As importantes travessuras de Louis Althusser

Por Lara Apolonio Rossetto

(uma contextualização histórica, teórica e política ao texto “Enfim, a crise do marxismo!”)

Louis Althusser (1918 – 1990) foi, e ainda é, um dos teóricos mais polêmicos e odiados na história. Afinal, “[a]penas Althusser poderia se gabar de que, ao final do século vinte, mais havia sido escrito contra ele do que sobre ele: um número impressionante de livros em diversas línguas contém a frase ‘contra Althusser’ no título” (MONTAG, 2013, p.1, tradução nossa). É impressionante não apenas a quantidade de críticas, mas também sua brutalidade: recheadas de uma ira inigualável e uma disposição admirável a destruir seu legado e impedir a disseminação de suas ideias[1]. Nenhum golpe era proibido, e seus críticos não eram comedidos, nem piedosos: as tragédias pessoais da vida do autor eram uma mina de ouro em suas mãos.


Althusser serviu na Segunda Guerra Mundial e foi colocado em um campo de prisioneiros de guerra alemão, onde ficou por mais de quatro anos e meio, até acabar a guerra, em 1945. Com uma saúde mental instável, passando até por terapias de eletrochoque, Althusser ingressou na École Normale Supérieure, onde foi professor de grandes nomes da intelectualidade francesa, participando ativamente do debate com seus colegas e alunos, quando não estava internado na enfermaria da ENS. Tragicamente, a biografia conturbada de Althusser atingiu seu ápice em 16 de novembro de 1980, quando estrangulou sua esposa, Hélène Rytman.

Era nove horas da manhã quando Althusser gritava desesperado de pijama e roupão pelos corredores da ENS, dizendo que tinha matado sua mulher. Por conta de seu histórico, foi levado imediatamente ao hospital psiquiátrico de Saint-Anne, onde já havia sido paciente. O juiz designado ao caso se dirigiu ao hospital e foi alertado que “Althusser estava em um Estado de completo colapso mental e que ele era incapaz de compreender o procedimento legal” (JOHNSON apud ALTHUSSER, 1993, p.vi, tradução e grifos nossos). Com base no relatório de três psiquiatras, o processo foi encerrado sem um julgamento. Althusser permaneceu internado até 1983. Talvez em uma tentativa de lidar com o acontecido, Althusser escreveu uma autobiografia intitulada “O Futuro Dura Muito Tempo”, relembrando os momentos imediatamente após a morte de sua companheira, assim como sua vida e obra, frequentemente descartando tudo o que escrevera[2]. Nada disso passou despercebido por seus críticos:

Seguindo a linha da menor resistência, [seus] críticos podiam citar o trágico “Caso de Althusser”, louco e assassino, como ele mesmo se definiu, usando suas próprias palavras para provar sua obra como impostora ou fracassada, efetivamente tomando o partido de Althusser contra ele mesmo. E ainda assim, tais figuras, desde Mark Lilla – que escreveu uma análise da biografia de Althusser intitulada “Marx e Assassinato” – até Christopher Hitchens – “em 1980, Althusser já tinha sido exposto como a completa fraude que ele mesmo, posteriormente, confessou ser” – e Tony Judt – que exibia uma ansiedade muito particular com relação a Althusser, para quem devotou um capítulo inteiro de seu livro, amplamente analisado e aclamado, chamado “Pensando o século XX”– todos demonstraram de algum modo as qualidades “espectrais” dos principais textos de Althusser, o espírito que nunca realmente descansou em paz e sobreviveu até mesmo às suas próprias tentativas, sempre ambivalentes e contraditórias, de negar e desfazer o que ele mesmo havia escrito. (MONTAG, 2013, p.1-2, tradução e grifos nossos).

Essa reação assustadora à obra de Althusser não é um ataque infundado e inexplicável, nem resultado de uma crueldade humana avassaladora que escolheu atacar o indefeso e vulnerável pensador francês. Como sugere Warren Montag, os críticos de Althusser (incluindo ele mesmo) “são testemunha do poder extraordinário de sua obra” (MONTAG, 2013, p.2, tradução nossa), pois ao tentarem desesperada e continuamente destruir o legado althusseriano, demonstraram sua força e acabaram, paradoxalmente, mantendo sua obra viva.

Não vitimizemos Althusser por suas virtudes. Nenhuma crítica é acidental, mas, como ele mesmo sugeriu, é mesmo um efeito de sua própria obra – suas provocações nunca foram tímidas: ele afirmava que o marxismo estava em crise e não oferecia as ferramentas necessárias para resolvê-la, segundo ele, uma teoria do Estado e da prática política. Essa tese foi defendida em seu polêmico discurso “a crise do marxismo”, de 1977, realizado na conferência do Il Manifesto em Veneza, a convite de Rossana Rossanda. A reação foi monumental: Perry Anderson (cuja interpretação virou cânone nos países anglófonos[3]) escreveu em “A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo”, que a declaração de Althusser…

Não foi tanto um repúdio ou um abandono total do marxismo, mas antes sua diluição ou diminuição, permeada por um ceticismo crescente quanto à própria ideia de uma ruptura revolucionária com o capitalismo. Sintomática dessa corrente foi a crescente distância de Althusser em relação à herança política do materialismo histórico como tal, expressa na recusa em conhecer aí uma teoria do Estado ou uma política, indicando assim uma desmoralização radical de alguém cujas asserções sobre a supremacia científica do marxismo tinham sido mais presunçosas e categóricas do que as de qualquer outro teórico de seu tempo. Em breve, seria Althusser a propagar a noção de uma “crise do marxismo” (ANDERSON, 1987, p.34-35)

Poderíamos estender para Anderson a crítica de Althusser à reação de certos partidos comunistas: “fechar os olhos para não enxergar e ficar em silêncio” (ALTHUSSER, 2022), afirmando que “[o]ficialmente não há nenhuma crise do marxismo, isso é uma invenção dos inimigos do marxismo” (ALTHUSSER, 2022). Ou ainda, “‘abandonam’ diversas fórmulas ‘vergonhosas’, mas sempre mantendo as aparências: eles não chamam a crise pelo seu nome” (ALTHUSSER, 2022). Como acusou Rossana Rossanda, os grupos da New Left, que Anderson fazia parte, não ousaram lidar com a crise “por medo de uma possível desmobilização se eles parassem de cultivar mitos, e por conta da tentação de acreditar que tudo seria resultado de um ‘erro’ e poderia ser consertado a partir dos princípios ‘corretos’” (ROSSANDA apud HAIDER, 2017, p.10, tradução nossa). Intocável e perfeito, o marxismo seria a única verdade (pronta, completa, perfeita) capaz de, sozinho e sem grandes revisões, resolver qualquer problema. Mas “[s]eria um tanto idealista, como Marx incessantemente nos alertou, considerar que a teoria marxista é, como teoria, responsável pela história feita em seu nome: não são ‘ideias’, nem mesmo ideias marxistas, que fazem ‘história’” (ALTHUSSER, 2022).

Paradoxalmente, o medo de Anderson revela a crise a que Althusser se referia:

Althusser reconhece que a crise do marxismo se deflagra com o advento do stalinismo nos anos 1930, mas consegue ser abafada pela política stalinista até o momento em que eclodem várias lutas que resultam na cisão sino-soviética, nas lutas de libertação nacional no Vietnã e na Argélia, no maio francês de 1968, na crise dos partidos e organizações comunistas, na emergência do eurocomunismo, na crise do imperialismo (MARTUSCELLI, 2014, p.161).

Desde o stalinismo, passando por sua condenação pelo Vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética e a consequente ruptura entre este último e o Partido Comunista Chinês, as cisões dentro do movimento comunista faziam com que não houvesse mais um horizonte político claro, um modelo de socialismo a ser seguido, para ser o apoio teórico e prático sob o qual a revolução internacional se alçaria. Apesar do reconhecimento estratégico de que: “essa crise está escancarada, ou seja, visível a todos, incluindo nossos inimigos, que estão fazendo tudo o que podem para se aproveitar da situação” (ALTHUSSER, 2022), “[e]stá em jogo não apenas uma questão estratégica mas ‘a própria ideia de socialismo, não como uma aspiração genérica, mas como uma teoria da sociedade, um modo diferente de organização da existência humana’.” (HAIDER, 2017, p.10, tradução nossa).

Nos dizem que os países da Europa Oriental são países socialistas, mas que mesmo assim, para nós, socialismo significa algo bem diferente […] que “não existe apenas uma forma de socialismo”, que “nós rejeitamos a ideia de modelos”, etc. Isso tudo é verdade, mas não oferece uma resposta para a pergunta postulada pelas massas, pois não se pode esperar compreender a situação atual simplesmente argumentando que existem “diversos caminhos para o socialismo”[4]. Isso porque não se pode evitar, então, a outra questão: o que vai impedir esse “tipo diferente de socialismo”, construído por um outro caminho, de terminar exatamente como são as formas já existentes de socialismo? E a resposta para essa pergunta depende de uma outra: por que e como o socialismo soviético desembocou em Stalin e no regime atual? (ALTHUSSER, 2022).

Mesmo com questões tão urgentes, “os próprios partidos comunistas […] não ofereceram uma resposta para essa história dramática – vinte anos depois do Vigésimo Congresso do Partido Comunista!” (ALTHUSSER, 2022). A grande dúvida: “seria ele [o marxismo] capaz de responder essas questões ou teria ele se ossificado em uma doutrina que seus seguidores consideravam completa em si mesma?” (HAIDER, 2017, p.10, tradução nossa).

Assim, enquanto pensadores como Anderson ignoravam a crise do marxismo, tal crise era vivida pelo povo, que se dispersava, se debatia e se dilacerava em busca de uma resposta (teórico-prática) adequada, que ainda não existia e que, segundo Althusser, deveria ser construída. Como afirmou Rossanda, “A crise vai além do domínio puramente político e entra no campo da própria teoria. É uma crise do marxismo, da qual os noveaux philosophes são a caricatura, mas que é vivenciada pelas imensas massas como uma realidade não reconhecida” (ROSSANDA apud HAIDER, 2017, p.10, tradução e grifos nossos). Sendo um “guia para a ação”, quando o marxismo não oferece uma resposta teórica à altura dos problemas que nos assolam, a luta política do povo é “travada” e as massas tateiam no escuro sem uma ferramenta capaz de ajudá-las a conquistar suas demandas por libertação.

Todavia, a estratégia defensiva de Anderson não era fruto de uma falha de caráter, de uma covardia frente à tarefa revolucionária ou de uma incapacidade cognitiva de compreender a crise. Sua apreensão se baseava em uma realidade cruel: a “dificuldade extrema […], quase uma impossibilidade de fornecer uma explicação marxista realmente satisfatória de uma história que foi, no fim das contas, feita em nome do marxismo!” (ALTHUSSER, 2022). A implicação desse reconhecimento é que “[s]e essa dificuldade não é um simples mito, isso significa que nós estamos vivendo uma situação que está nos revelando os limites da teoria marxista, e por trás desses limites, algumas dificuldades críticas” (ALTHUSSER, 2022).

Ao contrário de Anderson, Althusser afirma, então, que para desenvolver o marxismo é necessário não o defender incondicionalmente de qualquer crítica, mas encontrar dentro do próprio marxismo suas lacunas, faltas, falhas, silêncios, impasses, contradições e até mesmo as infiltrações da ideologia burguesa que se escondem em seu âmago.

[…] para um materialista, o que a ideia de uma teoria pura e completa poderia significar? E como poderíamos imaginar que uma teoria das condições e formas da luta de classes, que denuncia a persistência e o peso da ideologia dominante, poderia escapar completamente, desde seus primeiros momentos de vida, dessa mesma ideologia, sem ser marcada por ela de alguma forma, mesmo em sua luta para romper com ela? Como poderíamos imaginar que, em sua história política e ideológica, essa teoria poderia ter escapado de qualquer reflexo ou contágio da ideologia dominante? […] [S]ejamos honestos o suficiente para reconhecer que esses homens [os clássicos do marxismo], que estavam avançando em um território desconhecido, eram – quaisquer suas qualidades – apenas homens: eles estavam procurando e descobrindo, mas também hesitando, expostos aos erros, à constante necessidade de correção e aos equívocos envolvidos em qualquer pesquisa. (ALTHUSSER, 2022).

A travessura althusseriana continua: além de declarar a insuficiência do marxismo para resolver sua crise, se propondo a fazer por Marx o que ele não fez, afirmava que, para isso, era preciso reconhecer a ideologia presente em Marx. Tal reconhecimento implicava na escolha do Marx Maduro, o “comunista endurecido pela batalha” e “cientista da luta de classes” (HAIDER, 2012, p.3, tradução nossa), em detrimento do Jovem Marx, o “prodígio entusiasmado que se perdeu nas nuvens da filosofia clássica” (ibid., p.3, tradução nossa), pois apenas o segundo Marx era realmente marxista (e produziu ciência, não ideologia) e “pensava nos termos de um modo de produção ancorado na luta antagônica entre classes” (ibid., p.3, tradução nossa).

Mas existiam concepções que faziam o oposto: enquanto alguns afirmavam que a obra de Marx seria homogênea, unitária e harmoniosa, compreendendo seus conceitos de maturidade como uma continuação das noções de sua juventude[5]; outros escolhiam abertamente o Jovem Marx, considerado um filósofo virtuoso, em detrimento do Marx Maduro, considerado um herege contra si mesmo (blasfemando sua juventude).

Filósofos, ideólogos, teóricos, todos se lançaram em uma gigantesca empreitada de criticismo e conversão: deixe que Marx seja restaurado à sua origem, deixe-o admitir, finalmente, que dentro dele, o homem maduro é apenas o jovem disfarçado. Ou, se ele teimar e insistir em sua idade, deixe-o admitir os seus pecados de maturidade, deixe-o reconhecer que ele sacrificou a filosofia à economia, a ética à ciência, o homem à história. Seu consentimento ou repúdio pouco importam, pois sua verdade, toda sua herança, tudo que ajuda os homens que somos a viver e pensar, está contido nessas poucas obras de juventude. Então esses generosos críticos nos deixam com uma única escolha: nós devemos admitir que O Capital (e o ‘marxismo maduro’ em geral) é ou uma expressão da filosofia do Jovem Marx, ou sua traição (ALTHUSSER, 1985, p.51-52, tradução nossa).

Abertamente ou não, a escolha do Jovem Marx é sinônimo do abandono do Marx Maduro, pois acaba excluindo a novidade do pensamento marxista: considera-se que, desde o início, Marx era Marx – que toda sua caminhada teórica foi apenas um processo de desdobramento do núcleo de seu pensamento, que já existia em germe no cerne do seu ser. Assim, vários pensadores partiam do pressuposto que em um desenvolvimento puramente teórico, combinando as obras de outros autores, percebendo relações inéditas entre eles e desenvolvendo suas teorias, Marx se aproximava cada vez mais da verdade.

Essa visão da obra marxiana preserva justamente as concepções ideológicas com as quais Marx rompeu abertamente: Hegel e Feuerbach. O grande problema teórico que o diferencia desses autores é sua compreensão de “história”, com reflexos diretos na realidade, pois está conectado com nossa imaginação política (a negação versus o reconhecimento da possibilidade da revolução; o abandono versus a manutenção de um horizonte revolucionário) bem como nossa prática política (uma prática “reformista” – que se baseia na ideia de uma transição ao socialismo por meio do alargamento e aprofundamento do capitalismo e / ou da democracia burguesa, agindo dentro dos aparelhos de Estado – versus uma prática revolucionária – que se baseia na ideia de que só é possível construir o comunismo a partir de um rompimento com a institucionalidade burguesa e da destruição do capitalismo, baseando-se em uma política de massas que se apoia na força do povo, não no Estado burguês).

Hegel (e Feuerbach, que não rompeu com seu antigo mestre como pretendia) compreendia que a história tinha apenas um centro que a tudo determinava. Assim, o processo histórico teria um desenvolvimento contínuo e linear, no qual uma força motriz (a “Ideia”) realiza seu objetivo último. Essa força seria sua única causa que, em um movimento dialético (em que o “Espírito” se põe e nega a si mesmo), se desenvolve até se realizar completamente. Esse movimento se dá, então, a partir de uma única contradição, a qual todo o processo histórico pode ser reduzido.

Assim, se você recortar qualquer “fatia” do processo histórico, não importa qual seja, todas consistirão do mesmo “material”, feitas com os mesmos “ingredientes”, partes do mesmo “bolo”, ou seja, todas serão expressões da força motriz que guia todo o processo histórico. Dessa forma, todos os diferentes povos em diferentes períodos e partes do globo são versões atualizadas de uma mesma essência, fazendo com que todas as suas especificidades, toda a complexidade histórica, seja apenas “cobertura”, “granulado”, “enfeites” acidentais que “cobrem” a essência que desenvolve a história. Ainda assim, em toda “fatia”, mesmo que com diferentes “cores” e “sabores”, encontramos o mesmo “bolo”.

Deixando de lado nossa metáfora gastronômica, podemos afirmar, então, que a redução da história a uma essência interior faz com que “todos os elementos que fazem a vida concreta de um mundo histórico (instituições econômicas, sociais, políticas, jurídicas, costumes, moral, arte, religião, filosofia, até os acontecimentos históricos: guerras, batalhas, derrotas, etc.)” sejam reduzidos “a um princípio de unidade interna” (ALTHUSSER, 2015, p.81).

Apesar de Marx ter definitivamente rompido com Hegel em suas obras de maturidade, a partir do resgate do Jovem Marx, a concepção teleológica ainda subsiste no movimento comunista, por meio da famosa “inversão de Hegel”, que não nos faz chegar em Marx, mas no mesmo Hegel, plantando bananeira: ele apenas ganha sua versão economicista e tecnicista.

Levemos então as coisas ao extremo, quase à caricatura. […] Enquanto em Hegel o político-ideológico é a essência do econômico, em Marx seria o econômico que faria toda a essência do político-ideológico. O político, o ideológico não seriam senão o puro fenômeno econômico, que seria a verdade deles. O princípio “puro” da consciência […], princípio interno simples que, em Hegel, é princípio de inteligibilidade de todas as determinações de um povo histórico, teria sido assim substituído por um outro princípio simples, seu contrário: a vida material, a economia – princípio simples que se torna, por sua vez, o único princípio de inteligibilidade universal de todas as determinações de um povo histórico. […] No horizonte dessa tentação temos o equivalente exato da dialética hegeliana – com a pequena diferença de que não se trata mais de engendrar os momentos sucessivos da Ideia, mas os momentos sucessivos da Economia, em virtude do mesmo princípio da contradição interna. Essa tentativa acaba pela redução radical da dialética da história à dialética geradora dos modos de produção sucessivos, ou seja, no limite, das diferentes técnicas de produção. Essas tentações têm, na história do marxismo, nomes próprios: economicismo, e mesmo tecnologismo (ALTHUSSER, 1999a, p.84-85).

Se o desenvolvimento da economia/da tecnologia rege o processo histórico e “cria”, dependendo de suas exigências, as relações de produção correspondentes, então as “relações de produção” são entendidas como algo completamente determinado economicamente e, portanto, sem nenhuma referência à sua construção no processo histórico real. Assim, ao considerar-se o “modo de produção” apenas a partir de suas “leis econômicas”, todas as condições materiais concretas são descartadas, assim como o eram no esquema hegeliano. E se a dialética se resume ao desenvolvimento espontâneo das forças produtivas, “pulando” de um modo de produção para outro, então a peça-chave da teoria marxista também se torna irrelevante: some a luta de classes. Na tentativa de “virar Hegel de ponta cabeça” para deixá-lo de pé, acabamos nos apoiando sobre nossas cabeças. E Hegel segue firme em sua bananeira.

Apaga-se a luta porque o destino da história já foi traçado, porque o futuro está pressuposto na “origem”, na força motriz (seja ela “Idéia” ou “economia”) que desenvolve consigo a história. Em Hegel, essa ideia é clara: nem a Revolução Francesa, uma luta que, como todas as outras, se constrói ao custo de muito esforço, organização e guerra, não foi senão uma confirmação de um processo inevitável, que já estava em curso. Afinal, ela “não fez outra coisa senão ‘destruir aquilo que em si mesmo já estava destruído’” (LOSURDO, 2019, p.68).

Como demonstrou Engels, para Hegel “[a] monarquia francesa tinha-se tornado, em 1789, tão irreal, tão desprovida de necessidade, tão irracional, que teve que ser destruída pela grande revolução […]. Nesse caso, portanto, a monarquia era o irreal, e a revolução, o real (ENGELS apud LOSURDO, 2019, p.68, grifos nossos). O “real” é o movimento da essência em seu processo dialético (a hegeliana, não esqueçamos), não os “acidentes” da conjuntura, sendo impossível reverter esse processo, sempre já em curso apesar de nós: uma vez que o desenvolvimento da “essência” que move a história se encaminha para uma mudança, nada pode pará-lo. Tentar reivindicar tal reversão seria exigir “que o presente se transforme no passado, e a realidade, na irrealidade” (HEGEL apud LOSURDO, 2019, p.65).

E como seria diferente? Se o desenvolvimento da história é progressivo, com uma única causa, então o passado sempre é superado, o presente está sempre em processo de superação e o futuro (contido na contradição essencial) está sempre pressuposto no próprio presente. Assim, “o passado nunca é opaco nem obstáculo. Ele é sempre digestível, porque digerido de antemão. […] É que seu passado jamais é outra coisa senão ele mesmo” (ALTHUSSER, 2015, p.90-91).

Mas a história não tem nenhuma pretensão de se conformar ao esquema hegeliano: o problema que estava sendo enfrentado durante a crise do movimento comunista internacional era justamente o da regressão dos países socialistas ao capitalismo. Esta era a tese da Revolução Cultural Chinesa:

[…] os países socialistas constantemente são confrontados com uma alternativa entre “dois caminhos” […]: o caminho revolucionário, que nos leva além dos resultados obtidos, em direção à consolidação e ao desenvolvimento do socialismo e, então, em direção à passagem ao comunismo; o caminho regressivo, que cai novamente para o lado dos resultados obtidos, em direção à neutralização e, então, à utilização política, dominação econômica e “digestão” de um país socialista pelo imperialismo (ALTHUSSER, 2010, p.4-6, tradução e grifos nossos).

E se, dentro da dialética hegeliana, é impossível imaginar uma regressão (pois o passado é sempre completamente “superado”), então agarrar-se aos textos de juventude de Marx significava manter-se em uma perspectiva teórica que não fornecia as ferramentas necessárias para compreender a história. E quando não compreendemos a história, como podemos pretender transformá-la? Quando nos mantemos em um esquema teleológico, sempre nos surpreendemos ao encontrar a “desrazão” na história, ficando paralisados em nosso estado de choque.

Frente a tamanho imobilismo, a resposta tanto dos filósofos alemães da época de Marx (incluindo ele próprio, em sua juventude) quanto dos intelectuais marxistas da época de Althusser, foi a mesma: coloca-se agora, no centro da história, o homem. Todo o processo histórico é, então, o processo de desenvolvimento de uma outra essência, a essência humana. Chegamos (como Marx) em Feuerbach: o processo histórico é movido pelo processo de alienação da essência humana. Segundo o autor, o Homem projeta sua Essência sobre o mundo mas, nesse processo, aliena-se e percebe sua relação com o mundo de forma invertida. No exemplo da religião, o Homem cria Deus, mas acredita que foi Deus que criou o Homem.

Feuerbach gostava de dizer que era um ‘comunista’ (o reino do amor entre os homens, reconciliados entre si porque reconciliados com sua Essência). Ele parecia fornecer aos Jovens Hegelianos tudo o que precisavam para fugir da encruzilhada filosófica na qual a história os havia aprisionado, oferecendo-lhes uma teoria que explicava a razão para a existência da Desrazão […]. Ele lhes ofereceu, como mágica, um controle sobre a Desrazão existente, demonstrando sua necessidade como a Essência alienada do Homem. Em um tom profético e patético, ele anunciava a Nova Era da Liberdade e da Irmandade Humana (ALTHUSSER, 2003, p.243-244, tradução e grifos nossos).

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx ainda é feuerbachiano: no processo de produção, o homem aliena sua essência a partir do trabalho e, com o advento da propriedade privada, essa essência é apropriada por um outro alguém. Consequentemente, tal como a afirmação de Feuerbach de que o cristianismo teria sido um passo necessário para recuperar nossa Essência e chegar ao fim último da história, Marx compreende a alienação da Essência Humana por meio da propriedade privada como um passo necessário para que essa essência seja finalmente realizada. Se isso é verdade, então o comunismo precisa do capitalismo, pois é o próximo passo de seu desenvolvimento. Assim, devemos esperar a história chegar ao momento que levará (inevitavelmente) ao comunismo, onde o homem se reconciliará com sua essência e, sem alienação, chegaremos ao seu fim. “Para que o indivíduo seja afinal livre, para que a revolução comunista possa liberá-lo, é preciso todo o trabalho da História, isto é, todo o trabalho do processo de alienação” (ALTHUSSER, 1999a, p.40, grifos nossos). Partindo dessa ideia, temos a interpretação economicista de que é necessário esperar o desenvolvimento avançado das forças produtivas para que, só então, a revolução seja possível.

Se Lenin e Mao tivessem tomado ao pé da letra, nem que fosse por um instante, [essa] tese […] como é que Lenin e Mao teriam conseguido […] colocar-se à frente do Partido das Massas e fazer triunfar a Revolução socialista? Essa é a própria tese de Kautsky contra Lenin, acusando-o de ter ‘feito a Revolução cedo demais’ em um país atrasado […]. E o que dizer, então, da China? No momento de sua Revolução de 1949, o desenvolvimento de suas forças produtivas se encontrava abaixo das forças produtivas russas de 1917. Se Kautsky estivesse vivo, teria vituperado ainda mais o ‘putschismo-voluntarismo’ de Mao…” (ALTHUSSER, 1999b, p.234).

Mas a revolução comunista não só se instalou na União Soviética – mesmo sendo o país mais “atrasado” de toda a Europa (sem sequer ter passado por uma revolução burguesa) – como mostrou que, mesmo com a revolução, o reino da paz e da fraternidade não chegou. O Estado não foi eliminado e o capitalismo sobrevivia no seio de uma sociedade socialista. O que fazer? A não-resposta era ensurdecedora: nada. A liberdade do homem está chegando, é só esperar.

A teleologia do processo histórico nos faz acreditar que só existem duas possibilidades: o futuro está garantido ou contra, ou a favor de nós. Assim, quando a história mais se apresenta como tragédia, ela é reafirmada como romance: mesmo em meio a uma crise profunda no movimento comunista, reafirma-se que não há crise nenhuma; mesmo quando os países socialistas não sabiam como enfrentar o risco iminente de regressão ao capitalismo, depois tanta luta, os partidos comunistas se recusam a enfrentar o problema e tentam exorcizar os obstáculos evocando o nome de Stalin. E se Stalin é o problema, não há crise alguma: Stalin está morto.

Desse modo, o processo histórico não é explicado, mas simplesmente justificado. E não há nada a fazer: apenas esperar. Esperar para que o “fim da história” chegue logo, que o juízo final esteja próximo para instaurar a paz eterna. Esperar que o fim realmente chegue e que ele seja realmente bom. Esperar que a história seja um romance (em que o herói, sujeito da história, o homem, é vitorioso e permite que inauguremos nosso paraíso na terra) e não uma tragédia (em que tudo termina pior do que era antes, e não há nada que possamos fazer).

A garantia de que alcançaremos o socialismo (e que ele se manterá vitorioso, afinal, a revolução nada mais é do que a destruição daquilo que em si mesmo já estava destruído, o próximo passo do desenvolvimento histórico, a comprovação de um processo inevitável que se desenrola apesar dela) e de que estamos sempre progredindo, é fruto de uma “dialética do conforto histórico”, que nega as “sobrevivências” do passado como se fossem apenas “sombras”, destituídas de “realidade” e não constituíssem ameaça alguma. É a dialética que pretende “exorcizar” os problemas da história com suas preces. Contudo, quando saímos do campo religioso, de que adianta um exorcismo?

E o fato que se pretende exorcizar é que “o passado aí não tem nada de uma sombra […], mas é uma realidade estruturada terrivelmente positiva e ativa, como são, para o operário miserável de que fala Marx, o frio, a fome e a noite” (ALTHUSSER, 2015, p.91). O suposto “passado” superado teve tanta força que acabou com uma era de revoluções pelo mundo todo que, apoiadas principalmente pela União Soviética[6], conseguiram não apenas instaurar o socialismo, mas verdadeiramente ameaçar o imperialismo americano e derrotar o colonialismo.

Este era o problema encoberto pelo “culto da personalidade”, pela oposição entre “totalitarismo” e “democracia”, pelo foco na “desumanidade” stalinista para afirmar a necessidade de recuperar o “homem”: a “sobrevivência” do capitalismo nos países socialistas por meio da manutenção de seu mecanismo de reprodução – os aparelhos ideológicos de Estado. É com essa preocupação que Althusser desenvolve seu conceito mais famoso.

Após Stalin, atualmente, na URSS, em que situação se encontram os Sovietes, os sindicatos e o sistema escolar proletário? Se Stalin negligenciou tais questões, como parece ser comprovado por numerosos efeitos (justamente os efeitos do ‘culto da personalidade’), será que depois essas questões foram reexaminadas a fundo? E para avançar até o extremo de nossa preocupação, não será da não solução ou da ‘meia-solução’ dessas questões que depende a explicação de uma grande parte dos ‘princípios’ que, atualmente, comandam a política soviética […]? (ALTHUSSER, 1999b, p.118, grifos nossos).

Renegado, o problema não fora superado: os aparelhos ideológicos que continuavam reproduzindo ideologia burguesa dentro dos países socialistas – e “puxavam-lhes” para o “caminho do capitalismo” – também exerciam sua força nos países não revolucionários, se apresentando como os únicos meios possíveis para a prática política. Assim como Kautsky considerava que o comunismo seria possível por meio do desenvolvimento do capitalismo, os contemporâneos de Althusser (com destaque ao “eurocomunismo”) acreditavam que o “éden comunista” (o “fim da história”, plenamente “democrático”, o reino da liberdade, fraternidade e igualdade) chegaria por meio do desenvolvimento completo da democracia burguesa.

Portanto, a preocupação althusseriana com as “sobrevivências” do capitalismo nos países socialistas só faz sentido se sairmos completamente de uma perspectiva teleológica da história. Althusser insistia que a dialética marxista era sobredeterminada: na verdade, há uma unidade contraditória composta por diversas contradições, cujas naturezas são completamente diferentes e nada têm a ver umas com as outras. Ou seja, não se trata mais de uma única contradição, de uma única força motriz, mas “entram em jogo, no mesmo jogo, uma prodigiosa acumulação de ‘contradições’ das quais algumas são radicalmente heterogêneas e não têm todas a mesma origem, nem o mesmo sentido, nem o mesmo nível e lugar de aplicação, e que, no entanto, ‘se fundem’ numa unidade de ruptura” (ALTHUSSER, 2015, p.78) e, assim, “não é mais possível falar da única virtude simples da ‘contradição’ geral” (ibid., p.78).

Emprestando um conceito da psicanálise (sobredeterminação) e conectando-o com o conceito leninista de “elo mais fraco”, o autor ilustra a dialética marxista em uma análise das condições que possibilitaram a Revolução Russa. Resumidamente, a tese de Althusser é que:

A desigualdade do desenvolvimento do capitalismo desembocou, através da guerra de 1914, na Revolução Russa porque a Rússia era, no período revolucionário aberto diante da humanidade, o elo mais fraco da corrente dos Estados imperialistas: porque ela acumulava a maior soma de contradições históricas então possível; porque era, ao mesmo tempo, a nação mais atrasada e a mais avançada, contradição gigantesca que suas classes dominantes, divididas entre si, não podiam ignorar, mas não podiam resolver. Noutros termos, a Rússia estava numa revolução burguesa em atraso na véspera de uma revolução proletária, grávida então de duas revoluções, incapaz, mesmo adiando uma, de conter a outra. (ALTHUSSER, 2015, p.76, grifos nossos).

Opondo-se à tese kautskista, para Althusser a Revolução Russa só ocorreu porque o país ainda não era “plenamente capitalista”, porque ele era recheado de inúmeras contradições, muito além da contradição clássica Capital-Trabalho. Assim, se todo período histórico é formado (como a Rússia revolucionária) por diversas contradições, completamente diferentes, que se sobredeterminam de modo particular à cada época, então toda situação histórica é uma situação excepcional: agora, se cortarmos uma “fatia histórica”, não encontraremos mais apenas partes de (um mesmo) bolo, mas, de uma só vez, fatias de empadão, bifes inteiros, bichos de pelúcia, peças de automóveis e estruturas de concreto.

Ora, justamente todos os textos políticos e históricos importantes de Marx e Engels nesse período oferecem-nos a matéria de uma primeira reflexão sobre as assim chamadas “exceções”. Depreende-se a ideia fundamental de que a contradição Capital-Trabalho nunca é simples, mas que ela é sempre especificada pelas formas e pelas circunstâncias históricas concretas nas quais se exerce. Especificada pelas formas de superestrutura (o Estado, a ideologia dominante, a religião, os movimentos políticos organizados, etc.); especificada pela situação histórica interna e externa, que a determina, em função do passado nacional por um lado (revolução burguesa realizada ou “recolhida”, exploração feudal total ou parcialmente eliminada, ou não, “costumes” locais, tradições nacionais específicas, até mesmo “estilo próprio” das lutas ou do comportamento político, etc.), e do contexto mundial existente, por outro lado (o que aí domina: concorrência das nações capitalistas, ou “internacionalismo imperialista”, ou competição no seio do imperialismo, etc.). (ALTHUSSER, 2015, p.82-83).

Ao afirmar que sempre estamos na exceção, Althusser elimina a “regra transcendental” que arrastaria a história consigo, independente das condições materiais de cada formação social. A realidade só pode ser entendida na especificidade dessas condições, através das contradições particulares e heterogêneas que se condensam e se sobredeterminam. Se a “regra” é que sempre trabalhamos com a exceção, então só é possível entender a prática a partir da prática, sendo incabível reduzi-la ao desenvolvimento de um conceito.

Mas há ainda algo mais relevante na asserção de Althusser: ao analisarmos as diferentes formações sociais em sua materialidade, consideramos as particularidades (1) de seu funcionamento econômico e, portanto, as divisões internas à classe burguesa e trabalhadora; (2) das concepções ideológicas sustentadas por formas organizacionais específicas, isto é, dos mecanismos de dominação e sua capacidade de dividir os trabalhadores e desmobilizá-los, bem como os movimentos populares que resistem a esses mecanismos; (3) do funcionamento do Estado e, assim, tanto das organizações que se aliam quanto as que se opõem às classes que detém o poder político – recuperamos, finalmente, a luta de classes. E se a história não possui um fim pré-determinado, se ela não se desenvolve apesar da materialidade, mas dentro das condições históricas concretas de cada período e cada local, determinadas pela luta de classes, então seu destino está em aberto e só será definido por meio da luta. O rompimento de Marx com seus antepassados possibilita a própria noção de revolução: Marx inaugura o “continente da história” não apenas para a investigação, mas para a disputa, oferecendo uma teoria que possibilita ao povo conceber seu lugar na história e, assim, uma ferramenta para que ele entenda seu contexto para que possa mudá-lo. A tese onze de Marx não poderia ser mais viva.

Não podemos nos assustar ao nos depararmos com a história, pois já fomos apresentados a ela: se o marxismo se baseia na investigação de suas inúmeras contradições, então já fizemos as pazes com suas desrazões que, desde Marx, não são uma assombração que amaldiçoa a existência humana, mas parte dela. Ele nos ofereceu ferramentas para trabalharmos (teórica e praticamente) com a história. Não devemos fugir dela, mas entendê-la e transformá-la.

É apenas por meio desse movimento que podemos desenvolver a teoria marxista: Althusser percebe os problemas teóricos do modelo da dialética hegeliana (que sobrevivia no Jovem Marx) porque ele é testemunha de suas implicações políticas. Os efeitos práticos de uma adoção da dialética “à la Hegel” (principalmente “misturada” com o “homem” de Feuerbach) eram trazidos à tona pela crise do movimento comunista internacional. E ao mergulhar na crise, investigando-a, encontramos o problema que a gerou: as sobrevivências do capitalismo nas sociedades socialistas “não como um vestígio do passado, mas como uma forma intrínseca do presente” (ROSSANDA apud HAIDER, 2017, p.6, tradução e grifos nossos).

A crise é fruto não da “obsolescência” da teoria marxista, mas de sua vitalidade: o marxismo permitiu que o povo se organizasse e tomasse o poder, algo inédito na história da humanidade. Contraditoriamente, ao propor-se não apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo, o marxismo altera a própria realidade, criando outros problemas que ele mesmo precisa responder. Caso queira continuar transformando o mundo, o marxismo deve, ele mesmo, transformar-se. Se sua dinâmica funciona, então, a partir de crises práticas e teóricas, que o impulsionam adiante, uma “crise do marxismo” significa não uma tragédia anunciada, o fim do marxismo, mas uma oportunidade de desenvolvê-lo, uma época de criatividade que deve ser aproveitada para levar adiante a luta revolucionária, que não é fácil, nem de sucesso garantido mas, desde Marx, é possível.

É por isso que, ao contrário do que pensa Anderson (talvez, em parte, por um erro de tradução), a conotação do discurso de Althusser sobre a crise do marxismo é altamente otimista:

Seu entusiasmo é claramente indicado no título original do discurso em sua publicação inicial no Il Manifesto: “Finalmente qualcosa di vitale si libera dalla crisi e nella crisi del marxismo.” A tradução francesa “Enfin le crise du marxisme!” mantém um pouco do tom triunfante, enquanto a redução inglesa para simplesmente “The Crisis of Marxism” abre espaço para uma voz de desespero.” (HAIDER, 2017, p.9-10, tradução nossa)

É apenas por meio da luta política e das crises geradas por ela que é possível avançar a teoria marxista, enfrentando questões ainda não analisadas e gerando novos conceitos que, além de enriquecer nossa tradição teórica, fornece as ferramentas necessárias para que a possibilidade de regressão ao capitalismo seja efetivamente combatida e a revolução, vitoriosa. Portanto, os marxistas do mundo todo devem cantarolar em coro, na batida de Althusser: “Enfim, a crise do marxismo!”


Referências bibliográficas:

ALTHUSSER, Louis. A querela do humanismo (1967). Crítica Marxista. São Paulo: Xamã, v.1, n.9, 1999a, p. 9-51.

ALTHUSSER, Louis. The Future Lasts Forever: A Memoir. Nova Iorque: The New Press, 1993.

ALTHUSSER, 1995 BIOGRAFIA?

ALTHUSSER, Louis. For Marx. Londres: The Penguin Press, 1985.

ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas: Unicamp, 2015.

ALTHUSSER, 2010

ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999b.

ALTHUSSER, Louis. The Humanist Controversy and Other Writings. Londres: Verso, 2003.

ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

HAIDER, Asad. Crisis Theory. Viewpoint Magazine, 2017. Disponível em: < https://viewpointmag.com/2017/12/14/crisis-theory/  >. Acesso em: 03 de jul. 2022

HAIDER, Asad. Underground Currents: Louis Althusser’s “On Marxist Thought”. Viewpoint Magazine, 2012. Disponível em: < https://viewpointmag.com/2012/09/12/underground-currents-louis-althussers-on-marxist-thought/ >. Acesso em: 03 de jul. 2022.

LOSURDO, Domenico. Hegel e a liberdade dos modernos. São Paulo: Boitempo, 2019.

LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como renascer. São Paulo: Boitempo, 2018

MARTUSCELLI, Danilo Enrico. Althusser, a crise do marxismo e a crítica à ilusão jurídica da política. Lutas Sociais. São Paulo, vol.18, n.33, p.160-171, jul./dez. 2014.

MELO, Alessandro. Crítica da ideologia humanista em educação: contribuições do marxismo althusseriano. São Paulo: Pimenta Cultural, 2022.

MONTAG, Warren. Althusser and His Contemporaries: Philosophy’s Perpetual War. Londres: Duke University Press, 2013.

MOTTA, Luiz Eduardo. Sobre ‘Quem tem medo de Louis Althusser?’ de Carlos Henrique Escobar. Achegas.net, v. 44, 2011.

PRASHAD, Vijay. Balas de Washington: uma história da CIA, golpes e assassinatos. São Paulo: Expressão Popular, 2020.


Notas

[1] No Brasil, “[e]m oposição às teses de Althusser escreveram José Arthur Giannotti (Contra Althusser, 1968), Norma Bahia Pontes (A situação de Althusser no pensamento contemporâneo, 1968), Luciano Zajdsznajder (Sobre Althusser, 1970), Caio Prado Jr. (O marxismo de Louis Althusser, 1971), Fernando Henrique Cardoso (Althusserianismo ou marxismo? A propósito do conceito de classes em Poulantzas, 1971 e Estado capitalista e marxismo, 1977), Tarcísio Padilha (Filosofia, ideologia e realidade brasileira, 1971), Carlos Nelson Coutinho (O estruturalismo e a miséria da razão, 1972), Paulo Silveira (Do lado da história, 1977 e Poulantzas e o marxismo, 1984), Jacob Gorender (O escravismo colonial, 1978 e O conceito de modo de produção e a pesquisa histórica, 1980), Sergio Paulo Rouanet (Imaginário e dominação, 1978), Ruy Fausto (Marx: lógica e política, 1983), Pedro Celso Uchôa Cavalcanti (Convite à leitura de Gramsci, 1984), José Guilherme Merquior (O marxismo ocidental, 1986). Numa crítica menos acentuada, […] Miriam Limoeiro (Ideologia do desenvolvimento, 1978) e José Guilhon Albuquerque (Instituição e poder, 1980 e Althusser, a ideologia e as instituições, 1983). Incluí-se também na lista […] os livros traduzidos de Raymond Aron (De uma sagrada família a outra, 1970), Michael Löwy (Método dialético e teoria política, 1978), Adolfo Sanchez Vásquez (Ciência e revolução, 1980), Edward P. Thompson (A miséria da teoria, 1981), e Leszek Kolakowski (O espírito revolucionário e marxismo: utopia e antiutopia, 1985), e o artigo de André Glucksman (Um estruturalismo ventríloquo, 1970)” (MOTTA, 2011, p.105-106).

[2] Althusser “alternava” entre um Estado de depressão profunda e de hipomania: “Meu medo de ser completamente impotente e meu desejo de ser todo-poderoso, minha megalomania, eram dois aspectos do mesmo fenômeno” (ALTHUSSER, 1995, p.144, tradução nossa). De um lado, a hipomania: “eu tive a ideia de cometer o assalto a banco perfeito e de roubar um submarino atômico (que eu, novamente, considerava ser infalível)” (ALTHUSSER, 1995, p.155, tradução e grifos nossos). Contudo, de outro lado, encontrava-se o Estado depressivo: após a euforia de ter publicado “Por Marx” e “Ler ‘O Capital’”, “fiquei obcecado com o pensamento aterrorizante de que esses textos iriam me expor completamente ao público como quem eu realmente era, um charlatão e nada mais, um filósofo que não sabia praticamente nada sobre a história da filosofia ou sobre Marx (mesmo que eu tivesse certamente estudado minuciosamente suas obras de juventude, eu tinha estudado seriamente apenas o Livro I de “O Capital” em 1964, quando fiz o seminário que resultou em “Ler ‘O Capital’ ”). […] Quando meus livros apareceram em Outubro, eu tive um ataque de pânico tão grande que eu só falava sobre destruí-los (mas como?) e então, finalmente, em destruir a mim mesmo, a radical solução última” (ALTHUSSER, 1995, p.148-149, tradução nossa).

[3] “Como esses dramas teóricos ocorreram em maior parte em textos franceses, italianos e espanhóis não traduzidos [para o inglês] – debates dentro dos partidos parecem agora ser relíquias pré-históricas e entre marxistas anglo-americanos – a descrição de Anderson adquiriu o Estado de doxa, confirmada e santificada pelo julgamento impiedoso da dialética” (HAIDER, 2017, p.4, tradução nossa).

[4] Rossana Rossanda, em acordo com Althusser, contra a afirmação vazia de que existiriam diferentes tipos de socialismo, e percebendo suas consequências, principalmente um retorno ao reformismo dos partidos comunistas europeus, afirma que “Nós não acreditamos em duas sociedades, no socialismo para os países atrasados e na social democracia para os desenvolvidos; nós ainda defendemos uma teoria unificada dos processos mundiais” (ROSSANDA apud HAIDER, 2017, p.10, tradução nossa).

[5] Os Manuscritos foram considerados “como a proto-história, sem rupturas, que deu origem a O Capital, mesmo que entre os dois textos tenham se passado 23 anos. Neste tipo de consideração, os Manuscritos seriam uma “intuição” a partir da qual se desenvolveu todo o edifício da teoria de Marx” (MELO, 2022, p.40).

[6] A União Soviética foi o apoio central para todas as outras revoluções e para os movimentos anticoloniais por libertação nacional em todo o globo. Como disse Mao Zedong: “Foi graças aos russos que os chineses descobriram o marxismo. Antes da Revolução de Outubro, os chineses não só ignoravam Lênin e Stálin, eles não conheciam sequer Marx e Engels. Os tiros de canhão da Revolução de Outubro nos trouxeram o marxismo-leninismo” (ZEDONG apud LOSURDO, 2018, p.25). Contudo, mais do que veículo de transmissão teórica, o apoio soviético era prático: após sua fundação em 1945, a ONU “forneceu a estrutura legal para o intervencionismo desregrado. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, e não os quase 200 Estados da Assembléia Geral da ONU, têm o poder de decidir quando e como intervir contra Estados Soberanos. De 1945 a 1989, a URSS operou como um guarda-chuva contra o uso totalmente ilegal dessas brechas da ONU, mecanismos para oferecer aos antigos Estados coloniais uma porta dos fundos para continuar suas guerras coloniais de forma moderna. […] Os primeiros 56 vetos no Conselho de Segurança da ONU foram feitos pela URSS. […] Foi a URSS que usou seu veto para defender o processo de libertação nacional, das lutas dos palestinos às lutas na Rodésia do Sul, das lutas pela liberdade sul-africana à guerra de libertação do Vietnã” (PRASHAD, 2020, p.39).

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