Por Jornal Avante!, via Estevam Vieira
Roger Keeran e Thomas Kenny são militantes comunistas norte-americanos. Roger é historiador com obra publicada e professor universitário. Thomas é economista. Amigos de longa data, lançaram-se juntos no estudo e aprofundamento das causas que levaram à derrota do socialismo e à desagregação da URSS, malogro que significou uma perda incalculável para os trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo. As reveladoras conclusões a que chegaram estão expostas no seu livro “Socialismo Traído”, publicado pela LavraPalavra Editorial. A entrevista está no jornal Avante!, n.º 1817, 25 de Setembro de 2008.
Desde quando e porquê se interessaram pela investigação das causas da derrota do socialismo e do colapso da União Soviética?
Thomas Kenny: Tanto eu como o Roger consideramos os acontecimentos entre 1989 e 1991, o colapso do socialismo europeu, como um desastre titânico. Após 1991 pensamos que a história do socialismo suscitaria o interesse de muitos investigadores e que haveria uma avalanche de publicações sobre o assunto. Mas nos enganamos, não houve nada, apenas silêncio. Apesar de este não ser o campo de trabalho de nenhum de nós, decidimos especializar-nos nesta área para fazer a investigação, lendo toda a literatura que encontramos disponível. Trabalhamos durante anos, entre 1991 e 2004, ano em que publicamos o livro nos Estados Unidos com as conclusões do estudo.
Mas o que nos levou realmente a tentar determinar as causas do colapso foi o fato de a teoria em que acreditamos não “autorizar” tal situação. O colapso do socialismo estava em contradição com tudo aquilo em que acreditávamos. Nunca pensamos que fosse possível destruir o socialismo, pelo contrário, acreditávamos firmemente que o socialismo iria desenvolver-se e crescer continuamente.
O materialismo histórico estaria afinal, errado?…
Thomas Kenny: Não. Estávamos certos de que, enquanto método, o materialismo histórico permanecia válido, mas nos interrogávamos por que é que nada se disse sobre isto? Precisamos de muitas leituras e mais de um ano e meio até começarmos a identificar algumas peças deste puzzle e nos darmos conta do peso da chamada “segunda economia” na União Soviética, fator que se revelou decisivo nas nossas conclusões.
Roger Keeran: Nós acreditávamos que o socialismo do século XXI precisava de saber o que é que tinha acontecido ao socialismo do século XX. Depois da Revolução de Outubro, o acontecimento mais importante do século XX foi, talvez, a destruição da União Soviética e do socialismo na Europa.
Existe a ideia de que a perestróika constituiu uma resposta a uma crise econômica, social, política, cultural, ideológica, moral e partidária, consequência de graves deformações ao ideal socialista, de distorções, erros e atrasos acumulados ao longo de muitos anos. Afirma-se que o “modelo” soviético de socialismo havia esgotado as suas potencialidades de desenvolvimento, tornando-se necessário proceder a reformas radicais. Querem comentar?
Roger Keeran: É natural que perante um passo atrás tão tremendo as pessoas tendam a reagir com exagero na avaliação das suas causas. Não havia crise nenhuma na União Soviética, havia problemas, mas não uma crise…
Mas para a maioria das pessoas é uma evidência que só uma profunda crise poderia provocar tal catástrofe…
Roger Keeran: Acho que podemos sintetizar o nosso ponto de vista do seguinte modo: não foi a doença que matou o socialismo, mas sim a cura. Ao contrário do que muitos pensam, não havia sinais de uma crise: não havia desemprego, inflação, manifestações, etc. Mas isto não significa que não houvesse problemas. É claro que havia, designadamente no plano econômico, muito deles agravados no período de Brejnev, cuja liderança se caracterizou por uma passividade e falta de vontade para enfrentar os problemas. Neste sentido podemos dizer que houve uma espécie de “estagnação”, apesar de não gostarmos desta palavra, já que significa ausência de crescimento, o que não corresponde à verdade.
Os problemas econômicos agravaram-se a partir de que altura?
Thomas Kenny: A taxa de crescimento da economia começou a abrandar a partir da época de Khrushchov, passando de 10 a 15% ao ano para 5, 4 e 3%. Houve uma clara desaceleração, mas continuou a observar-se um crescimento respeitável segundo os padrões capitalistas, o que permitiu elevar continuamente o nível de vida das pessoas na União Soviética. Em 1985 o nível de vida tinha atingido o seu ponto máximo. No plano das nacionalidades, não se observavam conflitos ou contradições nacionais relevantes entre os povos da União Soviética. Havia problemas, dificuldades, mas não uma crise.
No plano internacional, a URSS estava sob pressão do imperialismo norte-americano. A administração Reagan aumentou a pressão militar, econômica e diplomática. Também identificamos problemas no interior do partido que exigiam reformas. Mas a questão principal era outra.
“Só com Gorbatchov a direita triunfou”
Se, como afirmam, o socialismo não estava em crise, qual a origem das reformas destruidoras realizadas no final dos anos 80 na URSS?
Thomas Kenny: Ao longo da história da União Soviética digladiaram-se sempre duas tendências na política soviética: uma ala de direita, que defendia a incorporação de formas e ideias capitalistas, e uma ala de esquerda que apostava na luta de classes, num partido comunista forte e na defesa intransigente das posições da classe operária.
De resto, encontramos estas duas correntes mesmo antes da revolução de Outubro. Os mencheviques, por um lado, e os bolcheviques por outro. Mais tarde esta luta é polarizada por Bukharin e Stálin, Khrushchov e Mólotov, Brejnev e Andrópov, Gorbatchov e Ligatchov. Toda a história da URSS pode ser vista à luz da luta entre estas duas correntes. No entanto, só com Gorbatchov a ala direita obteve um triunfo completo.
Roger Keeran: Brejnev, com a sua política de estabilidade de quadros e o seu receio de fazer ondas, deixou uma direção extremamente envelhecida e permitiu que se agravassem vários problemas na economia e na sociedade. A carência de alguns produtos, sobretudo os de alta qualidade, o desenvolvimento da “segunda economia”, a corrupção de dirigentes do partido, tudo isto desagradava às pessoas. Quando Gorbatchov prometeu resolver estes problemas, quase toda a gente concordou. Parecia que finalmente tinha aparecido alguém com vontade de mudar as coisas para melhor.
Todavia, alguns apontam como causas do colapso a degeneração do partido comunista, o fato de o trabalho coletivo ter sido substituído a dada altura por um pequeno círculo de dirigentes e mesmo por um só dirigente individualmente; a democracia partidária ter sido estrangulada por um sistema burocrático centralizado; a indesejável fusão e confusão entre as estruturas do partido e do Estado; o afastamento do partido das massas; o fracasso da democracia socialista que era apresentada como um tipo superior de democracia. De acordo com esta tese, o povo soviético foi despojado do poder político e isso foi fatal para o socialismo. Concordam?
Thomas Kenny: A visão de que a União Soviética sofria de um défice democrático e de um excesso de centralização está muito espalhada entre socialistas reformistas, social-democratas, historiadores burgueses e mesmo entre alguns comunistas, mas, na nossa opinião, é uma visão errada e exagerada dos problemas da democracia soviética.
Apesar de alguns problemas, a democracia soviética tinha uma grande vitalidade. Cerca de 35 milhões de trabalhadores participavam diretamente no trabalho dos sovietes, que eram instituições de poder que tomavam decisões efetivas, 163 milhões de trabalhadores estavam sindicalizados, o partido tinha 18 milhões de militantes, a democracia tinha outras instituições como as seções de cartas do leitor em todos os jornais, as organizações de mulheres e de jovens. É verdade que todas estas instituições tinham insuficiências, poderiam funcionar melhor e de forma mais efetiva, mas não é verdade que fossem instituições de fachada. As pessoas que atacaram o nosso livro acreditam, na sua maioria, que a falta de democracia e o excesso de centralização foram as causas do colapso soviético. Curiosamente, este sempre foi o principal argumento da burguesia para difamar o regime soviético muito antes da chegada de Gorbatchov. Na nossa opinião é incorreto acusar a democracia soviética de ter levado ao colapso.
Roger Keeran: Muitas dessas críticas radicam na concepção burguesa de democracia. Na verdade a União Soviética sempre foi acusada de não ter uma democracia burguesa, de não ter partidos concorrentes. Todavia, as formas de democracia socialista, sem serem perfeitas, eram sob muitos aspectos, muito mais ricas do que a democracia burguesa. Penso que o recente conflito na Geórgia nos fornece um exemplo a este respeito. Na antiga União Soviética, a Ossétia do Sul era um território autônomo onde as minorias étnicas tinham as suas escolas, língua e culturas preservadas. Após a desagregação da URSS, a “democracia” georgiana aboliu o estatuto de autonomia dos ossetas, o que agravou as tensões e desembocou numa guerra na região.
Thomas Kenny: Houve razões históricas que determinaram que na URSS apenas houvesse um partido. Logo a seguir à revolução os restantes partidos combateram o poder soviético, os socialistas revolucionários abandonaram o governo e tudo isso levou a que apenas ficassem os bolcheviques. A maioria dos países socialistas europeus tinha vários partidos, embora o papel dirigente do partido da classe operária fosse salvaguardado. A existência de um só partido acentuou a ideia de fusão entre o partido e o Estado, mas não vemos que isso possa ter constituído uma causa do colapso.
Mas as insuficiências da democracia soviética não terão impedido o povo de defender as conquistas revolucionárias, a URSS e o socialismo?
Thomas Kenny: Esse é o principal argumento dos que afirmam que havia um défice democrático. “Porque é que o povo não defendeu o socialismo?” Perguntam dando como resposta a falta de democracia e o excesso de centralização. Em primeiro lugar, não é verdade que não tenha havido resistência. Houve, basta lembrar que, no referendo de 1991, a maioria esmagadora dos soviéticos (75%!) votou a favor da manutenção da URSS.
Por outro lado, para percebermos porque é que essa resistência não foi suficientemente forte para derrotar a contra-revolução, temos de ter em conta o seguinte: Gorbatchov e Iákovlev, ao mesmo tempo que prometiam o aperfeiçoamento do socialismo, com mais liberdade e democracia, destruíram num curto espaço de tempo as instituições através das quais a base do partido e o povo podiam expressar a sua vontade. A organização do partido foi desmantelada, os jornais e todos os meios de informação foram entregues a anti-comunistas. De repente desapareceram os mecanismos e formas habituais de expressão democrática popular.
Regressando à economia, ficou-nos da perestróika a ideia de que o excesso de centralização, de planificação e de burocracia foram os causadores dos atrasos no desenvolvimento econômico. Alguns acrescentam que houve uma estatização exagerada da economia, que as diferentes formas de propriedade deveriam ter sido mantidas e que o papel do mercado foi claramente subestimado durante o processo de construção do socialismo. Qual é o ponto de vista de vocês nesse sentido?
Roger Keeran: Penso que temos de começar por fazer a seguinte observação que ninguém contesta: a propriedade social dos meios de produção na União Soviética permitiu os mais rápidos ritmos de crescimento industrial jamais registados em qualquer época da história. Isso ocorreu nos anos 30, mas também a seguir na guerra até meados dos anos 50. Em quatro ou cinco anos, a União Soviética conseguiu se recuperar da devastação provocada pela II Guerra Mundial, que deixou em ruínas um terço das cidades e um terço das indústrias. Por tudo isto, nunca pensamos que a propriedade estatal, a centralização e a planificação pudessem ter causado o colapso. Mas havia algumas questões que precisavam de ser explicadas. Por que é que o crescimento começou a declinar nos anos 60 e 70. A economia continuava a crescer, mas qual era a razão da desaceleração? Os críticos da planificação centralizada viram aqui a demonstração das suas teses…
Talvez as enormes proporções atingidas pela economia colocassem verdadeiros problemas e dificultassem essa planificação?
Roger Keeran: Sim, é certo que a expansão da economia tornou a planificação uma tarefa mais complexa. Todavia, a conclusão a que chegamos aponta em sentido contrário, ou seja, foi a erosão da planificação e o florescimento da “segunda economia” que colocaram entraves ao crescimento econômico na URSS.
Não foi portanto a subestimação do papel do mercado, mas antes as medidas tomadas para o seu alargamento que desviaram recursos da economia socialista?
Thomas Kenny: Todas as sociedades socialistas têm mercados. A própria União Soviética sempre teve um mercado para o consumo privado. No entanto, as reformas econômicas de Khrushchov não só descentralizaram a planificação como introduziram alguns mecanismos de mercado na economia e formas de concorrência entre as empresas. As reformas de Kossygin [primeiro-ministro da URSS entre 1964 e 1980] traduziram-se em cada vez maiores concessões ao modo de pensar capitalista. Dos cinco institutos mais importantes e influentes de economia política soviéticos, três estavam nas mãos de economistas pró-capitalistas do tipo de Aganbeguian, por exemplo. Os principais setores da inteligensia, incluindo os economistas, exerciam importantes pressões sobre o governo. Este foi um processo que se desenvolveu ao longo de 20 anos, não aconteceu tudo de uma vez.
Para alguns a perestróika tinha boas intenções mas falhou. No livro, vocês afirmam que esta foi a grande oportunidade para as forças anti-socialistas avançarem. Qual foi a responsabilidade e que intenções reais teve Gorbatchov em todo este processo?
Thomas Kenny: Apesar das suas posições oportunistas, não pensamos que Gorbatchov tenha agido conscientemente logo de início para trair o socialismo e restaurar o capitalismo. Ao contrário de Andrópov, que era um profundo e genuíno marxista-leninista, Gorbatchov era um brilhante ator, mas uma pessoa superficial, sem grande preparação teórica. Quando se deslocou politicamente para a direita sob a influência de Iákovlev [1], descobriu que o imperialismo o aprovava, que os elementos corrompidos do partido concordavam com ele, especialmente aqueles ligados à segunda economia que defendiam o setor privado, e aos poucos foi acelerando as reformas neste sentido. A dado momento, Gorbatchov tomou a decisão consciente de que não era mais um comunista, mas um social-democrata, que não acreditava mais na planificação, na propriedade social dos meios de produção, no papel da classe operária, na democracia socialista, e queria que a União Soviética se transformasse numa Suécia ou algo parecido.
O oportunismo e o abandono da luta foi um processo gradual que se tornou evidente em 1986. Alguns dirigentes do partido ofereceram determinada resistência, como foi o caso de Ligatchov [2], mas mesmo este tinha fraquezas, embora fosse de longe melhor homem do que Gorbatchov. Ligachov foi apanhado de surpresa. Ele próprio afirmou que havia duas formas de corrupção, uma que há muito todos sabiam que existia, e à qual queriam pôr fim quando assumiram o poder em 1985; e uma outra que surgiu no espaço de um ano e meio como uma forte pressão, vinda da “segunda economia” e das organizações mafiosas florescentes.
Como puderam esses setores emergir com tal força na sociedade socialista?
Thomas Kenny: A “segunda economia” alcançou uma expressão importante em dois períodos da história da URSS: o primeiro foi durante a Nova Política Econômica (NEP) dos anos 20 que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, sob controle estatal e dentro de determinados limites. Esta foi uma opção consciente do Estado socialista tomada provisoriamente para fazer face à situação de emergência causada pela guerra civil. Em 1928–29 a NEP foi superada de forma decidida. No entanto, dirigentes do partido como Bukharin defenderam a manutenção da NEP apresentando-a como a via mais adequada para alcançar o socialismo. Esta corrente foi derrotada pela maioria do partido liderada por Stálin, que justamente lembrou que a NEP fora definida por Lênin como um recuo necessário, porém temporário. E apostaram na planificação centralizada e na propriedade social dos meios de produção.
Mas este período dos anos 20 ficou marcado não só pelo florescimento do capitalismo e dos setores marginais e criminosos, mas também pelo alastramento de uma ideologia de direita, anti-socialista. Ou seja, podemos ver claramente uma correspondência entre a base material e a ideologia.
O segundo período foi mais prolongado e gradual. Teve início em meados dos anos 50, após a morte de Stálin. Khrushchov foi a primeira peça deste quebra-cabeça. Em muitos aspectos, não todos, teve desvios de direita e quando estes foram demasiados houve uma correção. Veio Brejnev, mas este detestava mudanças, queria estabilidade, e apesar das disputas entre as alas esquerda e direita os problemas continuaram a acumular-se.
“O socialismo é uma construção consciente”
Foi então o acumular de problemas na época de Brejnev que condicionou as reformas dos anos 80?
Thomas Kenny: Nos anos 80, os problemas eram evidentes para todos, mas a questão-chave que se colocava era qual das duas tendências tradicionais no partido os iria resolver: a tendência de direita ou a tendência de esquerda?…
Infelizmente já conhecemos a resposta…
Roger Keeran: Mas Brejnev não teve apenas aspectos negativos. No plano internacional obteve a paridade militar com os Estados Unidos e ajudou os movimentos revolucionários em várias regiões do mundo. Este esforço no plano militar e no plano da solidariedade internacionalista exigiu importantes recursos que não puderam ser utilizados para suprir necessidades domésticas. Talvez também por esta razão que, durante este período, se tenha fechado os olhos ao setor privado ilegal que se desenvolvia nas franjas da economia socialista. Esta espécie de “pacto” com a “segunda economia” permitiu o surgimento de uma camada que ficou conhecida como “os milionários de Brejnev”, que eram pessoas que fizeram fortunas através de redes de corrupção toleradas pelo poder.
Essa é uma realidade pouco falada, sobretudo no que respeita às proporções que atingiu na sociedade soviética…
Thomas Kenny: Bem, trata-se de um setor ilegal, por isso não há números oficiais, o que torna o seu estudo difícil…
Roger Keeran: Mas é verdade que se trata de um fenômeno ignorado e não reconhecido pela literatura marxista. A “segunda economia” foi sempre vista como um resquício do capitalismo que desapareceria à medida do avanço do socialismo. Contudo, há alguns estudos que nos mostram que o seu peso estava longe de ser negligenciável. Por exemplo, é interessante comparar o período de Brejnev com os primeiros meses da direção de Andrópov em termos de processos criminais instruídos por atividades econômicas ilícitas. Verificamos que nos anos de Brejnev não houve praticamente condenações pela prática deste tipo de crime, mesmo quando os casos chegaram a ser julgados em tribunal. Com Andrópov esta situação alterou-se radicalmente. Muitas pessoas foram condenadas nesse período.
No livro, vocês não dedicam muito espaço à análise do chamado “relatório secreto” apresentado ao XX congresso do PCUS por Khrushchov sobre o “culto a personalidade”, mas referem a necessidade de reavaliar o período comumente designado por “stalinismo”, notando que enquanto tal não for feito, os comunistas continuarão prisioneiros do passado. Querem explicar?
Roger Keeran: Quando começamos a escrever o livro essa questão colocou-se e tivemos de tomar uma decisão. Decidimos que não iríamos entrar no tema quente de Stálin. Há muitos preconceitos enraizados e, sobretudo, há muitas coisas que não conhecemos suficientemente para podermos desmontar ideias feitas e diariamente repetidas sobre Stálin. A única coisa que fizemos, ou pelo menos tentamos, foi abrir a porta a este assunto. Nós não temos todas as respostas sobre Stálin e a sua época, e seria um erro pensar que temos. Há muitos aspectos históricos e políticos que precisamos de absorver e compreender.
Contudo, praticamente todas as conquistas do socialismo que enumeram na introdução do livro foram alcançadas em particular durante os anos 30, sob a direção de Stálin…
Thomas Kenny: É um fato, mas tivemos de fazer uma opção entre tratar toda a questão ou apenas o que consideramos ser a questão-chave. Por acaso, a maioria dos ataques ao nosso livro por parte de marxistas ou pseudo-marxistas, sociais-democratas ou comunistas revisionistas centraram-se precisamente na questão de Stálin. Não contestaram nada do que dissemos sobre Gorbatchov nem sobre a “segunda economia”, apenas nos censuraram por sermos demasiado brandos com Stálin e por não termos reconhecido que Stálin era um monstro, um louco ou um carniceiro. Esta questão no Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA) é particularmente sensível.
Mas se a tese do seu livro está correta, então as políticas de Stálin terão sido as mais corretas e as únicas que podiam garantir a construção socialismo e defender as conquistas revolucionárias?
Roger Keeran: O ódio a Stálin é tão cego e intenso que alguns críticos do nosso livro dizem que estamos errados e insistem que Stálin foi a causa do colapso da URSS.
Vem a propósito uma reflexão de vocês sobre a importância do fator subjetivo no socialismo. Segundo afirmam, o papel dos dirigentes é mais decisivo no socialismo do que no capitalismo. Porquê?
Thomas Kenny: O capitalismo cresce enquanto que o socialismo é construído. No livro utilizamos uma metáfora em que comparamos o capitalismo a uma jangada a descer um rio. As possibilidades de dirigir a jangada são reduzidas, ela é arrastada pela força da corrente e apenas se podem fazer algumas pequenas correções na trajetória. Nesta metáfora, o socialismo é um avião, o qual apesar de ser um meio de transporte incomparavelmente superior exige ser pilotado por uma equipe bem preparada científica e tecnologicamente, capaz de compreender e aplicar conscientemente as leis da ciência. Ou seja, apesar de o avião ser um sistema superior é vulnerável num sentido em que a jangada não o é. Isto não significa obviamente que devamos abandonar o avião e voltar à jangada, assim como não podemos voltar ao tempo das cavernas, apesar de as nossas casas poderem ruir.
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Trechos de “O Socialismo Traído”:
“A interpretação do colapso soviético envolve um combate pelo futuro. As explicações ajudarão a determinar se no século XXI os trabalhadores irão uma vez mais “lançar-se ao assalto do céu” para substituir o capitalismo por um sistema melhor.”
“Depois de 1953, começou a crescer dentro do socialismo uma nova base econômica para as ideias burguesas.”
“Tais elementos que tinham (…) diminuído drasticamente com a coletivização da propriedade sob Stálin voltaram a aparecer com a chamada liberalização de Nikita Khrushchov.”
“A abordagem de Khrushchov (…) ia contra o aviso dado por Stálin em 1952 de que “deixar de dar primazia à produção de meios de produção» iria “destruir a possibilidade da expansão contínua da nossa economia”.
“Em Maio de 1957, Khrushchov aboliu os mais de 30 ministérios de planificação central e substituiu-os por mais de 100 conselhos econômicos locais. (…) A economia soviética cresceu a uma taxa mais lenta na segunda metade da década de 50 do que na primeira, e cresceu a uma taxa mais lenta nos primeiros cinco anos da década de 1960 do que na de 1950.”
“Khrushchov avançou (…) a ideia de que o PCUS deixara de ser apenas a vanguarda do proletariado para se tornar a vanguarda de “todo o povo” e de que a ditadura do proletariado se tornara o “Estado de todo o povo”.
“Khrushchov fez diversas mudanças no modo de funcionamento do Partido que diluíram o seu papel dirigente.”
“Toda a ideia de que a luta de classes terminou num mundo ainda dominado pelo capitalismo e pelo imperialismo, ou no interior de um Estado socialista, é ela própria uma manifestação da luta de classes a um nível ideológico.”
“A atividade econômica privada (…) emergiu com uma nova vitalidade no tempo de Khrushchov, floresceu com Brejnev e em muito aspectos substituiu a economia socialista primária no tempo de Gorbatchov e de Yeltsin.”
“Grossman descobriu que no final da década de 70 a população urbana (que constituía 62% da população total) ganhava cerca de cerca de 30% do seu rendimento total a partir de fontes não oficiais, ou seja, da atividade privada quer legal, quer ilegal.”
“Nas últimas três décadas e meia de existência da URSS, quanto mais se introduziam relações de mercado e outras reformas (…) mais as taxas de crescimento econômico a longo prazo decresciam”.
“As taxas de crescimento soviéticas mais rápidas que se alcançaram ocorreram em 1929–1953, quando a direção soviética defendia firmemente a planificação central e suprimiu as relações de mercado anteriormente toleradas durante a NEP de 1921–1929.”
“(…) O “ano Andropov” (1983) revelou um rumo de reformas promissor, completamente diferente do caminho escolhido por Gorbatchov, que se revelou desastroso.”
“O colapso soviético não era inevitável. Não tem qualquer fundamento a conclusão alardeada na midia, do grande capital de que o socialismo soviético estava condenado desde o início.”
“(…) O descontentamento popular surgiu no final e não no início das reformas de Gorbatchov. Foi um efeito das políticas de Gorbatchov e não a sua causa.”
“Gorbatchov e os seus defensores afirmaram que ele herdou uma sociedade em crise. Isto é falso. Em todos os sentidos convencionais, a União Soviética não caíra na agonia de uma crise.”
“O socialismo soviético tinha muitos problemas (…) Contudo, corporizava a essência do socialismo tal como definido por Marx — uma sociedade que derrubara a propriedade burguesa, o “mercado livre”, o Estado capitalista, substituindo-os pela propriedade coletiva, a planificação centralizada e um Estado operário”.
“Segundo a UNESCO os cidadãos soviéticos liam mais livros e viam mais filmes do que qualquer outro povo no mundo. Todos os anos o número de visitantes dos museus correspondia a quase metade da população”.
“Os defensores da superioridade da democracia ocidental ignoram a exploração de classe, concentram-se no processo e não na substância e atribuem o mérito das realizações da democracia ao capital e não ao seu real defensor e promotor, a classe operária moderna”.
“O governo americano trabalhou sistematicamente com os sauditas e a OPEP para baixar o preço do petróleo no mercado mundial, uma jogada que ajudou a economia americana ao mesmo tempo que arruinava os soviéticos”.
“Em 1985 os sauditas aumentaram a sua produção petrolífera de menos de dois milhões de barris ao dia para nove milhões. No espaço de cinco meses, o preço do petróleo caiu para 12 dólares o barril”.
“A URSS era demasiada forte para ser desestabilizada externamente. A escalada bélica dos EUA podia pressionar a URSS, mas não destruí-la”.
“Antes de Gorbatchov ter chegado ao poder, a influência ideológica da segunda economia tornou-se evidente no interior do Partido Comunista e no governo soviético”.
“A doutrina da coexistência pacífica, originalmente uma forma de luta anticapitalista por todos os meios exceto os militares, mudou para “valores humanos universais”, expressão que viria a ser usada para justificar a aliança com o imperialismo”.
“No espaço de um ano, Gorbatchov substituiu mais de 50% dos membros efetivos e suplentes do Politburo. Substituiu 14 dos 23 dirigentes de departamentos do Comitê Central, cinco dos 14 presidentes de repúblicas e 50 dos 157 primeiros secretários de krais (regiões) e oblasts (distritos). Gorbatchov substituiu 40% dos embaixadores, alterou muitos ministérios e afastou 50 mil gestores”.
“Gorbatchov transformou o significado da Glasnost, de abertura do Partido e de outras organizações para crítica aberta ao Partido e à sua história”.
“No crucial plenário do CC de Janeiro de 1987, sob o slogan de “democratização”, teve início a exclusão do PCUS do poder político e econômico.”
“Os dirigentes econômicos de Gorbatchov converteram a organização da juventude comunista (Komsomol), com 15 milhões de membros, num centro de formação para jovens empresários. Usando recursos do Komsomol, os jovens capitalistas russos fundaram os primeiros bancos comerciais e bolsas do país”.
“A corrupção explica por que é que o Partido que tinha rejeitado Bukharin e Khrushchov (embora não sem estragos) não levou a melhor sobre Gorbatchov”.
-Roger Keeran e Thomas Kenny: O Socialismo Traído — Por Trás do Colapso da União Soviética, Edições Avante!, 2008.
Notas:
[1] Aleksandr Iákovlev: responsável a partir de 1985 pelo Departamento de Propaganda do PCUS, torna-se membro do CC do PCUS em 1986, responsável pelas questões da ideologia, informação e cultura. Sobe ao Politburo (comitê executivo) em Junho de 1986 e é sob proposta sua que são nomeados os diretores dos principais jornais e revistas do país que passam a defender abertamente posições anti-socialistas (os jornais Moskovskie Novosti, Sovietskskaia Kultura, Izvestia; as revistas Ogoniok, Znamia, Novi Mir, entre outros). Fez publicar uma série de romances de escritores dissidentes e anti-soviéticos, bem como cerca de 30 filmes antes proibidos. Em Agosto de 1991 anunciou a decisão de abandonar o PCUS.
[2] Egor Ligatchov: membro do Politburo (comitê executivo) entre 1985 e 1991, foi um dos impulsionadores da campanha anti-álcool (1985–87) e, mais tarde, assumiu-se como um opositor às reformas de Gorbatchov.
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1991: protestos em Moscou pela manutenção e permanência da URSS. Link: https://youtu.be/HMSntTT7muk