Thomas Sankara sobre a fundação do “Instituto Negro”

Por Thomas Sankara e Bruno Jaffré, via Liberation School, traduzido por Clara de Faria

“O texto a seguir é de um discurso que Sankara fez na capital de Burkina Faso, Uagadugu, para “camaradas militantes” da Revolução Popular e Democrática (1983-1987). No discurso, ele expressa as razões pelas quais fundou o Instituto Negro, enquanto presta homenagens a Cheikh Anta Diop e Aimé Césaire. Discute, mais especificamente, a importância de promover a cultura negra com a essência de um internacionalismo resoluto, e claro objetivo de emancipação universal.


Introdução editorial

Esta é a primeira tradução para o inglês desse discurso, intitulado “Os negros devem assumir responsabilidade por sua própria história e contribuir para a civilização universal”, segundo volume numa série de trabalhos não traduzidos de Thomas Sankara, pela Liberation School (leia o primeiro volume aqui). Essa série de traduções é o resultado de uma colaboração com a ThomasSankara.net, uma plataforma online dedicada a arquivar trabalhos sobre e dos grandes revolucionários africanos. Gostaríamos de agradecer ao Bruno Jaffré por nos permitir formar essa parceria e por nos proporcionar o direito de traduzir esse material para o inglês, pela primeira vez (a versão original em francês está disponível aqui).

Thomas Sankara (1949-1987), denominado, por vezes, de “Che Guevara Africano”, foi o líder Marxista-Leninista da Revolução Popular Burkina Faso (N.T.: em inglês, Burkinabé Revolution), de 1983 até seu assassinato, em 1987, o qual está, finalmente, sendo investigado [1]. Sankara contribuiu significativamente para a luta anti-imperialista e anticolonial, para a defesa da autodeterminação nacional, construção do socialismo internacional, libertação das mulheres, para a briga contra a destruição ambiental impulsionada pelo capitalismo e muitas outras frentes relevantes da luta de classes mundial [2].

O texto a seguir é de um discurso que Sankara fez na capital de Burkina Faso, Uagadugu, para “camaradas militantes” da Revolução Popular e Democrática (1983-1987). No discurso, ele expressa as razões pelas quais fundou o Instituto Negro, enquanto presta homenagens a Cheikh Anta Diop e Aimé Césaire. Discute, mais especificamente, a importância de promover a cultura negra com a essência de um internacionalismo resoluto, e claro objetivo de emancipação universal.

Introdução ao discurso, por Bruno Jaffré

Esse discurso é extraído de um documento intitulado “Simpósio Internacional para a Criação do Institut des Peuples Noirs (Instituto Negro ou, literalmente, Instituto do Povo Negro), Uagadugu, 21-26 de abril, 1986”.

Thomas Sankara presta uma vibrante homenagem a Cheikh Anta Diop. Senegalês, historiador, antropologista, egiptólogo e político, Diop participou do desenvolvimento de uma consciência africana livre de quaisquer complexos, apesar da visão europeia do mundo. Foi assim que ele mostrou que os primórdios da civilização nasceram na África e que os primeiros faraós do Egito eram negros. Diop está, portanto, na origem da denominada “Corrente Afrocentrada” como tendência histórica.

Esse é o único discurso, até onde se sabe, no qual Sankara presta homenagem a um notável intelectual negro (observe que ele cita, também, neste texto, Aimé Césaire). Em geral, ele faz mais referências ao marxismo do que ao pan-africanismo. É verdade que, na época, os jovens intelectuais africanos da FEANF (Fédération des étudiants d’Afrique noire en France, ou Federação de Estudantes Africanos Negros na França) preferiam entrar em discussões que se opunham às correntes consideradas marxistas, pró-soviéticas, pró-chinesas, pró-albanesas, ao invés de serem absorvidos pelo pan-africanismo.

Isso significa que Thomas Sankara não era pan-africano?  Para afirmar o contrário, os pan-africanistas de hoje se baseiam, acima de tudo, no discurso da OUA (Organização da Unidade Africana), em 29 de Julho de 1987 [3]. Se ele quase não usa a palavra, Thomas Sankara a reivindica em uma entrevista [4].

Thomas Sankara regularmente pede a unificação da África, sem muitas ilusões, graças à hesitação de seus colegas. Ele iniciou um processo de fusão com Gana, o qual menciona em diversos discursos. Em duas ocasiões, os exércitos de ambos os países organizaram ações conjuntas: em novembro de 1983 e em março de 1985. Rawlings (Presidente de Gana) e Sankara se viram na mesma posição, fosse perante Houphouêt-Boigny (Presidente da Costa do Marfim) durante reuniões regionais ou Gaddafi (líder da Líbia), quando precisaram pedir que ele honrasse suas promessas.

Para Thomas Sankara, a missão do IPN (Institut des Peuples Noirs ou Instituto Negro) é responder a seguinte pergunta: “O que o povo negro fez, o que pode ou deve fazer, para assumir a responsabilidade por sua própria história, e, dessa forma, contribuir para a civilização Universal (la civilisation de l’Universel)?” O Instituto deve refletir o símbolo do povo negro, da sua “vontade comum de preservar sua identidade cultural, seus gênios criativos e sua dignidade”. Mas há, também, uma insistência durante o discurso de que eles não devem se satisfazer vivendo fechados para o mundo. Devem, ao invés disso, estar abertos a conhecer outras pessoas.

O IPN encontrou muita dificuldade em arrecadar fundos para sua operação, pois o fôlego do lançamento não durou muito. O Instituto começou a sobreviver de maneira relativamente modesta. Não foi abolido após a morte de Sankara, mas seguiu existindo sem recursos por alguns anos, graças à paixão de algumas pessoas, apenas para, por fim, ser fechado com indiferença.

– Bruno Jaffré

“Os Negros precisam tornar-se responsáveis por sua própria história e contribuir para a civilização universal.”

Honrados convidados!

Nobres seminaristas!

Camaradas militantes da RDP [5]!

Em primeiro lugar, gostaria de prestar uma merecida homenagem à Cheikh Anta Diop.

Enquanto trabalhávamos para organizar este simpósio, quando ele estava em seu lugar de direito na nossa lista, em meio às personalidades da cultura negra, o grande defensor do povo africano, do povo negro, o eminente homem da cultura, mestre Cheikh Anta Diop faleceu em Dakar. Toda África em luta lamentou e ainda lamenta sua perda. Toda a África cultural e intelectual chora sua morte e o mundo da ciência observa com profunda amargura o vácuo que ele deixou. Se é justo e normal que prestemos todos os respeitáveis tributos que esse grande africano, Cheikh Anta Diop, merece, chorar por ele mal seria o suficiente. Não devemos chorar por grandes homens. Cheikh Anta Diop era um gigante. A melhor homenagem que podemos prestar a ele é nos comprometermos a continuar com o trabalho que empreendeu com tanto amor e respeito pelo povo e civilizações negras, fazendo uso da mesma coragem, sinceridade e competência. Nós achamos, honestamente, no momento do simpósio que estamos prestes a iniciar, que o Instituto Negro, através de seus ideais, é o local perfeito para prestarmos homenagem a ele, para impedir que se perca, que seja transfigurado e que seja esquecido — a imagem dele que o mundo moderno deve preservar.

Mais uma promessa e aposta para o sucesso total da empreitada para qual vocês, nós, nos reunimos aqui. Para esse novo compromisso, para o empenho, para esse desafio que estamos estabelecendo para nós mesmos, com o intuito de proteger o trabalho de Cheikh Anta Diop em benefício não apenas do povo Negro, mas da humanidade, eu os convido a cumprir um minuto de silêncio em meditação e para contemplar que tipo de combate devemos adotar.

Concordamos em reunir partes de nossos continentes, países e respectivas ilhas hoje em Uagadugu, a capital da terra livre de Burkina Faso, por um motivo, um objetivo que trará, talvez, um sopro sobre nossas cabeças, sobre as cabeças deles, daqueles, como Aimé Cesaire disse: “que nunca inventaram a pólvora nem a bússola… mas que conhecem bem o sofrimento profundo, o vento da esperança”.

De fato, hoje nos reunimos para tentarmos juntos, como uma unidade, refletir sobre a ideia, o projeto de criação do Instituto Negro. Um projeto audacioso, uma aposta extraordinária, como podem esperar!

Senhoras, senhores, caros convidados, honrados seminaristas, homens e mulheres que apoiam a Revolução popular e democrática de Burkina Faso!

Quando a ideia de criar um espaço de encontro para todas as pessoas negras do planeta nos ocorreu, não subestimamos, nem mesmo por um minuto, a ousadia da tarefa. Mas tínhamos também, em nosso coração e mente, como um “motivo condutor” (NT.: do alemão leitmotif/leitmotiv, é uma frase musical curta e recorrente), o slogan de nossos militantes mais jovens, os pioneiros: “Ouse lutar, saber, vencer”. Vimos que somos capazes de mover montanhas para que, finalmente, todo o povo negro do mundo possa conhecer uns aos outros num mesmo lugar, um local onde possam se rejuvenescer.

Em nossa opinião, tornou-se indispensável que, diante da história, o povo negro, a África e o que é chamada de diáspora negra respondam, juntos, essa questão; e, na minha opinião, essa é a pergunta que fundamenta o BI (Black Institute) e sua missão: “O que o povo negro fez, o que podem ou devem fazer, para assumir a responsabilidade por sua própria história, e, dessa forma, contribuir para a civilização Universal (la civilisation de l’Universel)?”.

De fato, senhoras, senhores, convidados honráveis deste simpósio, militantes homens e mulheres, o que somos para nós mesmos, negros, e para os outros? O clichê já está ultrapassado: pessoas sofridas, perseguidas e humilhadas, pessoas que ainda experimentam a explosão interna de sua personalidade como resultado da indignação que racha a própria consciência como ser humano, como resultado da maldição, da pigmentação – para sempre negra – de suas peles.

É assim que ouvimos que o povo negro em foco, que está na África ou não, possui uma origem comum, uma história comum, que constitui, para eles, o patrimônio cultural primário para ao qual sua luta contra a escravidão, colonização, contra o apartheid, pelos direitos civis e pela independência política e econômica os direciona. Mas hoje, e eu falo especialmente com vocês, senhores, convidados, honrados seminaristas, o povo negro os observa. O mundo inteiro está virado para vocês, para o simpósio para o qual vocês vieram, muitas vezes, de longe. Porque a história finalmente provou que os negros estão certos em organizar e desenvolver sua solidariedade ativa em torno de iniciativas compartilhadas já existentes, seja na Mãe África ou nos países da diáspora. É dentro desse âmbito que o BI deve estar na consciência do povo negro disperso geograficamente num espaço fragmentado, um símbolo de reunificação, o símbolo da vontade compartilhada de preservar sua identidade cultural, sua genialidade criativa e sua dignidade.

É por isso que o Instituto Negro não será limitado nem a si mesmo e nem ao seu objeto, que é o povo negro. Será aberto a outras pessoas. Essa é a condição essencial para que os negros possam reavaliar seu patrimônio histórico e redefinir toda sua identidade no mundo contemporâneo. Para nós, os objetivos do Instituto Negro serão sempre afirmar seu próprio valor e participar de diálogos culturais que, na nossa visão, são o acordo entre pessoas, independente de suas cores.

Confiante nas reflexões ricas e construtivas que vão emergir de vosso trabalho durante o simpósio, o qual eu espero que seja franco e justo, honrados convidados, honoráveis seminaristas, é importante nunca nos esquecer que o fruto que colheremos deverá ser a prova de fogo reuniões, das trocas e da cooperação fiel entre pessoas ao redor do mundo.

Para fazer isso, vocês deverão, durante as reuniões atuais, se jogar no entusiasmo e na paixão que vão descobrir todas as boas causas e intenções do projeto. Devem, antes, se inspirar na prudência, nas precauções, para levar em conta apenas os interesses do povo negro e de outras pessoas para o Instituto Negro, pelas suas prefigurações, que deverão ser, necessariamente, apoiadas por princípios e orientações enunciadas, acordadas e aceitas pela maior quantidade de pessoas possível.

Honrados convidados, honoráveis seminaristas, Burkina Faso é apenas o humilde propulsor de um projeto, de uma ideia coletiva que é, acima de tudo, democrática, até mesmo universal, e, portanto, desnacionalizada e despersonalizada, a fim de se tornar o cavalo de batalha de todos aqueles que sempre mantiveram, independentemente de qualquer coisa, a esperança de ver a unidade cultural do povo negro através de uma abordagem de reflexão compartilhada. Para tanto, devemos prestar homenagens aos mártires, às lutas políticas, artísticas, científicas e literárias de todos aqueles que acreditaram e acreditam no alvorecer da “Civilização Universal”, isto é, no amor e na solidariedade.

Honrados convidados, honoráveis seminaristas, é para esta reflexão que vocês estão convidados, vocês, que aceitaram, apesar da distância e de agendas muitas vezes cheias, proporcionar seu apoio inestimável — já estou convencido disso — para a construção de um ideal compartilhado.

Enquanto desejo todo sucesso em seu trabalho, declaro aberto o simpósio internacional para a criação do Instituto Negro.

Pátria ou morte, nós venceremos!


Referências:

[1] Ver Mierneck, Katie. (2021). “34 anos após o assassinato de Sankara, assassinos finalmente vão a julgamento.” (Trad.) Liberation News, 15 de outubro. Disponível aqui.

[2] Para uma visão geral do trabalho de Sankara, ver Malott, Curry. (2020). “Thomas Sankara: liderança e ação que inspira, 71 anos depois.” (Trad.) Liberation School, 21 de dezembro. Disponível aqui.

[3] Ver página 128. Ele declara, na ocasião do terceiro aniversário da Revolução: “O de Gana que conosco busca, todos os dias, a todo instante, todo momento, os melhores caminhos de comunhão, fusão, integração de nossas possibilidades, de nossos recursos.”

[4] Ver a entrevista de Mongo Beti (disponível aqui). Ele diz, em particular, sobre o pan-africanismo: “cabe a nós, cabe aos patriotas africanos, lutar onde quer que seja, sempre, para sua realização (concrétisation).”

[5] RDP significa a “Revolução Democrática e Popular” ou a “República Democrática e Popular” (Révolution démocratique et populaire / République démocratique et populaire) que durou de 1983 a 1987 em Burkina Faso.

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