Entre escravidão e liberdade: o paradoxo entrelaçado do Liberalismo

Por Domenico Losurdo traduzido por Eros Viana via International Socialist Review, edição 84, título original “The tangled paradox of liberalism: Between liberty and slavery”. Disponível em: IS Review

O escrito a seguir, como diz o próprio autor, é uma breve introdução ao livro Contra-História do Liberalismo (2006), traduzido magistralmente e publicado no Brasil pela editora Ideias e Letras (Que também traduziu e publicou outras obras deste mesmo autor como Nietzsche e a crítica da modernidade). O livro é talvez a obra prima do historiador e filósofo italiano Domenico Losurdo, que nos deixou em 2018 precocemente. Com excertos tirados de seu próprio livro, neste breve artigo introdutório, o filósofo aponta para sua pesquisa monumental e de fôlego, demonstrando aspectos que serão abordados em maior profundidade e com uma extensa bibliografia e a aparentemente interminável erudição do historiador no livro.


Esta breve introdução é capaz de aguçar a curiosidade e incendiar a mente de qualquer um que tenha topado com a verdadeira hagiografia intelectual-acadêmica que o liberalismo faz de si mesmo e de sua história, convidando o leitor do livro a debater a temática. Em poucas páginas e com recuperações diretamente do livro (Que foram retraduzidas neste texto), Losurdo começa o processo de destruição da hagiografia a-histórica do liberalismo e deixa a cargo do leitor tanto a terminar este processo por si só ao ler o livro, quanto a determinar se a obra foi satisfatória em sua empreitada. O escopo desta homérica obra do antigo professor da Universidade de Urbino tem como foco o que conhecemos como o Ocidente liberal, se preocupando em determinar as relações do liberalismo com grupos historicamente excluídos do poder e, acima do poder: grupos excluídos dos direitos mais básicos. É nesse contexto que Losurdo recupera a relação do liberalismo com a luta da emancipação feminina, com a luta dos povos coloniais, com as lutas de classes (Tanto na metrópole, quanto nas colônias, mas com evidente foco nas metrópoles), além de traçar o panorama definitivo dos projetos sociais-darwinistas e eugênicos que tomaram a mente de liberais através dos séculos.

Por algum tempo, pôde se observar a confusão do aparente “paradoxo” do liberalismo brasileiro escravista, visto e discutido dentro da hagiografia liberal da história como uma “exceção” ou uma “jabuticaba brasileira”. Tal mito a-histórico é levado a baixo não só por obras como as de Losurdo (Em especial esta que se introduz), mas também pela obra clássica do hoje póstumo professor Alfredo Bosi, que foi vitimado pelo terrível ataque ao povo brasileiro que se sucedeu durante a pandemia do coronavírus. A sua obra, Dialética da Colonização, é um clássico que dá conta de esmiuçar e revirar a hagiografia liberal da história de forma a trazer luz sobre todos os elementos mistificantes de sua construção. Bosi aponta, corretamente, que há um “falso impasse” entre “ou escravismo ou liberalismo”:

“O par, formalmente dissonante, escravismo-liberalismo, foi, no caso brasileiro pelo menos, apenas um paradoxo verbal. O seu consórcio só se poria como contradição real se se atribuísse ao segundo termo, liberalismo, um conteúdo pleno e concreto, equivalente à ideologia burguesa do trabalho livre que se afirmou ao longo da revolução industrial européia. Ora, esse liberalismo ativo e desenvolto simplesmente não existiu, enquanto ideologia dominante, no período que se segue à Independência e vai até os anos centrais do Segundo Reinado. A antinomia tantas vezes acusada, e o travo de nonsense que dela poderia nascer (mas como é possível um liberalismo escravocrata?), merecem um tratamento rigoroso que os desfaça.” (BOSI, p. 195-196, 1992)

Não é nenhum absurdo dizer que a obra de Losurdo é o trato rigoroso que desfaz a contradição que Bosi propõe (E faz) já em 1992, acoplado de uma vasta bibliografia e uma erudição e argumentação tão formidáveis quanto, que o próprio Losurdo recuper nesta breve introdução.


Entre escravidão e liberdade: o paradoxo entrelaçado do liberalismo

Nesta breve apresentação, eu tentarei explicar o conteúdo de meu livro, Contra-História do Liberalismo. Este livro tem como alvo responder uma questão chave: o que é liberalismo? Esta pergunta talvez soe supérflua e provocativa ao mesmo tempo. Todos sabemos que liberalismo é a tradição do pensamento e do movimento político cuja preocupação central é a liberdade do indivíduo, de todo indivíduo. Mas é esta a resposta para a minha pergunta, o que é liberalismo? Está correta essa resposta?

Se este é o caso, como devemos situar John C. Calhoun? Este eminente estadista, o vice-presidente dos Estados Unidos no meio do século XIX, apelava a John Locke e fazia uma apaixonada ode à liberdade individual, a qual ele vigorosamente defendia contra qualquer abuso de poder e qualquer interferência do estado. E isto não é tudo. Junto com “governos absolutos” e a “concentração de poder”, ele irrestritamente condenava o “fanatismo” e o espírito de “cruzada”, ao qual ele opunha o “acordo”[1] como o princípio que guiava os genuínos “governos constitucionais.” Com igual eloquência, Calhoun defendia direitos de minorias. Inquestionavelmente, nós parecemos ter todas as características do pensamento liberal mais maduro e atraente. Por outro lado, porém, Calhoun desdenhava das meias-palavras e timidez daqueles que se restringiam a aceitar a escravidão como um “mal” necessário. Não, Calhoun declarava a escravidão como sendo um “bem positivo” ao qual a civilização não podia renunciar. Ele repetidamente denunciou a intolerância e o espírito de cruzadas, não para desafiar a escravização de Negros ou a cruel caçada de escravos fugitivos, mas exclusivamente para criar a imagem de abolicionistas como “cegos fanáticos”. Negros não estavam entre as minorias defendidas com tal vigor e erudição legal. Então, é Calhoun um liberal? Nós estamos diante de um dilema. Se respondermos essa pergunta com uma afirmativa, nós não podemos mais manter a imagem tradicional (e edificante) do liberalismo como o pensamento da volição[2] da liberdade. Se, por outro lado, nós respondermos na negativa, nos encontramos confrontando um novo problema e uma nova questão, que não é menos constrangedora que a primeira.

Como devemos situar John Locke? Como o renomado historiador da escravidão David Brion Davis sublinha “o último grande filósofo a buscar uma justificativa para a absoluta e perpétua escravidão.” Ele teve parte em escrever a provisão constitucional segundo a qual “todo homem livre da Carolina deverá ter poder absoluto e autoridade sobre seus escravos Negros, de qualquer opinião ou religião”. Se Calhoun era um proprietário de escravos, o filósofo inglês também tinha bom investimento no tráfico de escravizados: ele era acionista na Royal African Company[3]. Não podemos excluir Calhoun da tradição liberal, enquanto consideramos Locke um liberal. O paradoxo que estamos analisando se torna mais forte: o pai do liberalismo não é liberal, na realidade?

O problema que estamos discutindo não é restrito à algumas figuras individuais. O crescimento da população escrava marcou a era clássica do liberalismo. Como Robin Blackburn nota em The Making of New World Slavery, “A população total de escravos nas Américas chegou a aproximadamente 330.000 em 1700, perto de três milhões em 1880 e finalmente atingiu seu auge em mais de seis milhões na década de 1850”. No meio do século XIII, foi a Grã-Bretanha que possuía o maior número de escravizados (870.000). O fato é inesperado.

Embora seu império fosse muito mais extenso, a Espanha vem bem atrás. O segundo lugar era tido por Portugal, que possuía 700.000 escravos e foi de fato quase que uma semi-colônia da Grã-Bretanha: muito do ouro extraído por escravos brasileiros acabava em Londres.

Quanto aos Estados Unidos, foi uma das últimas nações nas Américas a abolir a escravidão. A escravidão tinha papel importante na história do país que nasceu da liberal Revolução Americana. Por trinta e dois dos primeiros trinta e seis anos da existência dos Estados Unidos, proprietários de escravos ocuparam a posição de presidente, incluindo George Washington (o grande militar e político protagonista da revolta anti-Britânica), bem como Thomas Jefferson e James Madison (autores, respectivamente, da Declaração da Independência e da Constituição federal de 1787).

De forma resumida, a tese segundo a qual o liberalismo é sinônimo com liberdade e defesa da liberdade não se sustenta. Reconstruindo a história das duas revoluções liberais, nós vemos um entrelaçamento da retórica da liberdade com a realidade da escravidão Negra.

Entrelaçamento da retórica e da realidade

Este entrelaçamento é paradoxal e constrangedor. Podemos então entender a tendência a reprimi-lo. Por exemplo, Hannah Arendt argumenta desta forma: reconhecidamente, a escravidão desempenhou um grande papel na sociedade americana (Estadunidense), mas ao mesmo tempo a “indiferença” em relação às condições dos Negros era a norma histórica nos dois lados do Atlântico. Esta afirmação está longe de correta. Na época da Revolução Americana, podemos ler uma forte crítica desta instituição em autores como Condorcet na França ou John Millar na Escócia. Condorcet observou, “O [colonialista] Americano esquece que negros são homens, ele não tem nenhuma relação moral com eles: para ele, eles são apenas objetos do lucro … e tal é o excesso do seu estúpido desprezo por essa infeliz espécie que, quando volta a Europa, ele se indigna ao vê-los vestidos como homens e colocados ao seu lado.” Millar denuncia “a chocante barbaridade a qual os negros em nossas colônias estão frequentemente expostos”. Mas a mais significativa testemunha talvez seja o francês defensor da escravidão, Pierre Malouet, que amargamente notou seu isolamento: “O extremamente poderoso império da opinião pública … agora oferece seu apoio àqueles na França e na Inglaterra que atacam a escravidão negra e buscam sua abolição.”

Na realidade, a tese formulada por Arendt pode até ser invertida. Na era clássica do liberalismo, nós vemos não só o florescimento da escravidão, mas o florescimento de uma escravidão caracterizada pela completa e sem precedentes desumanização do escravo. Com o triunfo do mercado, o escravo virou um bem móvel: a família do escravo era inexistente; todo membro individual de sua família podia ser vendido e comprado. O triunfo do mercado foi o triunfo da escravidão de bens privados[4]. Com o florescimento do liberalismo e do secularismo, a coroa não era mais capaz de impor respeito pela família escravizada ou outras limitações sobre o proprietário de escravos em nome da religião: as interferências do poder político sobre a propriedade desapareceram completamente. O dono da propriedade poderia dispor livremente de sua propriedade, incluindo seus escravos, sem restrições. Ao mesmo tempo, com o advento de corpos representativos e autogoverno, nós vemos as aprovações de leis cada vez mais severas proibindo relações maritais e sexuais interraciais, tornando-as um crime. Nós vemos a codificação de uma casta hereditária de escravos, definidos pela cor de sua pele. O triunfo da escravidão de bens privados é, portanto, o triunfo da escravidão de bens privados racial.

Muitos contemporâneos estavam conscientes deste novo desenvolvimento. O abolicionista britânico John Wesley escreveu que, “a escravidão americana” era “a mais vil que jamais vimos sob o Sol”. Isto foi reconhecido por James Madison, um dos pais fundadores da Revolução Americana, um proprietário de escravos e um liberal, que observou, “O mais opressivo domínio exercido pelo homem sobre o homem” – poder baseado na “mera distinção de cor” – foi imposto no “período mais iluminado”.

Desafio intelectual.

O entrelaçar entre liberdade e escravidão já era um desafio intelectual imediatamente após a Revolução Americana. A fim de explicar este ponto, nós podemos comparar duas viagens aos Estados Unidos feitas por Alexis de Tocqueville e Victor Schoelcher. A primeira é bem conhecida. A segunda não é menos importante. Após a revolução de fevereiro de 1848, Schodcher se tornou ministro do governo francês e foi protagonista da abolição definitiva da escravidão nas colônias francesas. As duas figuras visitaram os Estados Unidos aproximadamente ao mesmo tempo, e ambos notaram este entrelaçamento de que falamos. De um lado, para a comunidade branca, você tem o Estado de Direito, autogoverno, participação na vida política, assim por diante. Por outro lado, ambos percebem não só a escravização dos negros, mas também a dizimação e extermínio da população nativa. Enquanto analisavam as relações sociais e contradições desta sociedade, ambos Tocqueville e Schoelcher deram uma demonstração de honestidade intelectual. Mas suas conclusões são opostas uma da outra. Enquanto presta atenção sobretudo para comunidade branca, Tocqueville no título de seu livro fala de “democracia na América” e celebra os Estados Unidos como o país mais livre do mundo. Pelo contrário, Schoelcher está bastante indignado com o “preconceito de pele” dos brancos e escreve que o povo dos Estados Unidos poderia ser considerado “os mais ferozes mestres na Terra”. Eles são autores de “um dos mais desapontadores espetáculos que o mundo já ofereceu”, ele notou, adicionando que “Não há crueldade da mais bárbara época que não tenha sido cometida pelos estados escravistas da América do Norte”. Qual deles está certo, Tocqueville ou Schoelcher? Talvez ambos estivessem errados. Nenhum dos dois consegue explicar o entrelaçar da liberdade e da escravidão. Então, como podemos definir esta ordem política e social? Seguindo a sugestão de diversos distintos historiadores e sociólogos dos EUA, nós devemos falar de uma “Herrenvolk democracy[5], uma democracia que se aplicava exclusivamente à “raça superior”. Apenas deste modo nós somos capazes de entender o entrelaçar da liberdade e da escravidão que tem caracterizado a sociedade dos EUA e a história do liberalismo.

Consequências negativas para brancos, também.

Eu tenho dito que, na avaliação da sociedade americana (estadunidense) ambos Tocqueville e Shoelcher estavam errados. Mas agora eu devo adicionar que o primeiro está mais errado que o segundo. Por que? Mesmo se abstrairmos as condições dos negros e das populações indígenas – mesmo que consideremos apenas a comunidade branca – a conclusão confortável de Tocqueville é falha. O poder absoluto exercido sobre negros escravos acabou tendo consequências negativas e até dramáticas para brancos, também.

Vamos prestar atenção a Tocqueville: negros haviam sido “proibidos … sob penalidades severas, de serem ensinados a ler ou escrever”. Após a rebelião escrava de Nat Turner, se tornou um crime na Georgia prover escravos com papel e materiais de escrita. Mas essas medidas racistas tiveram consequências para brancos bem com para Negros. Particularmente significante foi a legislação que baniu a relação sexual interracial e os casamentos. Peguemos Pensilvânia nas primeiras décadas do século XVIII (nas décadas seguintes à Revolução Gloriosa e do nascimento da Inglaterra liberal). Qualquer pessoa negra livre pega violando o banimento da miscigenação (como veio a ser chamada depois), arriscava ser vendida como um escravo. Isto envolvia sérias consequências para seu parceiro branco, que teria de sofrer a separação forçada do seu amado e a terrível punição infligida nele. Mais sumária foi a legislação em Nova Iorque que tratava todas as crianças filhas de mães escravas como escravas. Como foi justamente notado, ao escravizar “suas crianças e as crianças de suas crianças”, as pessoas brancas estavam de fato “escravizando a si mesmas”.

E isto não é tudo. De acordo com provisões feitas na Virgínia no começo do século XVIII, não apenas aqueles diretamente responsáveis pela relação sexual ou marital seriam punidos: “penas extremamente severas” eram prescritas para o padre culpado de ter consagrado um laço familiar interracial. E por isso a liberdade religiosa em si própria era de alguma forma afetada.

Nós podemos agora entender melhor a profunda verdade na observação de Marx e Engels que um povo não pode se libertar enquanto oprime outro. As medidas necessárias para perpetuar a escravidão acabaram severamente restringindo a liberdade dos próprios homens brancos. Como Schoelcher notou, o linchamento ameaçava qualquer um que ousava a desafiar a “maléfica propriedade” e que “demandava liberdade para todos os membros da raça humana”.

Nós podemos fazer uma comparação. A situação na Virgínia imediatamente depois da revolta escrava de 1831 foi descrita como a seguinte: “Serviço militar [Feito por patrulhas brancas] é feito dia e noite, Richmond lembra uma cidade sitiada … Os negros não irão se arriscar a se comunicar um com o outro por medo da punição”. Em uma carta escrita no fim de 1850, Joel R. Poinsett descreveu a situação no Sul nos anos precedendo a Guerra Civil: “Nós estamos sinceramente cansados dessa atmosfera de violência insana … Existe um grupo que é averso a homens violentos e medidas violentas, mas eles são aterrorizados ao ponto de submissão até mesmo para trocar opiniões com outros que pensam como eles próprios, para que não sejam traídos”. Um historiador contemporâneo que citou o testemunho de Poinsett concluiu que até mesmo os mais brandos dos dissidentes eram compelidos pelo terror a “segurar suas linguas, matar suas dúvidas, enterrar as suas ressalvas”.

Império Britânico e Escravidão

Até agora eu falei acima de tudo sobre os Estados Unidos. Será a democracia para a raça superior uma instituição peculiarmente americana (Estadunidense)? Analisemos a ordem política e social da Inglaterra. A escravidão desempenhou um papel importante na história britânica também. Até pelo menos a abolição da escravidão nas colônias, no Império Britânico nós vemos algo como a democracia da raça superior em trabalho. É verdade, a abolição da escravidão nas colônias britânicas se deu trinta anos antes da emancipação dos escravos dos EUA, mas não devemos perder de vista o fato de que nas colônias britânicas, os “coolies[6]” da Índia e da China tomaram lugar dos antigos escravos negros.  Não por acaso, em sua chegada nas colônias britânicas, os coolies foram colocados em alojamentos reservados para escravos. Na Grã-Bretanha em 1840, o Lorde John Russel expressou sua inquietação com o advento do “novo sistema de escravidão”. Mas já em 1834, o ano da abolição da escravidão nas colônias britânicas, o autor liberal Edward Gibbon Wakefield reconheceu que os “escravos amarelos” (coolies) estavam começando a tomar o lugar dos “negros”, assim como os negros tinham tomado o lugar dos “escravos vermelhos”[7].

Na realidade, a democracia da raça superior marca a história do Ocidente liberal como tal. Tomemos como exemplo a França liberal durante as décadas de 1830 e 1840 e o autor clássico liberal, Tocqueville. Para executar a conquista da Argélia, ele estava preparado para tomar as mais fortes medidas. Ele critica aqueles na França que consideram “repreensível que as colheitas sejam queimadas, silos sejam esvaziados, e por último que homens, mulheres e crianças desarmados sejam tomados. Para mim, isto é uma necessidade lamentável, mas uma necessidade que qualquer um que queira fazer guerra contra os árabes deve se submeter.” Tocqueville não tinha hesitação em lançar uma palavra de ordem radical: “Destruir qualquer coisa que pareça um ajuntamento permanente de pessoas ou, em outras palavras, uma vila. Eu creio que é de importância absoluta não deixar que nenhuma vila viva, ou que surja, na região controlada por Abdalcáder ” (o líder da resistência na Argélia).[8]

Ao recomendar tal abordagem radical, Tocqueville segue o modelo dos EUA ambos para a guerra e para a paz. Em uma carta para um amigo, Francis Lieber, ele escreve: “É impossível considerar a colonização em África sem pensar nos grandes exemplos fornecidos pelos Estados Unidos neste campo”. Na Argélia, também, “a propriedade comum da tribo não é baseada em nenhum título.” Não há problema em expropriar os nativos ao reservar “as mais férteis terras” aos colonos franceses. Para atrair os colonos, “é primeiro necessário dar a eles grandes oportunidades para fazerem suas fortunas”. Claro, não há igualdade entre colonos franceses de um lado, e nativos do outro. Na Argélia, a introdução e implementação de “dois conjuntos de leis claramente distintas” é necessária “porque nós somos confrontados com duas sociedades claramente separadas. Quando se está lidando com europeus, absolutamente nada nos impede de trata-los como se eles estivessem sozinhos; as leis promulgadas para eles devem sempre ser aplicadas para eles.”

Teoria para a minoria

No império colonial francês, nós vemos novamente esta lógica e a realidade da democracia da raça superior. Ao celebrar a Primeira Guerra do Ópio como uma demonstração da irresistibilidade do poderio Ocidental, Tocqueville fala com entusiasmo da “escravização de quatro quintos do mundo por parte da quinta parte”. Aqui o liberalismo assume explicitamente a forma de uma teoria que nega a liberdade para a maioria esmagadora da humanidade. Em uma ocasião diferentes, Tocqueville enfatizava que “alguns milhões de homens” (Ocidentais) estavam destinados a se tornarem “os dominadores de toda sua espécie” (A humanidade em sua totalidade), um resultado que era “claramente pré-ordenado na visão da Providência”.

John Stuart Mill talvez seja mais sóbrio que Tocqueville. Mas nem ele entretinha nenhuma dúvida que o Ocidente tinha o direito e o dever de exercer “despotismo” sobre “raças” que estavam ainda em sua “menoridade”, que eram obrigados a observar “absoluta obediência” a fim de serem colocados no caminho do progresso. Este é um ponto que Mill enfatizava firmemente: um “vigoroso despotismo” feito pelo Ocidente acima dos povos atrasados ou “bárbaros” estava no interesse da civilização. “Sujeição direta” das “populações atrasadas” pelas “mais avançadas” já era “comum”, mas se tornaria “universal”. Mais uma vez nós vemos a dialética através da qual a teoria liberal da liberdade se torna em uma justificativa e celebração do despotismo que a “comunidade dos livres” ocidental é chamada a exercer em uma escala global.

Até aqui eu não falei sobre a classe trabalhadora metropolitana. Nós devemos agora focar neste objeto enquanto analisamos a condição da classe trabalhadora sobretudo na Inglaterra. Marx comentava que os trabalhadores industriais modernos sob o capitalismo são os escravos modernos – escravos assalariados. É apenas uma metáfora literária? Em 1864, o Saturday Review observou que os pobres na Inglaterra formavam “uma casta apartada, uma raça”, colocados em uma condição social que não passava por alterações “do berço até a cova “e que era separada do resto da sociedade por uma barreira similar àquela existente na América entre brancos e negros.

Espera-se do homem pobre ou da criança da Inglaterra que ele foi posto por Deus, exatamente como o negro deve lembrar a pele que Deus deu a ele. A relação nos dois casos é uma relação de perpétua superioridade a perpétua inferioridade, de um chefe para o seu dependente, e nenhuma quantidade de gentileza ou bondade é observada para alterar esta relação.

A divisão social é ao mesmo tempo um tipo de divisão racial. Na realidade, um apartheid social-racial é o que parece dividir as classes trabalhadores das classes acima. Na Inglaterra do século XVIII, o Duque de Somerset fez com que seu cocheiro fosse precedido por outras pessoas a cavalo que eram encarregadas de limpar o caminho a frente a fim de poupar o nobre do incômodo de se encontrar com pessoas e olhares plebeus. Um século mais tarde, o economista inglês Nassau William Sênior visitou Nápoles, ele ficou ultrajado com a mistura de classes: “Em países frios, as classes degradadas se mantêm em casa, aqui elas vivem nas ruas”. Pior ainda, eles estavam tão mesclados com as classes acima que viviam nos porões dos palácios aristocráticos. O resultado? “Você nunca está livre da visão, ou, na realidade, do contato da repugnante degeneração”.

Classes trabalhadoras excluídas da liberdade

Assim como os povos coloniais ou pessoas de origem colonial, as classes trabalhadoras metropolitanas também não eram parte da comunidade dos livres. Esta exclusão aparece de forma bem clara para os habitantes das casas de trabalho onde os desempregados, vagabundos e os pedintes eram aprisionados.  Jeremy Bentham[9] incansavelmente elogiou os benefícios das casas de trabalho, as quais ele tinha como objetivo aperfeiçoar ainda mais, localizando sua instituição em um prédio “panóptico”, isto é um prédio que permitia ao diretor exercer um controle total e secreto ao observar todo e qualquer aspecto do comportamento de seus encarcerados a qualquer momento. Desta forma a eficiência econômica desta instituição total irá crescer:

Qual é o controle que qualquer outra indústria pode exercer sob seus trabalhadores, igual ao controle que minha indústria [nas casas de trabalho] têm sobre os meus? Qual é o outro proprietário que pode reduzir seu trabalhador, se ocioso, a uma situação perto da fome, sem que ele vá para outro lugar? Qual é o outro proprietário, cujos homens jamais podem se embriagar a menos que ele próprio escolha que eles devem fazê-lo e quem, que está tão apartado da possibilidade de aumentar seus salários via cooperação [sindical], se vê obrigado a aceitar qualquer insignificante valor que esteja no melhor interesse de seu chefe de permitir?  … E qual outro mestre ou proprietário que tem a aparência de presença constante, na realidade é presença do quanto ele achar necessário, tem cada olhar e cada movimento de seu trabalhador sub sua tutela?

Sem a liberdade negativa, os encarcerados da casa de trabalho podem até mesmo se tornarem em objetos de experimentos. O melhor material para experimentação são as crianças de camadas populares, Bentham escreveu: “Uma casa de inspeção, na qual um grupo de crianças vivessem desde seu nascimento, permitiria um número suficiente de experimentos …”. Um experimento vale a rememoração. Ao prender crianças filhas de delinquentes e “suspeitos” nas casas de trabalho, era possível, como observou Bentham, produzir uma “classe nativa” que seria distinta por ser uma classe laboriosa e com um senso de disciplina. Se o casamento precoce fosse incentivado nessa classe, tratando a prole como aprendizes até que eles obtivessem a maioridade, as casas de trabalho e a sociedade iria dispor de uma força de trabalho inesgotável da mais alta qualidade. Em outras palavras, através da “revolução mais gentil” – a revolução sexual – a “classe nativa”, que se propagasse de forma hereditária de uma geração a outra, seria transformada em uma raça nativa.

A esse ponto podemos fazer uma observação geral. Quantos livros foram escritos que fortemente condenam a transformação da utopia revolucionária em uma repugnante distopia?  O mesmo processo que tomou parte dentro da história do liberalismo, mas com uma importante diferença. A “mais gentil das revoluções”, imaginada por Bentham demonstra característica repugnantes desde seu começo. Sempre pelo objetivo de produzir uma classe ou raça de trabalhadores o mais dócil possível. Na França, Abbé Sieyès[10] entregava-se ao pensamento de uma utopia eugenista (ou distopia) que é ainda mais radical que a de Bentham. O liberal francês imaginava um “cruzamento” (croisement) entre macacos e “negros” afim de criar seres domesticados adaptados ao trabalho servil: “a nova raça de macacos antropomórficos”.

Onda social-darwinista

Como podemos ver, o que chamaríamos hoje de uma onda social-darwinista existia no pensamento liberal desde seu princípio. Contudo, o elemento social-darwinista foi acentuado conforme as classes populares, tremendo a sua subalternidade tradicional, interveio diretamente na cena política para afirmar seus direitos. Herbet Spencer condenou qualquer interferência estatal na economia com o argumento de que não se mexer na lei cósmica que exigia a eliminação dos inaptos e das falhas da vida: “Todo o esforço da natureza é o de se livrar de tal – é o de limpar o mundo tirando-os, para criar espaço para algo melhor”. Todos os homens eram sujeitos ao julgamento divino: “Se eles são suficientemente completos para viver, eles vivem, e é bom que eles vivam. Se eles não são suficientemente completos para viver, eles morrem, e é melhor que eles morram”. Nós podemos ler a mesma atitude em muitos outros autores liberais.

Cada passo da luta dos trabalhadores por reconhecimento foi recebido coma oposição das elites liberais. Por exemplo, Tocqueville condenou a constituição das uniões sindicais [trade unions] e a regulação e redução da jornada de trabalho como sendo violações da liberdade.

E quem foram os protagonistas da luta contra a discriminação racial e do estado racial? Não foram os liberais. Como é bem sabido, a abolição da escravidão nas colônias francesas tomou parte sob a égide da grande revolução escrava em São Domingos [Haiti], liderada por Toussaint L’Ouverture. No caso da abolição da escravidão nas colônias britânicas e nos Estados Unidos, nestes casos também, o papel decisivo não foi tomado pelos liberais. Na realidade, em círculos liberais a crítica ao abolicionismo ou, pelo menos, do radicalismo abolicionista, era bem difundida. Talvez a opinião de correntes dominantes de círculos liberais é melhor expresso por Francis Lieber[11] que, após condenar os abolicionistas como sendo “Jacobinos”, concluiu: “Se as pessoas devem ter escravos é de seu assunto pessoal mantê-los”. Uma visão bastante liberal de fato: propriedade, incluindo a propriedade de escravos, é uma questão privada.

Liberalismo na era moderna

Até agora, eu falei sobre a história do liberalismo. Mas alguém pode se opor e indagar: qual é a significância da história que você desenhou? A emancipação parcial da classe trabalhadora, dos povos coloniais, e das mulheres, não foi um resultado espontâneo da evolução do liberalismo. Até mesmo no começo do século XX, antes da Revolução de Outubro, discriminação baseada na propriedade e na riqueza não havia desaparecido (na Inglaterra, por exemplo, a Casa dos Lordes era ainda um monopólio da nobreza e da alta burguesia); em todo lugar as mulheres não tinham direitos políticos; e o regime da supremacia branca não apenas nos Estados Unidos, mas também na relação entre o Ocidente e o resto do mundo. No século XX, no imediato resultado das revoluções radicais, tudo mudou: pelo menos na letra da lei e na teoria, as três grandes discriminações (contra as classes populares, povos coloniais, e mulheres) foram abolidas. Mas agora, após a recuada ou enfraquecimento do desafio representado pelos movimentos de trabalhadores de inspiração socialista, não podemos negligenciar as trilhas da contrarrevolução no Ocidente. Na Europa, passo-a-passo, o estado de bem estar social está sendo destruído. A destruição prática vai de mãos dadas com a mudança na teoria, também. Já na década de 1970, Friedrich Hayek criticou os “direitos econômicos e sociais” proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas em 1948 como sendo o resultado da influência devastadora exercida pela “Revolução Marxista Russa”.

A nível internacional, nós vemos o retorno da guerra como um instrumento “normal” da política externa. Essas guerras são legitimadas e até mesmo celebradas por serem “intervenções humanitárias”. De forma breve, os países que são alvos são considerados como não-possuidores de soberania, em prática são como colônias.

Hoje em dia, nós vemos uma resistência, algumas vezes tímida algumas vezes forte, contra a destruição dos “direitos econômicos e sociais” e contra as guerras coloniais ou neocoloniais. Esta luta tem como alvo classe dominante e a ideologia de que se gaba o seu liberalismo. É por esse motivo que eu acredito que a verdadeira imagem do liberalismo e de sua história podem ser úteis para o movimento de resistência que precisamos agora mais que nunca.


[1]Nota de tradução: A palavra utilizada é “compromise”, ou seja, “compromisso” ou “acordo” com uma parte a que alguém se opõe, ou seja, é uma conciliação entre duas pessoas de pensamentos diferentes.

[2] Nota de tradução: Volição é a ação ou efeito de escolher.

[3] Nota de tradução: a Royal African Company, ou Companhia Real Africana, foi uma das maiores instituições do brutal tráfico transatlântico, ligada profundamente à coroa inglesa em sua brutal escravização e expropriação da África e das Américas, sobretudo, em momento de acumulação primitiva, explicado e denunciado por Marx extensivamente no primeiro livro de O Capital, sobretudo no capítulo 24.

[4] Nota de tradução: aqui o autor bate na tecla da diferenciação da escravidão antiga, por exemplo no modo de produção escravista grego no qual havia a escravidão por dívida, do mundo antigo, em comparação com a escravidão do mundo moderno, que aumenta quantitativamente a escala e o nível de brutalidade e de desumanização. Os termo utilizados para diferenciar  um do outro são “chattel slavery” e “slavery”. A chattel slavery que surge na era da modernidade burguesa, é a escravidão em que o escravizado é a propriedade privada, onde o cativo é destituído totalmente de sua humanidade.

[5] Nota de tradução: “Democracia do povo escolhido”, em português.

[6] Nota de tradução: coolie é uma categoria de trabalho servil ligada à colonização da Índia e da China em sua maioria, mas em geral às colônias britânicas no Sudoeste Asiático. Estas pessoas eram forçadas em um tipo de trabalho servil análogo à escravidão propriamente dita e eram transportadas ao redor do mundo, onde quer que o Império Britânico, sobretudo, “precisasse”, em um sistema parecido em forma com a brutal escravidão negra do tráfico do atlântico. Esta forma de trabalho brutal com base na exploração colonial ganhou “adeptos” em decorrência da abolição da escravidão e da pressão para o fim do tráfico de escravizados negros, no começo do século XIX, substituindo a força de trabalho negra pela força de trabalho asiática, com uma brutalidade colonial semelhante, mas em escala reduzida. Tal prática foi adotada por impérios coloniais como França, Portugal e Espanha com o incentivo e uso indiscriminado vindo da Inglaterra, suposta benfeitora na luta anti-escravidão, crescendo sobretudo após a década de 1830. A palavra ainda hoje, em língua inglesa, é um termo racista usado para designar pessoas de ascendência asiática, sobretudo indiana.

[7] Nota de tradução: referência à população nativa dos Estados Unidos.

[8]Nota de tradução: refere-se ao emir árabe que lutou contra os franceses Abdalcáder. Até hoje é lembrado pelos argelinos como uma espécie de herói nacional.

[9] Nota de tradução: Jeremy Bentham (1748 – 1832) foi um filósofo e jurista inglês, amplamente considerado um dos pais do utilitarismo.

[10] Nota de tradução: Emmanuel Joseph Sieyès foi um político e teórico da política do pensamento clássico do liberalismo francês, com importantes intervenções teóricas tanto quanto práticas na política de seu tempo.

[11] Nota de tradução: Francis Lieber foi um jurista e famoso político teuto-americano.

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