Por Zoe Crombie via Screen Queens. Traduzido por Isabela Gesser
Embora o feminismo e o marxismo enquanto estruturas dividam a população de formas diferentes, ou seja, aproximem a análise artística de outra maneira, estes dois conceitos compartilham muito em comum pois cada um se concentra na marginalização institucional na sociedade. Apesar de muito poder ser obtido a partir de um filme utilizando apenas um método, a partir de ambos é possível revelar uma relação ainda mais profunda entre as duas estruturas de poder do patriarcado e do capitalismo via interseccionalidade – neste caso, através da análise do clássico animado e ganhador do Oscar A Viagem de Chihiro.
Com o uso de uma protagonista feminina entre a infância e a pré-adolescência, Chihiro é uma personagem incomum no cinema. Nenhum dos top 10 de bilheteria mundial do ano em que A Viagem de Chihiro foi lançado contavam com uma única protagonista feminina. Isso sinaliza a abordagem subversiva de Miyazaki, e que o filme pode reconhecer ativamente questões feministas, como muitos filmes anteriores feitos pelo mesmo diretor, incluindo Serviço de Entregas da Kiki e Princesa Mononoke. Há também um forte contexto marxista em torno do diretor que em 1964 tornou-se o chefe da Animator’s Union in Japan (União dos Animadores no Japão), alinhando-se com o proletariado, bem como com crenças socialistas. Pode-se argumentar que A Viagem de Chihiro é um filme da categoria C, que em termos marxistas, definido por Comolli e Narboni, constitui-se como um filme que trabalha “contra a maré” por ser estilisticamente sem conteúdo político, mas que se torna por ser “através da crítica praticada sobre ele”. Para demonstrar, A Viagem de Chihiro apresenta uma progressão narrativa incomum que não obedece à estrutura de três atos de Hollywood, nem sempre emprega técnicas de edição que mantêm a continuidade, e inclui imagens japonesas não explicadas para o público ocidental dominante. Essas características formais implicam numa camada ainda mais profunda do significado marxista na obra, que vem à tona através de análises de cenas próximas e justaposição com uma leitura feminista.
Olhando para a premissa e para o enredo de A Viagem de Chihiro, em especial os personagens, a história e o cenário, podem ser identificadas preocupações sutilmente ou abertamente apresentadas sobre classe e gênero. O filme começa com Chihiro, uma menina de dez anos, tropeçando no mundo espiritual com seus pais, que são transformados em porcos por roubar a comida dos espíritos. Ela então deve trabalhar em uma casa de banho como faxineira junto às outras mulheres, a fim de ganhar sua liberdade e transformar seus pais de volta em humanos. Em vez de subir nas fileiras do estabelecimento, como um filme mais individualista e capitalista poderia ter retratado positivamente, Chihiro está focado na sobrevivência – ela deve recuperar seus direitos humanos básicos através do trabalho duro. Aqueles que trabalham na casa devem realizar esse ofício para que sejam reconhecidos como valiosos, além do fato de termos aqueles que não são transformados em animais e que são considerados formas mais inferiores de vida. Essa situação reflete conceitos críticos em torno do capitalismo, particularmente que aqueles sem riqueza institucional devem trabalhar mais para ganhar qualquer tipo de respeito.
Da mesma forma, as preocupações feministas mais sutis do filme podem ser vistas através da personagem de Chihiro, especificamente em seu design. Em vez de ter olhos grandes e maneirismos otimista, algo bastante típico dentre as para personagens femininas em outras animações japonesas (como no anime Sailor Moon), ela tem características sutis e uma expressão mal-humorada, bem retratado como uma menina comum. Isso impede a sexualização da personagem, em especial pelo fato de que grande parte do filme passar por sua perspectiva em que as cenas de baixo ângulo e close-ups indiquem sua solidão em um mundo desconhecido. Tudo isso reflete a noção de Laura Mulvey de “para ser olhada” como um atributo que Chihiro não possui, assim como seu conceito de “o olhar masculino”, que é subvertido pela perspectiva feminizada de Chihiro. Essa androginia é ainda mais enfatizada pela aparência de seu amigo Haku, que é animado com movimentos graciosos, além de suas características convencionalmente femininas e atraentes, por exemplo, um queixo pontiagudo e olhos grandes.
Os fundos em aquarela do filme se destacam com a animação tradicional que se passa sobre edifícios degradados e projetados com uma aparência xintoísta, como nos santuários. Isso se relaciona com a religião japonesa que valoriza fenômenos naturais, e espíritos que habitam objetos muitas vezes mundanos são também incorporados no filme pelos muitos deuses que visitam a casa de banho. Bons exemplos disso são o Espírito Rabanete e os Espíritos do Rio. Acontece que essa aparência também é usada por Miyazaki para criticar as atitudes capitalistas adotadas pela casa enquanto instituição. Após sua chegada ao mundo espiritual, o pai de Chihiro comenta que os edifícios são “falsos”, e provavelmente pertencem a um “parque temático abandonado”. Isso sugere que a aparência xintoísta disfarça uma maneira mais moderna, e talvez menos autêntica de pensar sobre o mundo, em particular as ideias capitalistas e individualistas.
Apesar de estar no comando de uma antiga instituição japonesa, Yubaba se interessa mais pelo ouro e ganho monetário do que pela comunidade dos espíritos. Isso é exemplificado por seu desgosto ao que acredita ser um “Espírito Fedorento”, mas é na verdade um Espírito fluvial poluído. Isso também traz temas ambientalistas, comuns ao trabalho de Miyazaki, que implicam que o consumismo da casa de banho e do mundo no geral está influenciando negativamente o meio ambiente, algo considerado sagrado dentro da religião xintoísta. O carro da família de Chihiro é uma tração nas quatro rodas cheia de bagagem, e quando eles chegam ao local, sua gula e seu apetite pela comida são retratados como algo para provocar nojo, destacado pelo trabalho sonoro. Isso sugere uma fixação moderna na propriedade e no consumo que, em última análise, causa danos infelizes tanto à Chihiro quanto ao meio ambiente. Essa leitura é até refletida nas flores cortadas e removidas da terra que ela recebe de uma amiga, mas logo começam a murchar. Sua necessidade de receber um buquê realmente causou mais danos à natureza, e só a tornou mais gananciosa.
Em termos de interseccionalidade, Chihiro representa a classe mais baixa das estruturas patriarcais e capitalistas ao se tornar uma jovem empregada como faxineira. Yubaba, uma bruxa representativa da burguesia, afirma que ela atribuirá à Chihiro o trabalho mais “difícil” que tem, algo posteriormente representado com a menina participando de todo o esforço físico, como esfregar os pisos e as banheiras imundas das classes altas (os espíritos e deuses). O tamanho desses deuses é destacado pela música bombástica e por imagens ampla, enquanto as empregadas são vistas de um ângulo baixo quando estão na tela. Isso se contrasta com a descrição de “frágil” atribuída à Chihiro que é frequentemente vista com roupas grandes não destinadas a seu tamanho. Enquanto ela trabalha e vive com um grupo de apenas mulheres, outros grupos dentro da casa com ocupações diferentes são mostrados como sendo da mesma espécie, e interagem principalmente com outros semelhantes. Por exemplo, os homens que se assemelham a sapos gerenciando a recepção do negócio. Isso retrata visualmente uma estrutura de classe rígida na qual alguns indivíduos recebem maior poder institucional desde o nascimento de acordo com seu passado, um privilégio não concedido à Chihiro, aparentemente um dos poucos humanos lá. Até mesmo a estrutura física da casa de banho carrega a noção de uma estrutura da classe inserida em que Chihiro inicialmente entra e implora por um emprego no porão para Yubaba, que vive no último andar.
Após começar a trabalhar com essas mulheres, uma montagem retrata o trabalho das quais elas participam, como limpar o chão em sincronia, reforçando ainda que Chihiro não consegue acompanhar. Esse momento indica como os valores da casa atuam sobre os trabalhadores. Como Chihiro não consegue se encaixar naquele espaço, ela é vista não apenas como uma pessoa sem valor, afinal sua identidade enquanto uma menina capaz acaba tornando-a mais insegura. Essa mesma identidade feminina entre as mulheres também é questionada quando, por exemplo, quando seu nome é roubado por Yubaba e alterado para Sen. Enquanto Chihiro é um nome exclusivamente feminino, Sen é mais andrógino.
Atuando como a principal antagonista do filme, Yubaba é uma das figuras mais complexas e interessantes em A Viagem de Chihiro. Enquanto Yubaba se mostra como bruxa poderosa, proprietária e chefe do estabelecimento, ela se posiciona como a personagem mais formidável do filme, tanto a mais próspera de riquezas quanto a mais poderosa ao se tratar de magia. Seu escritório está cheio de joias e outros artefatos valiosos, acumulados sem nenhuma razão discernível além de sua ganância. Portanto, pode-se interpretar que ela se destaca como uma figura do pós-feminismo, geralmente definida como a noção de que o feminismo não é mais necessário, e que as mulheres podem ter sucesso através do capitalismo. A própria antagonista alcançou mais capital do que qualquer outro personagem, homem ou mulher. Como Yubaba é uma figura simbólica dessa ideologia, é pertinente dizer que Miyazaki esteja criticando-a quando a coloca como algoz de Chihiro, e geralmente retratando-a como uma personagem cruel e egoísta. Em vez de ajudar outras mulheres ou tentar lutar contra as estruturas de poder existentes, ela alcançou o topo da hierarquia e continua a subjugar outras que ainda não conseguiram. A única fraqueza que ela demonstra ter é o cuidado que ela deve fornecer a seu bebê, que a domina com seu tamanho excepcionalmente gigante. Isso pode ser visto como uma metáfora de como ela ainda é afetada pelas expectativas de gênero do capitalismo e do patriarcado, apesar de seu sucesso monetário.
Como as estruturas feministas e marxistas se posicionam enquanto críticas à ideologia dominante (patriarcado para o primeiro e capitalismo para o último), pode-se teorizar que muito de A Viagem de Chihiro serve para criticar essas ideologias e como elas são aplicadas. Isso é alcançado de forma mais eficaz pelo personagem enigmático e querido de Kaonashi ou “Sem Rosto”, um ser que começa como um quadro em branco e gradualmente se torna corrompido pelos princípios que os rodeiam na casa, servindo como uma representação do poder de ideias dominantes. Seu design reflete esse conceito: o corpo preto e sem estrutura física no início do filme, assim como a falta de membros visíveis, além da máscara usada que traz uma expressão neutra, ocultando quaisquer facetas de identidade, como gênero, idade ou classe. No início do filme, ele apenas é capaz de emitir grunhidos, sugerindo que não têm o conhecimento à sua disposição para formar palavras e frases, o que reforça ainda mais a noção deles como um ser não corrompido por qualquer tipo de influência externa.
No entanto, quando um sapo macho é encontrado pelos trabalhadores da casa, eles o atraem usando ouro como forma de apelação à sua notável ganância e depois o engolem, ganhando seus atributos capitalistas masculinos. Esta é uma alegoria de como a ideologia influencia indivíduos despretensiosos e inocentes, levando-os a cometer atos cruéis devido à má orientação e transformando o personagem em um símbolo de ganância e excesso. Kaonashi continua a devorar diferentes criaturas da casa de banho, tornando-se cada vez maior e proclamando que “comerá de tudo”, fazendo dele um antagonista quase secundário do filme. Isso é interrompido por Chihiro, que lhes dá alimentos que forçando-o a vomitar as pessoas que foram consumidas, devolvendo-as ao seu estado original. Continuando a leitura alegórica, isso pode ser visto como alguém de uma posição social inferior mostrando-lhes a injustiça do sistema, levando-os a uma maior consciência – como refletido em seu consumo moderado de comida com personagens femininos posteriormente no filme.
A Viagem de Chihiro tende a ser elogiado por seus ambientes belos e detalhados, pelas imagens bizarras e imaginativas e por seus personagens memoráveis. Contudo, por trás disso, existe uma tendência que também merece apreciação: como uma obra-prima da narrativa feminista e marxista, o filme não se destaca apenas como um monumento de animação 2D, mas como um olhar pensativo e perspicaz de como a intersecção de classe e gênero pode determinar muito sobre suas experiências.
2 comentários em ““A Viagem de Chihiro” e as Intersecções do Feminismo e Marxismo”
Olá camaradas, tudo bem? Gostaria de ter acesso ao texto original, o hiperlink não está funcionando. Conseguem fornecer? Muito obrigado!
https://screen-queens.com/2019/06/25/spirited-away-and-the-intersection-of-feminism-and-marxism/