Por Alexandre Pimenta.
Toda verdade se afirma na destruição de disparates. Toda a verdade é, portanto, essencialmente destruição. Tudo o que simplesmente conserva é simplesmente falso. O campo do conhecimento marxista é sempre um campo de ruínas.
Alain Badiou
Arquitetura de Arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo, lançamento da Autonomia Literária, traz um conjunto inusitado de reflexões sobre o mundo contemporâneo e os rumos da esquerda. Sua forma não é convencional. Não se trata de um conjunto de artigos organizados pelos autores com especialistas no assunto. Nem de uma coautoria em sua formatação clássica. Mas de uma espécie dueto, em pleno ensaio, e nem sempre harmônico. As duas vozes são a de Edemilson Paraná, professor de sociologia da Universidade Federal do Ceará, e a de Gabriel Tupinambá, psicanalista e pesquisador no Rio de Janeiro. A partir de incursões em diversos campos e teorias, os autores dialogam e experimentam na tentativa de alcançarem formulações possíveis de gerar diagnósticos do presente e eixos organizacionais e políticos nos quais a esquerda atual possa superar seus vários e profundos limites e desafios.
Na realidade, o livro não é composto apenas por esse dueto principal. Como os próprios autores explicam, a obra é fruto de uma “grande conversa”, apenas sintetizada no dueto. Ela começou publicamente em uma série de publicações no blog da Boitempo nos idos de 2017, na qual, o próprio autor desta resenha interviu com um comentário. Naquelas publicações, os dois autores se posicionaram através de réplicas sobre as três formas e dimensões da esquerda contemporânea, resumidamente, a institucional-parlamentar, a tradicional-radical, e a fragmentária-pós-moderna, sobre suas respectivas lógicas, complementariedades, insuficiências e conflitos. E, desde então, outras vozes que refletem os dilemas da esquerda no Brasil se somaram ao coro. Na edição da Autonomia Literária, contamos com a presença de Vladimir Safatle, na orelha; de Sabrina Fernandes, no prefácio; de Rodrigo Nunes, no posfácio; além de Luisa Marques, responsável pelas ilustrações.
A metáfora musical, no entanto, não é a escolhida pelos autores para representar esse esforço coletivo. Como o próprio título anuncia, a metáfora escolhida é a arquitetônica. Ou ainda topográfica. Tomar a esquerda como topógrafo, arquiteto e pedreiro – e o mundo (incluindo nele, a própria também esquerda) como terreno a ser trabalhado, eis o experimento no qual a obra se debruça. A divisão do livro é marcada também com nomes bem sugestivos: canteiro de obras, parte onde temos a integralidade do diálogo já visto no blog da Boitempo; caixa de ferramentas, uma tentativa de auto-organização (em ato) das teses dos autores, diante das ideias em debate na parte anterior; e a análise do terreno, na qual temos um esforço da dupla que mais se aproxima de uma clássica “análise de conjuntura”, além de uma mirada final sobre a obra. Todas as partes ambientadas nas ilustrações de Marques que nos remetem a Caetano Veloso: “aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”.
A tensão entre (re)construção e ruína (crise) da esquerda frente à (re)construção e ruína (crise) do mundo (chamada pelos autores de “periferização” – esse lugar no qual temos o “privilégio” de conhecer há alguns séculos) percorre todo o livro. Esse talvez seja o aspecto mais forte e interessante da obra. Os autores conseguem colocar ênfase no caráter positivo e construtivo de toda essa, em parte aparente, ruína. Há nas mais variadas visadas críticas uma busca por encarar a crise, a destruição, o desarranjo. Seja no capitalismo contemporâneo em processos contínuos de desarticulação, nas esferas do trabalho, da economia, da política e da cultura. Seja na esquerda que tenta sobreviver e se refazer nesse novo ambiente. Não para nos afundar na melancolia ou no catastrofismo. Mas para extrair dali alguma potência, mesmo que ainda provisória, uma oportunidade para reconduzir nossa ação política e organizacional. Como diz Sabrina Fernandes, o livro “convida, e desafia, ao debate via incerteza, desconfiança e o terreno fértil da reformulação”. Ou como Sérgio Ferro, figura central da introdução, “reconhecer no inacabado os sinais de uma possível conquista”.
Os autores de fato nos desafiam a pensar uma realidade contraditória a partir de suas próprias contradições – e pautar a ação sob o novo enquadramento que daí surge –, numa insistente fuga de lugares comuns e preservados, portanto confortáveis, tão comuns em nossa prática política. Todavia, nessa contribuição singular, desse olhar mais distante do terreno político das esquerdas que permite uma “meta-resposta” (Rodrigo Nunes) ao tradicional que fazer, não podemos deixar de registrar ao menos duas insuficiências do livro, uma mais epistemológica ou mais política – embora ambas conectadas. Insuficiências que se destacam e ganham corpo pelo menos em algumas partes da obra, que é por demais múltipla e dinâmica – dificultando assim uma resenha crítica nos moldes mais simples e diretos.
A primeira insuficiência, diz respeito ao marxismo. De certa forma, pode-se considerar que seria um exagero dogmático exigir uma atenção especial ao tema do marxismo na contemporaneidade. Mas insistiria na relevância desse tema no livro, ao menos para que ficasse mais claro ao leitor a posição dos autores frente à questão classista e à alternativa socialista, se estas ainda seriam fundamentais na clivagem política, inclusive internamente ao que chamamos de esquerda. O mecanismo utilizado pelos autores para lidar e, ao mesmo tempo suspender, tais questões é adotar certa defesa da interseccionalidade entre as lógicas constitutivas das formações sociais que se refletiriam nas esquerdas. Assim, parece-nos, a questão de classe, e o próprio marxismo, existiriam como mais um arcabouço teórico possível dentre vários, uma diretriz emancipatória ao lado de outras. Acontece que essa solução beira a uma não solução. Em primeiro lugar, a interseccionalidade pode nos levar à “terrível ambivalência”, como dizia Althusser, entre tudo e nada (se tudo influencia tudo, nada é determinante, e o fio estratégico se perde aí). Em segundo lugar, após o exercício analítico de modelagem da multiplicidade da esquerda, os autores se eximem de tomar partido sobre a mesma – apesar de na primeira parte do livro vários incômodos sobre a esquerda realmente existente serem explicitados. O que nos leva a uma segunda insuficiência, de cunho mais político.
Ao focar no ecossistema das esquerdas, os autores acabam também diluindo seu posicionamento em relação aos rumos da esquerda. Essa não é a pretensão dos autores, de fato, e também é o que torna o livro singular. Mas, tratando-se de um confesso esboço de programa de investigação, ainda em construção, podemos ir além e provocar: há como fazer uma “meta-resposta” na luta sem se implicar, em ato, na mesma? A afirmação da pluralidade de respostas das esquerdas e da complexidade “factual” não seria, paradoxalmente, uma forma de não afirmar, não se posicionar (também em relação ao marxismo)? Os autores parecem tentar se remover e se anular de quaisquer direcionamentos mais concretos em nossa conjuntura. Considerarem-se apenas “dois homens brancos” como o fazem, enquanto suposta justificativa, chega ao limite do cômico. Se, a partir dessa posição, na qual os autores se autodemitem como militantes, foi possível um olhar mais apurado sobre nosso terreno, eis um ponto positivo. Porém, há um risco desse momento de distanciamento e reflexão se isolar em si mesmo e se tornar um desvio que se retroalimenta – a organização e sua teoria como fim, não como meio; a constatação da diversidade da esquerda, não a defesa de caminhos mais justos dentro dela.
Adentrar no terreno sempre-já complexo da esquerda é ser sempre-já parcial, partidário. E, como aprendemos com Marx, necessariamente adentrar com uma marca de classe na testa. Aliás, é entrar nesse terreno como uma das arestas a incorporar essa estranha arquitetura – a não só conviver, mas a lutar com as outras arestas, por formas superiores de organização e linha política.
E apesar dessas inconsistências – e também por elas – Arquitetura das Arestas nos presenteia com uma argumentação corajosa sobre nós mesmos e nos coloca de novo a pergunta central para os explorados e oprimidos, proferida por Lênin: que fazer?