Por Louis Althusser, via Viewpoint Magazine, traduzido por Lara Rossetto
O texto abaixo é baseado na intervenção inicial de Althusser em uma conferência em Veneza, em novembro de 1977, organizada pelo Il Manifesto, intitulada “Poder e oposição em sociedades pós-revolucionárias”. Ele foi publicado subsequentemente como parte dos procedimentos da conferência. Aqui, Althusser aborda o tópico da “crise do marxismo” em profundidade pela primeira vez, ressaltando suas causas teóricas (o caráter incompleto dos conceitos marxistas) e práticas (o status do marxismo como um “guia para a ação”), bem como seu efeitos potencialmente regenerativos. Esta versão segue a tradução de Graham Locke, que apareceu na “Marxism Today” (junho de 1978), 215-220, 227, e em “Power and Opposition in Post-revolutionary societies” (Londres: Inks Ltd., 1979), 225-37.
[1]Eu irei me limitar a uma breve reflexão sobre a situação que estamos enfrentando, pois nosso interesse, fora da Europa Oriental, não é baseado em uma necessidade de informação, nem em mera manifestação de solidariedade. O que está ocorrendo na Europa Oriental nos envolve diretamente, afinal, o que está ocorrendo lá também está ocorrendo conosco. Tudo o que se passa naqueles países nos diz respeito diretamente, e possui um impacto em nossos pontos de vista, nos objetivos de nossa luta, na nossa teoria, em nossas batalhas e em nossos modos de agir.
Eu devo me desculpar antecipadamente por apresentar meus comentários apenas em alguns minutos, de maneira grosseira e esquemática, sem as nuances necessárias. Mas faz algum tempo que as pessoas começaram a falar entre si sobre uma crise do marxismo. Em suas palavras iniciais, Rossana Rossanda repetiu essa frase.
Existem frases que desempenharam um papel tão duvidoso na história das lutas sociais que hesitamos em utilizá-las. Por um século, a frase “a crise do marxismo” foi, ela mesma, utilizada, de novo e de novo, por inimigos do movimento operário – mas servindo aos seus próprios propósitos, para levar ao colapso e morte do movimento. Eles exploraram as dificuldades, as contradições e os fracassos do movimento operário em prol dos interesses da luta de classe da burguesia. Hoje, eles estão explorando os horrores dos campos soviéticos e seus desdobramentos, contra o marxismo. A intimidação também tem seu espaço na luta de classes.
Nós devemos encarar o desafio dessa intimidação adotando a frase “a crise do marxismo” com um significado completamente diferente de “colapso” e “morte”. Nós não temos nenhum motivo para nos amedrontar com o termo. O marxismo já passou por outros períodos de crise, como aquela que levou à “falência” da Segunda Internacional e sua deserção em direção ao campo da colaboração de classe. Mas o marxismo sobreviveu. Nós não devemos ter medo de usar a frase: está muito claro, por meio de vários sinais, que hoje o marxismo está novamente em crise, e que essa crise é aberta. O que significa que é visível a todos, incluindo nossos inimigos, que estão fazendo tudo em seu poder para explorar a situação. Mas nós estamos acostumados com essas táticas de diversão. Nós mesmos podemos não só ver a crise, como estamos vivendo a crise há muito tempo.
O que é a crise do marxismo? Um fenômeno que deve ser compreendido em um nível global e histórico, que se refere às dificuldades, contradições e dilemas em que as organizações revolucionárias em luta, baseadas na tradição marxista, estão enfrentando. Não só a unidade do movimento comunista internacional é afetada, e suas velhas formas organizativas destruídas, mas sua própria história é questionada, junto com suas práticas e estratégias tradicionais. Paradoxalmente, no momento da crise mais séria que o imperialismo já passou, no momento em que as lutas da classe trabalhadora e do povo alcançaram níveis sem precedentes, os diferentes partidos comunistas estão todos seguindo caminhos divergentes. O fato que a contradição entre as diferentes estratégias e práticas está tendo efeitos na própria teoria marxista é apenas um aspecto secundário dessa crise profunda.
Alguma coisa que “arrebentou”
No nível mais direto e óbvio, a crise é expressa em frases como aquelas feitas aqui ontem por nossos camaradas, os trabalhadores de Mirafiore. Eles diziam: para muitos de nós, alguma coisa “arrebentou” na história do movimento operário entre seu passado e seu presente, algo que torna incerto seu futuro, pelo menos à primeira vista, e talvez também em um nível mais profundo. Afinal, é fato que não é mais possível hoje, como costumava ser, “integrar” o passado e o presente. “Integrar”, por um lado, outubro de 1917 (o gigante papel desempenhado pela União Soviética no mundo), assim como Stalingrado, com, por outro lado, os horrores do regime stalinista e o sistema opressivo de Brezhnev. Esses mesmos camaradas diziam que, se não é mais possível, como costumava ser, unir passado e presente, é porque não existe mais na cabeça das massas nenhum “ideal conquistado”, nenhuma referência atual para o socialismo. Nos dizem que os países da Europa Oriental são países socialistas, mas que mesmo assim, para nós, socialismo significa algo bem diferente. Esse simples fato, é claro, não passou despercebido: ele levou ao efeito de choque do Vigésimo Congresso do PCUS e foi adotado e expresso nas repetidas declarações dos líderes dos partidos comunistas ocidentais de que “não existe apenas uma forma de socialismo”, que “nós rejeitamos a ideia de modelos”, etc. Isso tudo é verdade, mas não oferece uma resposta para a pergunta postulada pelas massas, pois não se pode esperar compreender a situação atual simplesmente argumentando que existem “diversos caminhos para o socialismo”. Isso porque não se pode evitar, então, a outra questão: o que vai impedir esse “tipo diferente de socialismo”, construído por um outro caminho, de terminar exatamente como são as formas já existentes de socialismo? E a resposta para essa pergunta depende de uma outra: por que e como o socialismo soviético desembocou em Stalin e no regime atual?
Mas essa última questão-chave ainda não foi devidamente respondida. A crise que estamos enfrentando foi agravada por uma circunstância especial: além de algo ter “arrebentado” na história do movimento comunista, além da URSS ter “passado” de Lênin para Stalin e Brezhnev, os próprios partidos comunistas, as organizações da luta de classes que alegam basear-se em Marx, não ofereceram uma resposta para essa história dramática – vinte anos depois do Vigésimo Congresso do Partido Comunista! Ou porque não quiseram ou porque não foram capazes de fazê-lo. E por trás de sua reserva ou suas recusas politicamente motivadas, por trás das frases ridículas que conhecemos bem demais (“o culto da personalidade”, “violações da legalidade socialista”, “o atraso da Rússia”, sem falar em como fomos constantemente assegurados de que “a URSS construiu as fundações para a democracia – só espere um pouco mais e ela irá florescer”), por trás de tudo isso reside algo mais sério: isto é, a dificuldade extrema (todo mundo enfrentando seriamente o problema sabe disso muito bem) e talvez até mesmo, no estado atual de nosso conhecimento teórico, quase uma impossibilidade de fornecer uma explicação marxista realmente satisfatória de uma história que foi, no fim das contas, feita em nome do marxismo! Se essa dificuldade não é um simples mito, isso significa que nós estamos vivendo uma situação que está nos revelando os limites da teoria marxista, e por trás desses limites, algumas dificuldades críticas.
Eu acho que temos que chegar a afirmar que a crise do marxismo não poupou a teoria marxista: ela não se dá fora da esfera teórica, no simples domínio histórico do acaso, de acidentes e dramas. Como marxistas, nós não podemos nos satisfazer com a ideia que a teoria marxista existe em algum outro lugar, em uma forma pura, sem estar envolvida e comprometida com a difícil tarefa das lutas históricas e com seus resultados, com os quais ela se preocupa diretamente, sendo um “guia” para a ação. Seria um tanto idealista, como Marx incessantemente nos alertou, considerar que a teoria marxista é, como teoria, responsável pela história feita em seu nome: não são “ideias”, nem mesmo ideias marxistas, que fazem “história”, assim como não é a “autoconsciência” (a autodenominação de “marxista”) que define um homem ou uma organização. Mas seria igualmente idealista considerar que a teoria marxista não está envolvida com e comprometida pelo teste árduo de uma história em que as ações das organizações da luta de classes inspiradas pelo marxismo ou que se denominam marxistas cumpriram um importante e determinante papel. Um marxista só precisa levar a sério a tese da primazia da prática sobre a teoria para reconhecer que a teoria marxista está realmente envolvida na prática política que ela inspira ou que a utiliza como referência: em suas dimensões estratégicas e organizacionais, em seus objetivos e seus métodos. As formas e os efeitos desse envolvimento necessariamente refletem na teoria, provocando ou revelando conflitos, mudanças, diferenças e desvios: essas formas e esses efeitos têm, eles mesmos, uma dimensão política. É nesse sentido que Fernando Claudin falou, já há oito anos atrás, de uma “crise teórica”, para analisar a crise do movimento comunista internacional, e que Bruno Trentin se referiu, há pouco tempo, a questões organizacionais (a relação entre partidos e sindicatos), afirmando que elas mesmas possuíam significado e importância teórica.
É nesse sentido profundamente político que somos forçados, hoje, pelo que me parece, a falar de uma crise teórica no marxismo, para esclarecer as maneiras em que ela afeta o que é chamado de teoria marxista (e em particular o fato que diversos princípios aparentemente infalíveis da Segunda e Terceira Internacional agora foram questionados). É muito claro que não podemos escapar dos efeitos de choque provocados pela crise do movimento comunista internacional, sejam abertos (a ruptura sino-soviética) ou velados (entre o soviete e os partidos comunistas ocidentais); nem de questões postuladas pelo abandono cerimonial ou silencioso de princípios tão importantes quanto o da “ditadura do proletariado”, sem nenhuma razão política ou teórica demonstrável; nem dos problemas que resultam das perspectivas incertas das lutas atuais. Os “becos sem-saída” políticos, a diversidade nas estratégias, suas contradições, a confusão produzida pelos diferentes modos de falar e nas diferentes referências – tudo isso tem uma importância política evidente, que deve ter um impacto na própria teoria marxista. São apresentados, então, diversos problemas para a teoria marxista, não apenas em relação às contradições da situação histórica atual, mas também à sua particularidade.
Três reações à crise do marxismo
Nessas circunstâncias, se deixarmos de lado a exploração do marxismo por seus inimigos, nós podemos, muito esquematicamente, distinguir três reações à essa crise.
- A primeira reação, característica de certos partidos comunistas, é fechar os olhos para não enxergar e ficar em silêncio: apesar da insatisfação geral que o atinge entre as massas e os jovens da Europa Oriental, o marxismo ainda continua sendo a teoria e ideologia oficial. Oficialmente não há uma crise do marxismo, ela é uma invenção dos inimigos do marxismo. Outros partidos lidam com o problema de maneira pragmática, se distanciam em certos pontos ou, em outros, “abandonam” diversas fórmulas “vergonhosas”, mas sempre mantendo as aparências: eles não chamam a crise pelo seu nome.
- A segunda consiste em absorver o choque da crise, em atravessá-la e sofrer em seu âmago, enquanto, ao mesmo tempo, procura razões genuínas para acreditar no poder do movimento operário e no movimento popular. Nenhum de nós pode evitar completamente essa reação, que é, contudo, acompanhada por muitas dúvidas e questões. Pois não se pode continuar vivendo para sempre sem uma perspectiva e reflexão mínimas sobre um fenômeno histórico de tamanha importância: o poder do movimento operário é uma realidade, isso é verdade, mas não pode sozinho tomar o lugar de uma explicação, perspectiva e distância adequadas.
- O terceiro tipo de reação é precisamente ver a questão com uma perspectiva suficientemente histórica, teórica e política, para tentar descobrir – mesmo que essa tarefa não seja fácil – o caráter, o significado e as implicações da crise. Se tivermos sucesso nessa tarefa, nós podemos, então, mudar nosso discurso e nos erguer a partir de uma longa história. Ao invés de afirmar que “o marxismo está em crise”, nós podemos dizer: “Finalmente a crise do marxismo explodiu! Finalmente ela está escancarada! Finalmente algo vital pode ser liberado nesta crise e por meio dela!”
Esse não é simplesmente um modo paradoxal de apresentar a questão, nem meramente um modo arbitrário de virá-la de ponta-cabeça. Ao usar o termo “finalmente”, quero chamar atenção a um ponto que é, na minha opinião, crucial: que a crise do marxismo não é um fenômeno recente; ela não nasce apenas nos últimos anos, nem na crise do movimento comunista internacional, que se mostrou publicamente com a ruptura sino-soviética e foi aprofundada pelas “diferenças” entre os partidos comunistas ocidentais e o soviético; ela nem mesmo surge do 20o Congresso do PCUS. Mesmo que tenha sido levada a público recentemente, desde que a crise do movimento comunista internacional eclodiu, a crise do marxismo é muito mais antiga.
Uma crise bloqueada
Se a crise explodiu, se agora, depois de um longo processo, se tornou visível, isso é porque ela esteve incubada por muito tempo, dentro de formas que preveniram sua explosão. Sem tentar voltar na história para achar os primeiros passos ou causas dessa crise em um período histórico mais distante, nós podemos dizer que para nós, muito esquematicamente, a crise do marxismo emergiu na década de 1930: ao mesmo tempo que emergia, foi suprimida. Foi na década de 30 que o marxismo – que estava vivendo a partir de suas próprias contradições – ficou bloqueado, preso em uma fórmula “teórica”, em uma linha e em práticas impostas pelo controle histórico do stalinismo. Ao resolver os problemas do marxismo do seu jeito, Stalin impôs “soluções” cujos efeitos eram bloquear a crise que essas próprias soluções provocaram e reforçaram. Ao transgredir o que o marxismo era, mesmo em seu caráter elementar e em suas dificuldades, Stalin efetivamente provocou uma crise séria no marxismo, mas com os mesmos meios ele bloqueou a crise e preveniu que explodisse.
A situação que estamos vivendo hoje possui, assim, esta vantagem: no fim de uma longa e trágica história, a crise, de fato, finalmente, explodiu, e em condições que nos obrigam a enxergar com novos olhos e podem permitir que uma nova vida seja soprada ao marxismo. Claro, nem toda crise contém, em si mesma, a promessa de um novo futuro e libertação, e o mero entendimento da crise não garante que esse futuro chegará algum dia. É por isso que seria incorreto relacionar a “explosão” da crise do marxismo simplesmente com a história dramática que levou ao 20o Congresso do PCUS e à crise do movimento comunista internacional. Para compreender as condições que levaram à “explosão” da crise, à sua transformação em uma força ativa, nós devemos também observar o outro lado da questão: não apenas o que está morrendo, mas o que está emergindo para ocupar seu espaço: o poder de um movimento de massas sem precedentes dos trabalhadores e do povo, que tem à sua disposição novas forças históricas e potencialidades. Se podemos hoje falar da crise do marxismo em termos de uma possível libertação e renovação, é por conta do poder e das capacidades históricas desse movimento de massas. Este movimento, que abriu uma brecha em nossa história fechada, e que, em seus esforços contínuos (as frentes populares, a resistência), tanto em suas vitórias quanto em suas derrotas (Argélia, Vietnã) e nos desafios de 1968 na França, na Tchecoslováquia e em outros lugares do mundo, finalmente varreu o sistema de obstáculos e forneceu ao marxismo uma chance real de libertação.
Mas esses primeiros sinais de libertação também eram um aviso. Nós não podemos nos contentar com um retorno ao passado, às posições políticas que nós consideramos terem sido simplesmente distorcidas ou traídas. A crise em que estamos vivendo nos força a mudar algo na nossa relação com o marxismo e, consequentemente, a mudar algo no próprio marxismo.
Nós não podemos realmente aceitar que tudo está resolvido simplesmente evocando o papel de Stalin. Nós não podemos considerar nossa tradição histórica, política e até mesmo teórica como puramente uma herança, que foi distorcida por um indivíduo chamado Stalin, ou pelo período histórico que ele dominou. Não há uma “pureza” original do marxismo que deve apenas ser redescoberta. Durante todo o período de teste dos anos 1960, quando nós, de formas diferentes, “retornamos aos clássicos”, quando lemos ou relemos Marx, Lênin e Gramsci, tentando achar neles um marxismo vivo, algo que foi expulso pelas fórmulas e práticas adjacentes a Stalin, nós fomos forçados, cada um à sua maneira, mesmo em nossas diferenças, a admitir o óbvio: que a nossa tradição teórica não é “pura”; que, ao contrário da frase apressada de Lênin, o marxismo não é um “bloco de concreto”, mas contém dificuldades, contradições e lacunas, que também cumpriram seu papel na crise, como o fizeram na época da Segunda Internacional, e até mesmo no início da Terceira Internacional (Comunista), enquanto Lênin ainda estava vivo.
As contradições no marxismo
É por isso que fico tentado a afirmar: nós estamos enfrentando uma necessidade vital de revisar de perto certa ideia que formamos, na história e na luta, sobre estes autores, de Marx, de Lênin, de Gramsci e de Mao – uma ideia obviamente baseada na demanda pela unidade ideológica de nossos partidos, uma ideia da qual dependemos por tempo demais, apesar de nossos esforços críticos, e na qual, às vezes, nos agarramos. Nossos autores escolhidos nos forneceram um conjunto de elementos teóricos sem precedentes e inestimável. Mas devemos nos lembrar da frase perfeitamente clara de Lênin: Marx nos deu a “pedra angular”. Nenhum dos clássicos nos deu um todo unificado e terminado, mas um conjunto de obras compondo diversos princípios teóricos sólidos e análises, misturadas com dificuldades, contradições e lacunas. Não há nada de surpreendente nisso. Se eles nos forneceram o início de uma teoria sobre as condições e as formas de luta de classes nas sociedades capitalistas, é um absurdo considerar que esta teoria poderia ter nascido “pura” e completa. Além disso, para um materialista, o que a ideia de uma teoria pura e completa poderia significar? E como poderíamos imaginar que uma teoria das condições e formas da luta de classes, que denuncia a persistência e o peso da ideologia dominante, poderia escapar completamente, desde seus primeiros momentos de vida, dessa mesma ideologia, sem ser marcada por ela de alguma forma, mesmo em sua luta para romper com ela? Como poderíamos imaginar que, em sua história política e ideológica, essa teoria poderia ter escapado de qualquer reflexo ou contágio da ideologia dominante? A ruptura com essa ideologia é uma luta, mas uma luta que nunca chega ao fim – uma verdade que tivemos que pagar com nossa vida para aprendermos. E visto que até mesmo os textos não publicados e as simples notas para estudo pessoal dos autores clássicos estão sendo descobertas, justificando certa ideia “obrigatória” sobre esses autores, sejamos honestos o suficiente para reconhecer que esses homens, que estavam avançando em um território desconhecido, eram – quaisquer suas qualidades – apenas homens: eles estavam procurando e descobrindo, mas também hesitando, expostos aos erros, à constante necessidade de correção e aos equívocos envolvidos em qualquer pesquisa. Não há nada de surpreendente, portanto, no fato de que suas obras são marcadas pelas ideias “do seu tempo”, que elas contêm dificuldades, contradições e lacunas.
Hoje, é muito importante reconhecer que essas dificuldades manifestas, contradições e lacunas realmente existem; conhecê-las profundamente, tanto para analisar suas consequências na nossa própria situação, para esclarecer certos aspectos da crise que estamos vivendo, quanto para reconhecer seu aspecto libertador, para aproveitar a oportunidade histórica que ela nos oferece, se conseguirmos enfrentá-la, pois algumas dessas dificuldades tocam precisamente em pontos vitais da crise atual.
Para esclarecer esse ponto, darei alguns exemplos grosseiros.
Exploração, Estado e Luta de Classes
Nas obras do próprio Marx, em particular em O Capital, existe uma unidade teórica que, como estamos começando a ver claramente, é em grande parte fictícia. Não estou apenas me referindo ao fato de que Marx considerava ser necessário começar (“todo começo é difícil […] em todas as ciências”) com uma análise da mercadoria e, portanto, do valor (que cria diversos problemas), mas aos efeitos desse começo e de uma unidade de pensamento imposta sobre O Capital, que claramente corresponde à certa ideia do próprio Marx em relação ao tipo de unidade que deve ser exposta por uma verdadeira teoria. Um dos mais importantes dentre esses efeitos está conectado com a questão da mais-valia. Quando lemos a Seção 1 do Livro 1 de O Capital, encontramos uma exposição teórica da mais-valia: é uma exposição aritmética, em que a mais-valia é calculável, definida pela diferença (em valor) entre o valor produzido pela força de trabalho, por um lado, e o valor das mercadorias necessárias para a reprodução dessa mesma força de trabalho (salários), por outro. Nessa exposição aritmética da mais-valia, a força de trabalho é pura e simplesmente uma mercadoria. É muito claro que essa exposição aritmética da mais-valia está em conformidade com a ordem de exposição seguida por Marx: ela, portanto, depende de seu “ponto de partida” e de distinções subsequentes (capital constante transferindo parte de seu valor para a mercadoria, capital variável investido na força de trabalho). Mesmo se aceitássemos esse ponto de partida, esse começo, e essas distinções, nós ainda seríamos forçados a notar que a exposição da mais-valia como mera quantidade calculável – que, portanto, ignora completamente as condições de extração de mais-valia (condições de trabalho) e as condições da reprodução da força de trabalho – podem levar a uma tentação muito forte: essa exposição (aritmética) da mais-valia pode ser vista como uma teoria completa da exploração, nos levando a negligenciar as condições de trabalho e de reprodução. Marx fala sobre essas condições, porém em outros capítulos de sua obra, os chamados capítulos “concretos” ou “históricos”, que, na verdade, se localizam fora da ordem de exposição (os capítulos sobre o dia de trabalho, sobre a manufatura e a indústria moderna, sobre a acumulação primitiva, etc.). Isso naturalmente nos leva à questão dos pressupostos e dos conceitos ligados a essa “ordem de exposição”, que produziu certas consequências práticas. Podemos, de fato, questionar seriamente se esse engano relacionado à exposição aritmética da mais-valia, tomada como uma teoria completa da exploração, não constituiu um obstáculo teórico e político para uma compreensão correta sobre as condições e as formas de exploração, na história do movimento operário marxista, e se essa concepção restrita de exploração (como meramente uma quantidade calculável) e da força de trabalho (como mera mercadoria) não contribuiu em parte para uma divisão clássica dos papéis, na luta de classes, entre a luta econômica e a luta política e, assim, a uma concepção restrita de cada forma de luta, que começou a travar, e ainda trava, o alargamento das formas de toda a luta da classe trabalhadora e do povo.
Existem outras dificuldades em Marx, assim como muitos enigmas. Por exemplo, o enigma da filosofia e em particular da dialética, sobre a qual Marx não disse nada a não ser a proposição de algumas fórmulas muito esquemáticas para serem consideradas em sentido literal e muito equívocas para serem pensadas. Há ainda a questão da relação entre a dialética de Marx e de Hegel. Tem muita coisa em jogo nessa questão, apesar de seu caráter aparentemente muito abstrato e filosófico: ela se refere à concepção de necessidade e história, bem como das formas da história (ela tem um sentido e um fim? O colapso do capitalismo é inevitável? etc.), i.e. a concepção de luta de classes e de ação revolucionária. O silêncio de Marx e a dificuldade de reconstituir suas posições filosóficas com base em seus escritos, realmente – com algumas exceções (Lênin, Gramsci) – abriram as portas para o positivismo e o evolucionismo, cujas formas foram fixadas e congeladas por trinta anos pelo capítulo de Stalin sobre “Materialismo Histórico e Dialético” na História do Partido Comunista na União Soviética: Breve Curso.
Outro exemplo. Existem, em Marx e Lenin, duas lacunas teóricas de grande importância: de um lado sobre o Estado, de outro sobre as organizações de luta de classes.
Temos de ser francos: não existe realmente uma “teoria marxista do Estado”. Não porque Marx ou Lênin tentaram desviar da questão, pois ela reside no coração de seu pensamento político. Mas o que encontramos nos autores clássicos está, acima de tudo, na forma do estabelecimento da relação entre luta de classes e dominação de classe (indicações decisivas, mas sem serem analisadas), apenas um aviso contínuo para evitar as concepções burguesas do Estado: ou seja, uma linha de demarcação e definição negativa. Marx e Lênin falam que existem “tipos de Estado”. Mas como o Estado assegura a dominação de classe, como o aparelho de Estado funciona? Nem Marx nem Lênin iniciam a análise dessas questões. Dito isso, algo patético nos atinge quando lemos a fala de Lênin em 11 de julho de 1919, na Universidade Sverdlov, sobre O Estado. Ele insiste: esta é uma questão complicada. De novo e de novo, Lênin repete: o Estado é uma máquina especial, um aparelho especial, continuamente utilizando o termo “especial” para apontar claramente que o Estado não é uma máquina como outras, mas sem nunca ter sucesso em explicar o que “especial” (ou “máquina”, ou “aparelho”) significa aqui. Algo patético nos atinge quando relemos, da mesma forma, as pequenas equações de Gramsci escritas na prisão (Estado = coerção + hegemonia, ditadura + hegemonia, força + consenso), que são a expressão não tanto de uma teoria do Estado, mas uma pesquisa, em termos emprestados da “ciência política” tanto quanto de Lênin, para uma linha política que mira na conquista do poder de Estado pela classe trabalhadora. O pathos de Lênin e Gramsci nasce da sua tentativa de transcender a definição negativa clássica, mas de forma errante e sem sucesso.
Contudo, essa questão do Estado é, hoje, vital para o movimento operário e popular: vital para a compreensão dos países da Europa Oriental onde o Estado, longe de “ir desaparecendo”, está ganhando cada vez mais força por meio da sua fusão com o partido; vital quando é postulada a questão de como as forças do povo irão obter poder e trabalhar em direção a uma transformação democrática do Estado, com seu desaparecimento no horizonte.
Da mesma forma, não é possível encontrar na herança marxista qualquer teoria real das organizações da luta de classes e, acima de tudo, dos partidos políticos e sindicatos. Existem, é claro, argumentos políticos e práticos sobre os partidos e os sindicatos, mas nada que realmente permita-nos apreender seu funcionamento, incluindo as formas de suas falhas. O movimento operário começou, há muito tempo, a se equipar com organizações políticas e sindicais de luta, na base de suas próprias tradições, mas também na base de organizações burguesas já existentes (incluindo, quando necessário, o modelo militar). Essas formas foram conservadas e modificadas: elas possuem uma história inteira, em que sobreviveram. No Oriente, assim como no Ocidente, nós somos confrontados com o grave problema da relação existente entre essas organizações e o Estado: com o problema, no Oriente, da fusão dessas organizações com o Estado, uma fusão aberta; com o problema, no Ocidente, do risco de fusão, porque o Estado burguês nunca para de tentar integrar as organizações de luta de classe da classe trabalhadora em suas próprias operações, frequentemente com sucesso.
Iniciativas de Massa
Mas essas duas “lacunas” na teoria marxista estão imbricadas com questões que são decisivas para nós. Qual é a natureza do Estado, em particular do tipo de Estado encontrado nas sociedades imperialistas atuais? Qual é a natureza, qual é o modo de funcionamento dos partidos políticos e sindicatos? Como podemos apreender agora – para conseguirmos incitar este processo – a necessidade da “destruição” do Estado burguês e preparar o “desaparecimento” do Estado revolucionário? Como podemos rever e modificar a natureza e o funcionamento das organizações da luta de classes? Como podemos transformar a imagem comunista tradicional do partido, seja um “partido da classe trabalhadora” ou um “o partido líder”, como podemos transformar sua ideologia para permitir que ele reconheça na prática a existência de outros partidos e de outros movimentos? E sobretudo – a mais importante das perguntas para o futuro – como podem ser estabelecidas relações com os movimentos de massa que, transcendendo a distinção tradicional entre sindicato e partido, irão permitir o desenvolvimento de iniciativas no seio do povo, que normalmente não cabem na divisão entre as esferas econômicas e políticas (mesmo “em conjunto”)? Porque estamos testemunhando cada vez mais movimentos populares emergindo sozinhos, fora de sindicatos e partidos, trazendo – ou sendo capazes de trazer – algo indispensável à luta. Em suma, como podemos responder adequadamente às demandas e expectativas da massa do povo? Em formas diferentes, negativas ou positivas, de maneira escondida ou escancarada, objetivamente ou subjetivamente, as mesmas questões-chave nos encaram: relacionadas com o Estado, com os sindicatos e com aqueles movimentos e iniciativas de massa. Mas se tratando das respostas a essas perguntas, não temos ninguém em que podemos nos apoiar a não ser nós mesmos.
Essas certamente não são perguntas novas. Marxistas e revolucionários tentaram, no passado, encontrar um caminho para postulá-las em períodos críticos, mas foram esquecidas ou varridas para debaixo do tapete. Ainda assim, hoje elas são postuladas em uma escala sem precedentes e – o mais importante – elas são postuladas na escala das massas, na prática, como vemos na Itália, na Espanha e em outros lugares. Hoje podemos dizer: sem o movimento de massas, sem as iniciativas das massas, nós não seremos capazes de postular abertamente essas perguntas – questões que, por causa desse movimento e dessas iniciativas se tornaram questões políticas cruciais. Assim como não poderíamos postulá-las se a crise do marxismo não tivesse explodido.
Uma Nova Transformação
Nada, reconhecidamente, é vencido antecipadamente; e nada pode ser simplesmente mudado de um dia para o outro. O “bloqueio” da crise do marxismo pode – debaixo de aparências mais ou menos “reconfortantes” – durar um longo tempo ainda neste ou naquele partido, neste ou naquele sindicato. O ponto importante não é que alguns intelectuais do Oriente ou do Ocidente, gritem alarmados: eles podem não obter nenhuma resposta. O ponto importante é que o movimento operário e o movimento popular, mesmo que esteja dividido, mesmo que pareça aqui ou ali terem chegado em um impasse, nunca foram tão fortes, tão ricos em recursos e iniciativas. O ponto importante é que esse movimento é o começo, na prática, mesmo que por meio de hesitações e testes severos, para se tornar consciente do sentido da crise do movimento comunista internacional e da crise do marxismo: estou falando aqui da seriedade dos riscos envolvidos, sobre a profundidade da crise e sobre a oportunidade histórica de libertação que ela representa. O marxismo, em sua história, passou por uma série de crises e transformações. Só precisamos pensar na transformação do marxismo após o colapso da Segunda Internacional, atrelada à “Causa Nacional”. Nós estamos agora, na crise atual, enfrentando uma transformação similar, que já está encontrando suas raízes nas lutas das massas. Ela pode renovar o marxismo, dar uma nova força à sua teoria, modificar sua ideologia, suas organizações e suas práticas, possibilitando um futuro real de revolução social, política e cultural para a classe trabalhadora e todo o povo trabalhador.
Ninguém pode alegar que essa tarefa não é extremamente difícil: mas o ponto essencial é que, apesar de todas as dificuldades envolvidas, é possível.
Notas
[1] [N.T.] Optamos por manter o título da versão francesa (Enfin, le crise du marxisme!), que preserva o tom otimista da versão original italiana (Finalmente qualcosa di vitale si libera dalla crisi e nella crisi del marxismo), ao contrário da tradução inglesa, que se contenta simplesmente com o título “The Crisis of Marxism”. Além disso, o título em francês também é mais conciso do que o original.