem uma distinta acomodação dentro do capitalismo realmente existente. E isso apesar de que, no momento auge dos protestos, quando o governo não se atreve a recorrer de forma generalizada a repressão, pareceu abrir no horizonte uma situação de vazio de poder.
Em um cenário vazio de poder, com uma greve que pretendia ter um caráter revolucionário, pode chegar a uma insurreição armada? Vamos ver de uma experiência histórica. Lenin, no calor dos sucessos de fevereiro a outubro de 1917, compreendeu que insurreição, que finalmente daria lugar a revolução de outubro, podia triunfar por duas razões fundamentais: a maioria do povo russo havia compreendido pela força dos atos que a situação era insustentável e o partido bolchevique era o único que oferecia “a todo o povo a saída certeira, ao demonstrar (nos dias da korniloviada) o significado de nossa direção”. Em outros termos, para que uma insurreição acabe em vitória são necessários dois fatores: por uma parte, que a classe trabalhadora – e seus aliados – estejam dispostos a sustentar uma luta armada até o final e, por outro lado, a existência de um partido comunista, ideologicamente armado e capaz de dirigir a luta das massas.
Assim, como se a comprovado nas linhas acima, não era a situação do maio francês. A influência ideológica diversa dos atores sociais e políticos e à deriva revisionista do PCF, que lhe habitava como referência revolucionária entre as massas, impedia, de fato, um triunfo de uma hipotética insurreição.
O modo de conclusão: três lições de maio de 68.
Vamos encerrar essas breves linhas com uma última pergunta: Qual foi o resultado dos protestos de maio?
Quando no final de junho se celebra as eleições, só teve um ganhador: as forças gaullistas arrasaram, obtendo uma maioria absoluta que nunca haviam sonhado. As forças que haviam defendido a tática eleitoral do governo popular, principalmente o PCF, sofreram uma derrota em toda a linha da qual até hoje e tem sequelas. E essa é a primeira lição: no parlamentarismo burguês, sempre ganha a burguesia, de um ou de outro modo.
Mas, ainda é importante lembrar, a derrota do movimento operário foi maior. Embora o primeiro momento, por questões táticas, a burguesia gala pactuou com os setores reformistas algumas melhorias trabalhistas e pouco tempo depois vieram abaixo. Os “êxitos” que o reformismo tinha pregado se demonstraram como simples migalhas que se desapareceram no ar com o sopro da crise económica de 73. E essa é a segunda lição: a política de conciliação de classes em um estado burguês sempre tem como resultado a derrota da classe operária.
A terceira lição é a causa das duas anteriores. A ausência de um partido de vanguarda, “com tempo de luta”, deixa as massas trabalhistas e populares órfãs de uma direção política revolucionária que saiba analisar corretamente o momento histórico na ordem para converter as lutas isoladas e espontâneas em um verdadeiro levantamento popular que situe o problema da revolução socialistas como horizonte de luta próximo. Já vimos como a deriva eurocomunista do PCF incapacitou, de fato, para exercer essa tarefa y consequentemente não jogou um papel de direção política nos protestos.
Nesse contexto, outras classes, ou camada sociais, prestaram a exercer essa direção política, mas não com orientação operária y com saída revolucionária, e sim na defesa de seus interesses particulares. A pequena burguesia, como já vimos, não demorou em se colocar a frente dos protestos em causa dos seus interesses próprios.
O resultado final dos acontecimentos de maio de 68 – não só o maio francês, embora esse tenha sido o que mais focamos por questão de espaço – foi uma derrota do movimento operário e popular e uma quebra das ilusões de luta de milhões de homens e mulheres que trouxeram com eles nas décadas seguintes, um aumento de desmobilização social que pouco a pouco está sendo superado. Mas também – e com isso devemos ficar – trouxe valiosas lições que o conjunto do movimento trabalhista devemos aprender a assimilar na luta diária pelo nosso presente e nosso futuro.
Armiche Carrillo, membro do comitê central do PCPE
Artigo publicado no n°1 de Nossa Política, revista teórica e política do PCPE Tradução: Flávio Herculano.