Por Bob Jessop de “The Capitalist State: Marxist Theories and Methods”, traduzido por Pedro Felipe Narciso.
No entanto, embora a estatura teórica e política de Gramsci não estejam em dúvida, há muitas divergências quanto ao significado exato de seus conceitos e de suas inter-relações. Isto é especialmente verdade para os cadernos do cárcere. Pois a interpretação desses escritos fragmentários e não sistemáticos é excessivamente complicada por seu caráter exploratório e provisório; ideias radicalmente novas estão sendo elaboradas em estruturas que geralmente são inapropriadas e / ou obsoletas, bem como através de uma série de investigações históricas concretas e não através dos métodos de derivação mais abstratos e formalizados adotados por Marx em O Capital. Certamente esses estudos não são a ocasião para Gramsci apresentar uma série coerente e polida de conclusões gerais sobre a dominação política de classe na época imperialista.
HEGEMONIA, FORÇA E PODER DE ESTADO
Uma vez que nos concentramos no poder de Estado no nível da formação social, e não na forma do aparelho estatal no nível do modo de produção, é essencial introduzir um sistema de conceitos muito mais complexo, capaz de organizar nossas análises das bases sociais do poder de Estado e a natureza das crises políticas. De fato, como foi observado nas discussões das teorias do “stamocap” (Capitalismo Monopolista de Estado) e da ‘forma-derivação’, há um reconhecimento crescente da necessidade de romper com as formas mais grosseiras da teoria do Estado e desenvolver análises mais sofisticadas do Estado capitalista e seu papel na reprodução social. E é aqui que os estudos de Antônio Gramsci e da escola “neo-Gramsciana” são mais relevantes. Pois esses teóricos investigaram a dialética entre coerção e consentimento, a especificidade das crises políticas e estatais, a mediação institucional das práticas ideológicas e sua efetividade social, a natureza dos antagonismos democrático-populares, bem como as lutas de classes e os problemas da estratégia revolucionária no capitalismo avançado. Antes de discutir os principais representantes da abordagem “neo-Gramsciana” da teoria do Estado trato, no entanto, do trabalho do próprio Gramsci.
GRAMSCI E O PODER DE ESTADO
Antônio Gramsci compartilha com Lenin e Trotsky a distinção de ser um dos três teóricos marxistas mais significativos e influentes da época imperialista, além de ser diretamente ativo na política comunista revolucionária. Mas, enquanto as opiniões de Lenin e Trotsky foram decisivamente moldadas pelo processo revolucionário na Rússia atrasada (“o Oriente”), Gramsci preocupou-se acima de tudo com as condições para uma revolução bem-sucedida nas sociedades capitalistas mais avançadas (“o Ocidente”). Estamos mais preocupados aqui com seus pontos de vista sobre esse assunto (especialmente como desenvolvido nos escritos prisionais de 1929 a 1936) do que com seu papel anterior no movimento dos conselhos das fábricas de Turim e na formação do PC da Itália ou suas principais contribuições para Epistemologia e filosofia marxista. Pois é em suas teorias do poder e da ideologia de Estado que a originalidade e a contínua influência de Gramsci estão profundamente enraizadas.
No entanto, embora a estatura teórica e política de Gramsci não estejam em dúvida, há muitas divergências quanto ao significado exato de seus conceitos e de suas inter-relações. Isto é especialmente verdade para os cadernos do cárcere. Pois a interpretação desses escritos fragmentários e não sistemáticos é excessivamente complicada por seu caráter exploratório e provisório; ideias radicalmente novas estão sendo elaboradas em estruturas que geralmente são inapropriadas e / ou obsoletas, bem como através de uma série de investigações históricas concretas e não através dos métodos de derivação mais abstratos e formalizados adotados por Marx em O Capital. Certamente esses estudos não são a ocasião para Gramsci apresentar uma série coerente e polida de conclusões gerais sobre a dominação política de classe na época imperialista.
Portanto, é particularmente importante apresentar algumas diretrizes para localizar o trabalho de Gramsci em seu contexto histórico e teórico. Primeiro, como Gramsci se preocupava principalmente com questões de estratégia política, deve-se lembrar dos eventos e circunstâncias com os quais ele estava preocupado. Acima de tudo, isso inclui a derrota do movimento de conselhos de fábricas italiano em 1920, a bem-sucedida tomada do poder de Estado na Revolução Russa, os problemas da construção socialista na União Soviética, a crise do Estado liberal e o crescimento do fascismo com referência especial para a Itália, os problemas estratégicos e faccionais do PCI e do Comintern, o impacto da crise econômica de 1929-1932 na situação política da Europa e da América e, por último, as múltiplas implicações da mudança tecnológica nas relações sociais do capitalismo. Em segundo lugar, ao responder a tais eventos e circunstâncias, Gramsci estava particularmente ansioso por enfrentar a influência difundida e variada do economicismo dentro do movimento operário. Contra essa tendência, ele contrapôs uma análise sobre a influência dos momentos políticos e ideológicos e desenvolveu uma nova abordagem para o problema tradicional das relações entre base e superestrutura. Terceiro, como a teoria política de Gramsci está ligada a problemas definidos da estratégia revolucionária (e apesar do Gramsci preso tender a definir esses problemas em termos globais e épicos) ele elabora conceitos e princípios que são relevantes para a prática política em conjunturas determinadas em Estados-nação específicos. Assim, Gramsci se preocupa menos com a definição de leis abstratas do movimento econômico ou com o papel geral do Estado como um “capitalista coletivo ideal” em um modo de produção puro do que com a especificação das complexas relações entre uma pluralidade de forças sociais envolvidas no exercício do poder de Estado em uma dada formação social. Finalmente, dada a variedade de interpretações do trabalho de Gramsci, vale a pena estabelecer uma regra metodológica geral para o estudo da teoria política marxista. Nomeadamente, quando um teórico apresenta toda uma série de conceitos e princípios de explicação relacionados a um problema específico esses devem ser considerados como um sistema concatenado, qualificado reciprocamente, em vez de ser tratado isoladamente ou de maneira unilateral. Essa regra já foi enfatizada ao considerar os estudos de Marx e Engels sobre o Estado e também é altamente relevante para uma análise da abordagem teórica de Gramsci.
A rejeição resoluta de Gramsci a todas as formas de economicismo não significa que ele considerasse as qualidades específicas do modo de produção capitalista como sem importância. Pois, embora ele não tenha dado uma grande contribuição original à teoria econômica marxista (a menos que incluamos sua tentativa de romper com o próprio economicismo), Gramsci sempre aceitou seus princípios fundamentais e os integrou em seus estudos políticos. Assim, ele insistiu que o capitalismo era um sistema de produção contraditório e historicamente limitado, baseado na exploração capitalista do trabalho assalariado, que o capitalismo preparava as condições materiais para uma transição ao socialismo e que somente a classe trabalhadora poderia liderar uma revolução para eliminar a opressão e a exploração. Ele também orientou sua estratégia revolucionária em termos das condições associadas à crescente concentração e centralização do capital industrial, à eliminação tendencial da livre concorrência através de monopólios e trusts, ao crescente peso dos bancos e do capital financeiro, à consolidação internacional do imperialismo e a crise geral do capitalismo. Tais preocupações não são, é claro, de forma alguma extraordinárias, como já vimos em nossa análise das origens da teoria do stamocap. Elas eram pranchas bastante ortodoxas na plataforma marxista-leninista da Terceira Internacional e do seu afiliado Partido Comunista Italiano e, de fato, fornecem a medida da originalidade de Gramsci no desenvolvimento de teorias do Estado, do poder estatal e da ideologia radicalmente diferentes daquelas dominantes nas análises do Comintern e dos comunistas ortodoxos do Pós-Guerra.
Pois Gramsci também enfatiza que não se pode reduzir as questões de prática política às questões do modo de produção ou às questões das relações econômicas fundamentais. A estrutura geral de uma sociedade e seu envolvimento no sistema imperialista certamente afetam a forma de Estado, o curso e o resultado das crises políticas, as possibilidades de estabelecer hegemonia sobre outras forças sociais e a probabilidade de uma transição bem-sucedida para o socialismo. Mas tais efeitos não são incondicionais nem unilaterais. Eles estão sempre sujeitos à mediação de forças políticas e práticas ideológicas cuja forma e impacto específicos são relativamente autônomos. Assim, Gramsci argumenta que as conjunturas mais favoráveis à revolução proletária não ocorrem necessariamente nos países onde o capitalismo é mais avançado, mas podem surgir, em vez disso, onde certas fraquezas estruturais no tecido do sistema capitalista o tornam menos capaz de resistir a um ataque da classe trabalhadora e seus aliados. Da mesma forma, embora as crises econômicas possam levar o Estado a tremer e / ou enfraquecê-lo objetivamente, elas não podem por si mesmas criar crises revolucionárias ou produzir grandes eventos históricos. Em vez disso, o impacto das crises econômicas depende da força das instituições da sociedade civil, bem como das instituições políticas e do resultante equilíbrio das forças sociais. Isso leva Gramsci a se concentrar na constituição das “superestruturas” políticas e ideológicas e nas maneiras pelas quais as relações das forças políticas moldam decisivamente a capacidade do capital de reproduzir sua dominação de classe. Ele também enfatiza que as relações políticas são decisivamente influenciadas por práticas ideológicas – a quem ele confere fundamentos institucionais próprios, suportes sociais e repercussões importantes nas relações sociais. Isso significa que um movimento revolucionário não pode se restringir às lutas econômicas, mas deve combiná-las com lutas políticas e ideológicas para o objetivo final de tomar o poder de Estado, socializar as forças produtivas e as relações de produção e criar uma ordem social nova.
É nesse contexto que as análises de Gramsci sobre o poder de Estado são significativas. Até seus primeiros escritos rejeitam visões instrumentais ou epifenomenais simples do Estado. Ele descreve o Estado como uma força de classe que tem um papel vital na organização da dominação de classe, em garantir os interesses de longo prazo da burguesia, bem como em sua unificação, em facilitar concessões a classes subordinadas e em assegurar o consentimento ativo de governados (em democracias parlamentares) ou efetuando sua desmobilização (em formas mais despóticas de Estado). Isso significa que a classe trabalhadora deve construir seus próprios órgãos de unidade política e de poder estatal – inicialmente vistos como conselhos de fábricas, posteriormente em termos do papel de liderança do partido revolucionário. O objetivo do partido é organizar a classe trabalhadora, formar laços orgânicos com as massas e desarticular a base democrática do Estado burguês no consentimento dos governados, paralisar as funções do governo legal sobre as massas e seguir adiante para atividade positiva, para estabelecer a forma mais eficaz de ditadura de classe – baseada na aceitação consciente e espontânea da autoridade, considerada indispensável para a consecução de objetivos comuns.
Essas ideias são ampliadas e aprofundadas de várias maneiras após a conquista fascista do poder. Assim, embora Antonio Gramsci ainda veja o Estado como uma organização de dominação de classe que desempenha um papel crucial na unificação das classes dominantes, ele agora enfatiza que essa unidade está fundamentalmente enraizada nas relações orgânicas entre o Estado (ou “sociedade política”) e a sociedade civil. Inversamente, a unificação tendencial das classes subordinadas é interrompida continuamente através de sua integração em uma pluralidade de grupos econômico-corporativos com aspirações e demandas limitadas e seu alinhamento com os “blocos” associados aos grupos dominantes. Em suma, a chave para a nova abordagem de Gramsci é encontrada em sua ênfase nas relações orgânicas entre o aparelho governamental e a sociedade civil. Em vez de tratar instituições e aparelhos específicos como instrumentos técnicos do governo, ele os relaciona com suas bases sociais e enfatiza as maneiras pelas quais suas funções e efeitos são influenciados por seus vínculos com o sistema econômico e a sociedade civil.
Essa ênfase decorre da preocupação de Gramsci com a manutenção do domínio de classe por meio de uma combinação variável de coerção e consentimento. Pois, se alguém se concentra no exercício do poder estatal e não na organização interna do aparato estatal, os efeitos gerais da intervenção estatal dependem da totalidade das relações sociais em uma dada sociedade. Por conseguinte, Gramsci examina as raízes do poder de Estado na economia e na sociedade civil, bem como dentro do próprio aparelho estatal. Além disso, como Gramsci se recusa a reduzir a prática política a um efeito automático de pertencimento de classe ou a identificar todos os sujeitos políticos como sujeitos de classe, ele também examina como o apoio político é estabelecido e / ou minado por práticas econômicas, políticas e ideológicas que vão além do campo das relações de classe, incluindo assim todo o campo das relações sociais.
É nesse contexto que devemos localizar as tentativas de Gramsci de definir o Estado e sua preocupação com coerção e consentimento. Pois, dada sua ênfase na natureza relacional do poder de Estado, a distinção entre aparelho de Estado e poder de Estado pode parecer redundante. Assim, em oposição ao problema reducionista-essencialista de como a ditadura de classe é inequivocamente e necessariamente inscrita no aparelho de Estado ou no problema instrumentalista de como a classe dominante manipula um aparelho de Estado inerentemente neutro em termos de classe, Gramsci se concentra nas modalidades de dominação de classe dentro da formação social como um todo. Assim, ele definiu o Estado como “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dominante não apenas justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consentimento ativo daqueles sobre quem governa”. Em várias ocasiões, ele emprega uma fórmula no sentido de que “Estado = sociedade política + sociedade civil”; e ele também afirmou uma vez que “na efetiva realidade, a sociedade civil e o Estado são a mesma coisa”. Desde que se interprete essas definições em relação ao exercício do poder de Estado (e não como uma tentativa de estabelecer os limites do próprio aparelho estatal), as supostas inconsistências e / ou antinomias de Gramsci não parecem muito significativas. Isso não significa negar que Gramsci notou os efeitos diferenciais de formas específicas de regime (por exemplo, parlamentarismo) na luta de classes. Mas é insistir que ele deu primazia histórica à luta de classes sobre a estrutura institucional do aparelho estatal. Portanto, é muito mais importante examinar como Gramsci analisa as modalidades de poder de Estado e a periodização das formas de Estado do que considerar suas várias definições de Estado.
Gramsci identificou dois modos de dominação de classe: força e hegemonia. A força envolve o uso de um aparelho coercitivo para levar as massas populares à conformidade e complacência frente às exigências de um modo de produção específico. Nesse sentido, a força está claramente associada nas sociedades capitalistas com o Estado – que é tradicionalmente visto pelos marxistas como um aparelho especializado em repressão. Mas Gramsci recusa qualquer identificação simplista entre força e Estado em sua abordagem da dominação de classe. As razões para isso estão enraizadas não apenas nas atividades de bandos armados como os fascistas e na necessidade de violência revolucionária contra o Estado; mas também nas análises de Gramsci das complexas relações entre a polícia e as forças armadas e suas bases sociais na sociedade civil e da importância de fatores ideológicos na determinação das relações de força político-militar.
Inversamente, a hegemonia envolve a bem-sucedida mobilização e reprodução do “consentimento ativo” de grupos dominados pela classe dominante por meio do exercício de liderança intelectual, moral e política. Isso não deve ser entendido em termos de mera doutrinação ou falsa consciência – seja como o reflexo de uma base econômica ou como um conjunto arbitrário de ideias mistificantes. Pois a manutenção da hegemonia envolve levar sistematicamente em conta os interesses e demandas populares, mudando de posição e comprometendo questões secundárias para manter apoios e afinidades em um sistema inerentemente instável e frágil de relações políticas (sem, no entanto, sacrificar interesses essenciais). Além deste elemento de liderança política na análise de Gramsci da hegemonia burguesa – um elemento já enfatizado em sua estratégia de liderança proletária do campesinato na luta contínua pela revolução socialista na Itália, Gramsci também enfatiza o elemento de liderança intelectual e moral envolvida na constituição e reprodução de uma vontade coletiva, uma perspectiva ‘nacional-popular’, uma visão de mundo comum, uma percepção compartilhada do mundo, adequada às necessidades de reprodução social e econômica. Essa liderança intelectual e moral é constituída por práticas ético-políticas e ideológicas que operam no sistema predominante de crenças, valores, preconceitos do senso-comum e atitudes sociais para organizar a cultura popular em seu sentido mais amplo e adaptá-la às necessidades do modo de produção dominante.
Finalmente, deve-se notar que, assim como o momento da força é institucionalizado em um sistema de aparelhos coercitivos, a hegemonia é cristalizada e mediada por um sistema complexo de aparelhos ideológicos (ou hegemônicos) distribuídos por toda a formação social. Porém, a prática da hegemonia está concentrada na esfera da sociedade civil ou nas chamadas organizações “privadas”, como a Igreja, sindicatos, escolas, meios de comunicação de massa ou partidos políticos e nas atividades dos intelectuais cuja função consiste em – eles próprios imersos na ideologia e por meio da ideologia, em vez de serem simplesmente manipuladores – elaborar ideologias, educar as pessoas, organizar e unificar forças sociais e garantir a hegemonia do grupo dominante.
Gramsci não apenas elabora esses modos de garantir o domínio da classe política, mas também examina sua articulação diferencial. Em particular, ele argumenta que o peso da hegemonia e dos aparelhos hegemônicos é consideravelmente maior nos sistemas capitalistas avançados da Europa e da América do Norte (especialmente onde a hegemonia é de natureza expansiva em vez de envolver ‘transformismo’ ou ‘revolução passiva’) do que era nas condições atrasadas da Rússia czarista. Essa diferença está ligada a diferenças na estratégia revolucionária apropriada. A fraqueza das instituições da sociedade civil e a tênue hegemonia dos grupos dominantes na Rússia se fundiram com a dissolução do momento de força em um Estado repressivo que permitiu uma destruição rápida e violenta do poder estatal. Em contraste, após a consolidação do imperialismo na década de 1870 e o desenvolvimento das democracias parlamentares com seus complexos maciços de instituições e organizações na sociedade civil, juntamente com a flexibilidade inscrita em tais sistemas governamentais, o momento da hegemonia adquiriu um peso decisivo na garantia do domínio de classe e é particularmente significativo ao permitir que a (s) classe (s) governante (s) respondam efetivamente a crises econômicas e / ou outras ameaças (como um fracasso militar) à autoridade do governo. Isso implica a necessidade de uma estratégia revolucionária diferente – a constante desagregação das bases sociais da hegemonia da classe dominante e a consolidação da liderança intelectual e moral. A classe dominante ficará assim isolada e desmoralizada antes da resolução político-militar da luta pelo poder de Estado. Assim, enquanto o Estado czarista poderia ser esmagado em grande parte por meio de uma “guerra de manobras” organizada pelo Partido Bolchevique baseada em uma aliança entre o proletariado e o campesinato (embora isso não evitasse a necessidade de uma “guerra de posição” para sustentar tal aliança depois que a ditadura do proletariado fosse estabelecida e as bases econômicas de uma sociedade socialista fossem construídas) uma revolução bem-sucedida nos sistemas capitalistas avançados pressupõe uma prolongada ‘guerra de posição’ para alterar as relações de forças e preparar-se para uma transição para o socialismo antes da conquista político-militar da sociedade política.
Ao desenvolver essas visões, Gramsci em nenhum lugar sugere que o poder de Estado em uma sociedade capitalista tenha necessariamente caráter burguês ou que haja qualquer garantia de que a dominação burguesa sempre possa ser reproduzida através de uma combinação apropriada de coerção e consentimento. De fato, longe de adotar essas ideias essencialistas, Gramsci enfatiza os obstáculos no caminho do “Estado integral” burguês (no qual a força é combinada com a hegemonia) e a fragilidade dos “equilíbrios instáveis de compromisso” sobre os quais essa hegemonia se baseia. Assim, a adesão do fascismo é atribuída à fraqueza histórica do Estado italiano. Isso está relacionado ao fracasso da burguesia italiana em estabelecer uma ‘liderança intelectual, moral e política’ sobre toda a nação através da reforma agrária ao estilo jacobino em concomitância com o fracasso de dar ao Risorgimento uma dimensão nacional-popular e assim garantir uma sólida base de classe independente dos grandes proprietários de terra. As condições políticas necessárias para um Estado parlamentar liberal efetivo que produzisse um governo com consentimento ativo permanentemente organizado estavam ausentes. Em vez de uma “hegemonia expansiva”, o Estado italiano foi caracterizado por uma base social “transformista”, isto é, dependente da contínua absorção dos líderes políticos e intelectuais dos grupos subordinados já decapitados e desorganizados. Nesse sentido, ‘transformismo’ envolve uma ‘guerra de posição’ conduzida pela classe dominante contra os grupos subordinados. Podendo também ser discutido em termos de ‘revolução passiva’, ou seja, uma reorganização das relações econômicas, políticas e ideológicas, geralmente em resposta a uma crise, que mantém a passividade de grupos subordinados e a separação de líderes e liderados.
Ao desenvolver esses conceitos, Antonio Gramsci se preocupa não apenas em fornecer critérios de interpretação histórica, mas também em especificar a estratégia comunista em diferentes circunstâncias – incluindo a transição para o socialismo. Neste último contexto, ele conclui que um período de transição envolve uma fase “econômico-corporativa”, na qual a classe dominante emprega o poder do Estado para garantir os fundamentos econômicos de sua hegemonia, promovendo os interesses econômicos das classes subalternas e consolidando seu apoio. É esse argumento que informa a discussão de Gramsci sobre a Nova Política Econômica na União Soviética. A fase “econômico-corporativa” fornece a base para o desenvolvimento de um “Estado integral”, no qual a principal modalidade de poder estatal é o exercício da hegemonia com base no consentimento ativo de um povo que passou por uma “reeducação” radical por meio do processo revolucionário e da atividade do partido na qualidade de intelectual coletivo e líder moral, além de órgão político. Com a consolidação de um Estado integral baseado nessa ‘hegemonia expansiva’, a ‘sociedade política’ começa a murchar – assumindo o papel de vigia noturno, à medida que cada vez mais a vida social é organizada por meio das instituições e associações da livre e democrática sociedade civil.
Ao apresentar esta revisão da política de Gramsci, não pretendo ter dado um relato completo de seu trabalho teórico e de suas atividades políticas. Porém deve ficar claro que a originalidade de Gramsci está na reavaliação radical da natureza do aparelho estatal e do poder de Estado implícito em suas várias análises da hegemonia. Embora este último conceito tenha figurado há muito tempo nas visões comunistas sobre o papel de liderança (ou hegemonia) do proletariado na luta revolucionária de massas, Gramsci também o aplicou à prática política da burguesia e o estendeu para incluir a liderança intelectual e moral, bem como a liderança política. Isso implicou uma mudança de ver o Estado como um aparelho essencialmente coercitivo para focar no peso relativo da coerção, fraude-corrupção e consentimento ativo. Essa ruptura teórica também implica uma preocupação com os aparelhos hegemônicos do poder estatal, com o papel dos intelectuais na organização da hegemonia da classe dominante e com a formação de um ‘bloco histórico’ no qual exista uma relação adequada e de apoio mútuo entre base e superestrutura. A discussão de Gramsci sobre essas questões preocupa-se constantemente com a labilidade das relações de forças que moldam o poder do Estado e que condicionam o surgimento e a resolução de crises políticas e ideológicas e, portanto, ele desenvolve uma gama rica e complexa de conceitos para a análise conjuntural dessas relações e crises. Ao mesmo tempo, ele se preocupa com a periodização do Estado (ligando o peso decisivo da hegemonia à época imperialista e aos fortes elos da cadeia imperialista) e as formas, bases sociais e efeitos de diferentes tipos de regime. Assim, embora ele tenha contribuído pouco para a análise do modo de produção capitalista puro (especialmente seu momento econômico), Gramsci deu uma contribuição importante, de fato decisiva, à análise do poder estatal no nível da formação social. É com a recepção e o desenvolvimento subsequente de seu trabalho que nos preocupamos nas páginas seguintes.
A RECEPÇÃO DE GRAMSCI NO PÓS-GUERRA
A ruptura teórica com o marxismo ortodoxo alcançada nos Cadernos do Cárcere não recebeu reconhecimento imediato. Pois, não apenas os escritos da prisão permaneceram totalmente inéditos até 1947, mas também foram sujeitos a censura quando publicados (para produzir a imagem distorcida de Gramsci como um stalinista leal) e, mesmo assim, apareceram de maneira fragmentada. Isso estava associado à restrição da discussão sobre o trabalho de Gramsci em sua relação com a tradição cultural progressista italiana e em que medida Gramsci permaneceu teórica e politicamente fiel à tradição marxista-leninista. Todo o debate estava fortemente impregnado e sobredeterminado por limitadas considerações políticas, envolvendo tentativas de apropriação exclusiva do pensamento e prestígio de Gramsci por diferentes facções, tendências e partidos.
Após a ‘desestalinização’ de 1956, no entanto, assim como houve uma mudança na análise comunista ortodoxa do capitalismo do pós-guerra e uma nova visão da teoria stamocap, houve também uma mudança na interpretação teórica e política dos trabalhos de Gramsci. Esta mudança foi iniciada acima de tudo por Togliatti. Ela envolveu uma séria preocupação com Gramsci como sendo um teórico do momento político no contexto do imperialismo, da derrota do movimento revolucionário no Ocidente, da ascensão do fascismo, da crise econômica de 1929, do crescimento do estado intervencionista e da estratégia revolucionária apropriada nessas condições. Nesta área, Gramsci tem sido cada vez mais interpretado como o teórico da revolução no Ocidente, despertando interesse crescente nos conceitos de sociedade civil, hegemonia, guerra de posição, revolução passiva, intelectuais etc. Além disso, embora a discussão de Gramsci entre os teóricos italianos tenha sido inicialmente um tanto paroquial quanto polêmica e tenha contribuído pouco para o avanço teórico das análises políticas marxistas, os debates em torno do trabalho de Gramsci sobre a natureza do Estado, do poder estatal e da ideologia precipitaram alguns insights teóricos significativos que vão além do progresso registrado pelo próprio Gramsci. Isso é mais evidente no trabalho de teóricos que argumentam que Gramsci conseguiu evitar não apenas o determinismo econômico, mas também o reducionismo de classe de maneira mais geral e / ou os que insistem na importância do interesse de Gramsci na literatura e na linguística comparada relacionando, assim, seus argumentos com os desenvolvimentos recentes na teoria do discurso e na análise da ideologia.
Em conjunto com essas correntes, também tem havido um interesse crescente na contribuição de Gramsci à filosofia marxista, bem como na análise da política e da ideologia. Aqui, enfatizamos a tentativa de Gramsci de romper com o positivismo e o economicismo e desenvolver uma nova abordagem da filosofia como um elo de mediação entre teoria e política. De particular importância neste contexto é o trabalho da chamada “escola de Bari” (ou “école Barisienne”) e seu recurso a Gramsci no desenvolvimento do marxismo como uma “ciência da política” em oposição ao economicismo residual do Comintern bem como o flagrante economicismo da Segunda Internacional (são trabalhos representativos dessa escola os de Badaloni, Cerroni, Colletti, de Giovanni, Luponini e Vacca). Na análise a seguir, no entanto, estou menos preocupado com interpretações conflitantes do próprio Gramsci do que com a tentativa de desenvolver a teoria do Estado de Gramsci e as análises da ideologia em novas direções. Assim, em vez de olhar para os teóricos italianos, que geralmente se preocupam mais com a interpretação e apropriação de Gramsci como tal, começamos com o trabalho de Nicos Poulantzas, que foi além dessas questões para desenvolver uma teoria política influente e abrangente em uma leitura distinta do trabalho de Gramsci sobre hegemonia. Vou então fazer um breve relato da abordagem “teórico-discursiva” da hegemonia e terminar com alguns comentários gerais das implicações da escola neo-gramsciana.
O DESENVOLVIMENTO TEÓRICO DE POULANTZAS
Nicos Poulantzas é, na minha opinião, o teórico político marxista mais influente do período pós-guerra, tendo produzido, até sua morte prematura em 1979, um conjunto significativo de trabalhos sobre o Estado capitalista, as classes sociais e a estratégia socialista. É impossível discutir todos os aspectos de seu trabalho aqui, portanto, concentro-me em sua contribuição à teoria marxista do Estado. Dada sua reputação como estruturalista e a acentuada tendência (pelo menos entre os críticos de língua inglesa) de localizar seu trabalho na problemática estruturalista-instrumentalista, pode parecer perverso e idiossincrático discutir Poulantzas em termos da abordagem neo-Gramsciana. Entretanto, se ignorarmos seus primeiros estudos sobre direito e sistema jurídico com suas implicações fortemente sartreanas, seu óbvio flerte com o estruturalismo althusseriano em seu primeiro grande trabalho sobre o Estado capitalista (Poder Político e Classes Sociais) e seus resíduos em suas análises subsequentes é evidente que suas principais fontes de inspiração entre os marxistas do século XX são Gramsci e Lenin, sendo Gramsci o mais influente em muitos aspectos. Esta afirmação contundente pode ser justificada por meio de uma breve revisão de seu desenvolvimento teórico.
Poulantzas primeiro embarcou numa análise crítica do Estado capitalista num ensaio sobre a natureza e o papel da hegemonia como o princípio organizacional distintivo desse tipo de Estado. Ele argumenta que existe uma diferença radical entre o Estado nas formações sociais pré-capitalistas e o Estado nas sociedades capitalistas e que isso deriva de diferenças dos modos de produção. Os ‘laços naturais’ dos produtores diretos com uma comunidade organizada hierarquicamente e o caráter econômico-político misto da exploração de classe excluem formas democráticas de política nas sociedades pré-capitalistas e exigem o uso da coerção para impor os interesses privados imediatos da classe dominante. A separação institucional entre economia e política no Modo de Produção Capitalista significa que aquela é dominada pela mais-valia e pela troca como objetivo e motivo imediatos da produção, permitindo também um modo distinto e sui generis de dominação política. Pois, na medida em que essa separação envolve mais do que o desenvolvimento de um órgão coercitivo especializado e distinto do povo envolve, na verdade, a exclusão da coerção extra-econômica da esfera da produção, permitindo ao Estado operar como uma instância universalizante que pode promover os interesses da classe dominante através do exercício da hegemonia. Isso leva Poulantzas a notar que, enquanto o Estado pré-capitalista age de maneira “econômico-corporativa” por meio de compromissos marginais e mecânicos distribuindo o poder de Estado tal qual fosse uma soma zero, o Estado capitalista deve oferecer garantias às classes subordinadas e impor sacrifícios de curto prazo à classe dominante para garantir seus objetivos políticos de longo prazo. O papel crucial do Estado como instância universalizante por meio da qual a classe dominante representa seus interesses como os da nação como um todo claramente dá grande importância ao papel dos intelectuais e da luta ideológica de classe na organização e na liderança de classes dominantes e dominadas.
Poulantzas então considera como hegemonia não apenas a operação para garantir o consentimento ativo das classes dominadas, mas também para unificar frações de classe dominantes e / ou classes em um bloco de poder coerente. Ele segue Gramsci ao argumentar que a dominação política de classe no capitalismo repousa sobre uma combinação distinta de consentimento ativo articulado com formas constitucionais de coerção. Além disso, ele também estende o trabalho de Gramsci para argumentar que o fracionamento econômico da burguesia só pode ser superado por meio de um estado que exiba sua própria unidade interna (de classe) e sua autonomia institucional frente às diferentes frações das classes dominantes. A existência de um bloco no poder relativamente unificado não pode ser explicada em termos da imposição dos interesses econômico-corporativos da fração dominante a outras frações e classes (como sugerido no trabalho de teóricos do stamocap) nem poderia ser assegurada por um Estado que compreendia um conjunto diferenciado e deslocado de poderes e contra-poderes e, portanto, não possuía capacidade de organizar e liderar um bloco no poder burguês. Em suma, Poulantzas insiste que o Estado capitalista deve ser entendido como um conjunto institucional que tem uma função importante na organização da hegemonia dentro do bloco de poder, bem como na mobilização de consentimento ativo em relação às classes dominadas e, portanto, à sociedade como um todo.
Deve ficar claro que Poulantzas é devedor do trabalho pioneiro de Gramsci neste ensaio e que muitas de suas ideias-chave antecedem sua apropriação do estruturalismo althusseriano. De fato, ele não apenas considera o papel da hegemonia em relação às classes dominadas, mas também o aplica criativamente à organização – direção de um bloco no poder. Da mesma forma, enquanto Gramsci tende a ver o Estado integral (isto é, hegemonia blindada pela coerção) como característica da era imperialista e relaciona seu desenvolvimento à expansão da sociedade civil (no sentido de aparelhos ideológicos), Poulantzas deriva o papel crucial da hegemonia da matriz institucional do capitalismo como um todo o relacionando com a separação da esfera pública da política com a esfera privada da sociedade civil (considerada como o local das relações econômicas). Entretanto, ambos os teóricos enfatizam o importante papel das práticas intelectuais / ideológicas e políticas na constituição da hegemonia. Todas essas análises serão retomadas e desenvolvidas em trabalhos posteriores por Poulantzas e combinadas com elementos do estruturalismo.
Dois importantes estudos a respeito disso são Uma Crítica da Teoria Política Marxista na Grã-Bretanha e Uma Revisão de Pour Marx de Althusser. O primeiro Poulantzas insiste na utilidade dos conceitos de Gramsci (como hegemonia, bloco de poder, etc.) quando colocados em uma problemática não-histórica, não-subjetivista e passa a criticar as falhas gêmeas da interpretação quase lukacsiana de Gramsci que ele discerne no trabalho de Anderson e Nairn na New Left Review. O último Poulantzas afirma a importância da ruptura epistemológica de Althusser na teoria marxista moderna, mas também observa certas dificuldades em sua abordagem da determinação econômica em última instância. Nos dois estudos, Poulantzas começa a justapor, combinar e sintetizar as análises gramsciana e althusseriana e, assim, introduzir uma tensão em seu próprio trabalho, que se tornará mais significativa com o tempo.
É em Poder Político e Classes Sociais (1968) que Poulantzas apresenta sua primeira análise extensa do Estado capitalista. Com influências óbvias das perspectivas gramsciana e althusseriana – enfatiza os elementos gramscianos na análise da luta de classes (política) como força motora da história e enfatiza os elementos althusserianos na análise da matriz institucional do capitalismo e da reprodução global da formação social, na medida em que Poulantzas tenta conciliar esses elementos ele acaba enfatizando a primazia das estruturas sobre a luta de classes. Essa ênfase na primazia das estruturas objetivas alcançou seu ponto alto na primeira intervenção de Poulantzas em seu debate com Miliband e é essa controvérsia que domina a recepção de seu trabalho em língua inglesa. Mas, embora essas tensões permaneçam em estudos mais recentes, houve uma eliminação progressiva do formalismo estruturalista e do “sobredeterminismo” substituindo-o pelo primado da luta de classes sobre a estrutura. Ele próprio se concentrou teoricamente na forma típica do Estado capitalista (democracia representativa) e em duas de suas formas excepcionais (fascismo e ditadura militar). Inicialmente, ele estudou o Estado capitalista isolando-o da região econômica do MPC – concentrando-se em seu papel organizacional na reprodução da dominação política e ignorando amplamente o envolvimento mais direto do Estado na organização da exploração econômica capitalista. Mas mesmo aqui Poulantzas falou frequentemente do papel da ideologia jurídico-política e das instituições legais na manutenção do ‘efeito de isolamento’ entre as classes dominadas no nível econômico (isto é, a individuação competitiva dos produtores que os impede de experimentar relações de produção como relações de classe) bem como no exame de suas repercussões para a constituição e operação da democracia liberal como locus institucional da unidade pública de cidadãos privados, individualizados e concorrentes.
Mais tarde, Poulantzas desviou a atenção do Estado capitalista normal considerado à parte da periodização do MPC para Estados excepcionais e normais em seu chamado estágio de “monopólio-imperialista”. Supõe-se que esta etapa esteja associada à ascensão à dominância na matriz do MPC do nível político no lugar do econômico. Paradoxalmente, isso se reflete na crescente preocupação de Poulantzas com a intervenção econômica e a consequente reorganização do Estado capitalista. Assim, enquanto sua análise de Fascismo e Ditadura (1970) enfocava nas principais funções políticas de uma forma excepcional do Estado intervencionista durante a consolidação do domínio capitalista monopolista no interior do MPC, As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje (1974) considera as funções econômicas do Estado intervencionista em fases diversas do estágio “monopolista-imperialista”, assim como as suas funções políticas. Essa análise foi estendida no trabalho final sobre teoria do Estado (O Estado, o Poder, o Socialismo) para incluir um crescimento da intervenção econômica e de suas implicações.
Paralelamente a essa crescente preocupação com a intervenção econômica e suas limitações, Poulantzas também demonstrou crescente interesse na reprodução da luta de classes no interior (e à distância) do aparato estatal e suas implicações para a estratégia revolucionária. Pois, enquanto Poder Político e Classes Sociais tende a dotar o Estado capitalista de uma função objetiva e estruturalmente determinada de manter a coesão e pressupor sua unidade essencial de classe, a análise da crise dessa forma de Estado em Fascismo e Ditadura e a investigação do colapso das ditaduras militares do sul da Europa apresentadas em Crise das Ditaduras levaram Poulantzas a enfatizar mais fortemente do que antes o primado da luta de classes sobre as estruturas e a natureza fissurada e contraditória do Estado capitalista. Essa mudança de ênfase é reafirmada em O Estado, O Poder, O Socialismo e, pela primeira vez, está relacionada aos problemas da transição para o socialismo. No espaço disponível aqui, é impossível resumir, muito menos dissecar criticamente, todos os conceitos, suposições, princípios de explicação e argumentos em seu trabalho. Portanto, nem suas análises históricas concretas de regimes excepcionais nem seu trabalho sobre formação de classes serão discutidos aqui e, em vez disso, focalizo nas ideias básicas subjacentes às contribuições de Poulantzas para uma teoria do Estado capitalista.
O ESTADO, AS CLASSES SOCIAIS E O PODER
Na ‘Introdução’ a seu primeiro grande texto, Poulantzas localiza sua abordagem nos termos da problemática althusseriana e a descreve como uma tentativa de produzir teoricamente uma hierarquia complexa de conceitos para a análise da superestrutura política do estado no MPC, ou seja, produzir uma teoria regional do Estado num modo de produção em particular. Ele argumenta que isso não pode ser alcançado por meio de uma simples e progressiva derivação lógica de conceitos mais concretos a partir dos conceitos mais abstratos, nem da mera subsunção de conceitos mais concretos e dos mais abstratos como numerosas instâncias particulares deste último. Em vez disso, requer um trabalho complexo de elaboração teórica, no qual os conceitos estão localizados precisamente em relação ao processo de pensamento, do nível mais “abstrato-formal” ao “concreto-real” e em relação ao objeto específico do pensamento (por exemplo, a região específica do MPC) do qual são suportes. Nesse contexto, Poulantzas sugere que um estudo científico do Estado de tipo capitalista envolve uma elaboração teórica tríplice: o desenvolvimento de uma teoria geral do materialismo histórico, dos modos de produção, das formações sociais dividas em classes, dos estados e da política, vistos isoladamente nos modos de produção específicos; o desenvolvimento de uma teoria específica do MPC, a fim de determinar teoricamente o lugar exato e a função típica do Estado e da política na matriz de seus níveis econômico, político e ideológico e, na medida em que o estado capitalista goza de uma autonomia institucional específica dentro do MPC, permitir que aquele seja um objeto sui generis de pensamento, o desenvolvimento de uma teoria regional do Estado capitalista e da política. Porém ele não discute os problemas de construção de conceitos nesses diferentes níveis e / ou planos de abstração, nem os articula para produzir uma análise concreta de sociedades específicas – na melhor das hipóteses, recebemos as respostas implícitas na ordem de exposição de Poulantzas.
Assim, em vez de desenvolver todos os elementos da teoria geral e da teoria particular do MPC, ele apenas invoca a teoria geral dos modos de produção extraídos do Capital de Marx por Althusser et al. em Ler o Capital e argumenta que o próprio Capital apresenta a teoria particular do MPC e a teoria regional de seu nível econômico. Isso o deixa livre para se concentrar na teoria geral do Estado, das classes sociais, do poder e da teoria regional do Estado dentro do MPC. Mesmo aqui, não há nenhuma tentativa sistemática de construir os conceitos, mas eles são gradualmente introduzidos com base em sua leitura dos escritos políticos de Marx, Engels, Lenin e Gramsci. Esse método de argumentação e apresentação tem efeitos definidos no trabalho de Poulantzas e vamos nos referir a eles nas críticas substantivas e metodológicas subsequentes. Poulantzas argumenta que a região política está preocupada com o poder institucionalizado do Estado como um conjunto estrutural específico e que a prática política tem como objeto específico a manutenção ou transformação do ‘momento presente’ (ou conjuntura) através do controle do poder do Estado. Ao apresentar esse argumento geral, ele abstrai dos modos de produção particulares e, portanto, das formas diferenciais do processo de trabalho (‘apropriação real’ ou ‘posse’) e apropriação do trabalho excedente (‘relação de propriedade’ ou ‘propriedade econômica’), as matrizes correspondentes de regiões econômicas, políticas e ideológicas. Isso dá à sua teoria geral do Estado e da política um molde “teórico de classe” funcionalista. Assim, Poulantzas argumenta que o Estado é definido por sua função geral como o fator de coesão ou unidade em uma formação social dividida em classes, e não por instituições específicas: o lugar preciso do Estado, sua forma particular, sua estrutura institucional e suas fronteiras dependem da natureza (dominante) do modo de produção e da formação social. Isso não significa que os Estados reais não possam desempenhar nenhuma função além da manutenção da coesão – apenas que essa é a função constitutiva geral de todos os Estados e que outras funções variam de acordo com a (dominância) do modo de produção e da formação social, e que tais funções são sobredeterminadas pela função geral. Ao mesmo tempo, Poulantzas analisa o Estado em termos “teóricos de classe” em vez de termos “teóricos do capital” (ou análogo): pois uma teoria geral deve abstrair-se dos modos de produção particulares sendo obrigada a adotar uma abordagem “teórica de classe”. Nesse contexto, ele argumenta que o Estado reflete e condensa todas as contradições em uma formação social dividida em classes, que as práticas políticas são sempre práticas de classe e que o poder do Estado é sempre o poder de uma classe definida a cujos interesses o Estado corresponde.
Isso não significa que o estado deva ser visto como um mero instrumento da classe dominante. Em vez disso, implica que, na medida em que o Estado desempenha com êxito sua função geral de gerenciar as contradições de classe e, assim, garantir a coesão, mantém as condições políticas necessárias para a reprodução da dominância de um modo de produção. Além disso, ao argumentar que o Estado não pode ser entendido como um simples instrumento de “coisa” nem como um sujeito soberano e de livre arbítrio, Poulantzas sugere que esse possa ser melhor observado como forma-determinada do campo das relações sociais em que a estrutura regional do político tem efeitos definidos sobre luta política de classes. Nesse ponto, porém, chegamos aos limites da teoria geral do Estado. Para progredir ainda mais, Poulantzas deve passar de uma consideração ‘teórica de classe’ funcionalista para uma análise de forma-determinada, análise ‘teórica do capital’. Resta ver como isso é alcançado.
Ao considerar a teoria particular do MPC, Poulantzas contrasta primeiro as relações de produção nos modos de exploração capitalista e pré-capitalista. Ele argumenta que estes eram caracterizados pelo acesso imediato dos produtores diretos aos meios de produção e sua capacidade de fazê-los funcionar sem a intervenção da classe exploradora de proprietários; e que isso significava que os proprietários tinham que empregar a coerção extra-econômica para controlar o uso dos meios de produção e para obter trabalho excedente apropriado. Por outro lado, o MPC envolve a separação ou desapropriação dos produtores diretos (como indivíduos e como trabalhador coletivo) dos meios de produção e a efetiva coincidência (ou ‘homologia’) dos dois poderes econômicos de posse (controle efetivo sobre o processo de trabalho) e propriedade (controle legal sobre as metas de produção e apropriação do trabalho excedente) nas mãos da classe exploradora. Assim, a exploração agora assume a forma de troca devido à incorporação de trabalho excedente nas mercadorias e a coerção não é necessária nas relações de produção – em vez disso, a coerção se limita a manter as condições “externas” de tal exploração. Assim, o MPC envolve uma autonomia distinta das regiões econômicas e políticas. Pois a região econômica está agora livre do controle político direto – ela opera através de aparelhos econômicos distintos (empresas) e sob o domínio de leis econômicas sui generis (mediadas por forças de mercado e, finalmente, determinadas pelo circuito do capital produtivo). Da mesma forma, a região política é capaz de monopolizar e constitucionalizar o uso da coerção e se especializar pela primeira vez na função política global de manter a coesão, em vez de estar diretamente implicada na organização do processo de trabalho e na apropriação do trabalho excedente.
Porém essa separação institucional e especialização funcional não significam que as regiões econômicas e políticas tenham se tornado completamente autônomas e auto-suficientes. Pois a região econômica possui condições políticas definidas de existência e a região política desempenha funções econômicas sob o domínio de sua função coesa global. No entanto, ainda é possível desenvolver uma teoria da região política do capitalismo sem recorrer ao reducionismo econômico bruto do tipo ‘lógica do capital’. De fato, como o Estado capitalista representa os interesses políticos globais do bloco de poder, e não os interesses econômicos imediatos de seus vários constituintes de classe (fração), deve-se partir de conceitos políticos sui generis, e não das categorias econômicas de acumulação de capital.
Nesse contexto, Poulantzas argumenta que o estado capitalista deve estar relacionado à matriz estrutural do MPC e ao campo das relações de classe. Além disso, embora a matriz estrutural tenha prioridade em sua ordem de exposição (uma vez que as classes são vistas como um efeito dessa matriz no campo das relações sociais), são as relações de classe que recebem o papel principal como força motriz da história. Assim, enquanto o lugar do Estado capitalista no MPC, sua forma organizacional única como Estado representativo nacional-popular, seus limites precisos e suas funções específicas na reprodução capitalista dependem da matriz distintiva do MPC e de sua transformação de acordo com o estágios e fases da acumulação de capital, eles são modificados dentro desses limites estruturais básicos pelas mudanças conjunturais da luta de classes nas várias regiões da sociedade capitalista e sua sobredeterminação pela luta política de classes em seu sentido global.
Assim, tendo derivado a separação institucional distintiva da região política e sua especialização funcional como fator de coesão da matriz do MPC, Poulantzas passa a examinar a natureza do Estado capitalista em termos de sua relação distinta com o campo das lutas de classes. Seu ponto de partida não é encontrado entre as categorias econômicas de relação do capital, mas sim na própria região política. Poulantzas primeiro introduz o conceito de ‘efeito de isolamento’ e, em seguida, traça suas implicações para a forma e as funções do Estado capitalista. Essa abordagem difere fundamentalmente da Staatsableitung (teoria da derivação do Estado) e agora devemos considerá-la com mais detalhes.
SOBRE A INDIVIDUAÇÃO PRIVADA E A UNIDADE PÚBLICA
Poulantzas atribui um papel crucial ao Estado capitalista na matriz estrutural do MPC para garantir as condições externas específicas de existência da região econômica, bem como sua pré-condição geral de coesão social. Ele também argumenta que o Estado tem efeitos específicos sobre o econômico e as lutas políticas de classes. Nesta seção, ignoraremos a intervenção do Estado nas relações de produção e nos concentraremos em seu papel na luta de classes. Aqui, Poulantzas observa que a autonomia específica das diferentes regiões do MPC envolve uma separação distinta dos diferentes campos da luta de classes e coloca problemas definidos de unidade de classe para as classes dominantes e dominadas. Esse efeito estrutural é reforçado pelo ‘efeito de isolamento’ criado por práticas jurídico-políticas e ideológicas específicas mediadas pelo Estado. Juntos, esses efeitos condicionam o complexo terreno das lutas de classes nas sociedades capitalistas e permitem o desenvolvimento do tipo capitalista de Estado como um Estado caracterizado pela liderança hegemônica de classe.
Poulantzas argumenta que a região jurídico-política tem um efeito crucial no campo da luta de classes. Pois interpela os agentes de produção como sujeitos jurídicos individuais e não como membros de classes antagônicas. Assim, os agentes econômicos não experimentam as relações capitalistas como relações entre classes sociais, mas como relações de competição entre indivíduos mutuamente isolados e / ou grupos fragmentados de trabalhadores e capitalistas. Esse ‘efeito de isolamento’ se estende a todo o campo das relações econômicas nas sociedades capitalistas e permeia classes pertencentes a outros modos de produção localizados nas mesmas. O mesmo efeito é evidente no campo da luta política de classes. Pois direito e ideologia jurídico-política duplicam o “fraturamento” da esfera “privada” na interpelação das pessoas como mutuamente isoladas, cidadãos individuais e/ou categorias políticas. Mas Poulantzas também argumenta que o ‘efeito de isolamento’ na esfera privada e o domínio da cidadania estão associados a algo que poderíamos chamar de ‘efeito unificador’ do Estado capitalista. Pois isso se apresenta como a unidade pública estritamente política (isto é, não econômica) do povo-nação considerada a soma abstrata de sujeitos legais formalmente livres e iguais. Além disso, o Estado não apenas incorpora a unidade pública de indivíduos particulares através da operação de suas várias instituições representativas (sufrágio, partidos, assembleias legislativas etc.), através de seu distinto quadro burocrático-hierárquico centralizador, mas também organiza e regula as relações entre assuntos individuais e categorias sociais diversas, a fim de manter a coesão.
Isso significa que o Estado capitalista está relacionado às relações socioeconômicas refratadas pelo ‘efeito de isolamento’, ou seja, as relações de classe estão constitutivamente ausentes da organização do Estado capitalista e suas ações visam garantir coesão e unidade entre os cidadãos. Por sua vez, isso significa que a organização e o funcionamento interno do Estado podem assumir a forma de uma administração racional-legal. Assim, a burocracia pode aparecer como uma instituição impessoal e neutra, incorporando o interesse geral, podendo operar de acordo com um sistema hierarquicamente estruturado e coordenado centralmente de normas racionais-legais formais, gerais, universais e codificadas. De fato, a própria possibilidade de uma administração formalmente racional depende não apenas do monopólio da força economicamente fundamentada desfrutado pelo Estado, mas também da ausência de um domínio político aberto de sua organização de classe.
No entanto, embora os indivíduos da sociedade civil sejam formalmente livres e iguais e o Estado seja a personificação formalmente soberana e sem classe de sua unidade, a maneira pela qual essa coesão e unidade são realizadas é necessariamente sobredeterminada pela necessidade de reproduzir a dominação de classe. Assim, Poulantzas argumenta que, embora o Estado capitalista deva impedir qualquer organização política das classes dominadas que ameace pôr fim ao seu isolamento econômico e / ou fraturamento social, deve trabalhar continuamente nas frações e / ou classes dominantes para que cancelem seu isolamento econômico e garantam a unidade do bloco no poder e sua hegemonia sobre as classes dominadas.
Essa dupla tarefa política é alcançada através da organização de um bloco de poder unificado sob a liderança de uma classe específica (fração) e a apresentação bem-sucedida de seus interesses políticos globais como os do povo-nação como um todo. Por sua vez, isso envolve a negociação contínua de interesses em um “equilíbrio instável de compromisso” e requer concessões reais (embora limitadas) aos interesses econômico-corporativos das classes dominadas.
Ao discutir a dupla constituição da hegemonia, Poulantzas se refere a uma ampla gama de efeitos institucionais e práticas políticas e ideológicas. Entre suas condições básicas de possibilidade estão a separação entre região política e a econômica (dotando o Estado com uma autonomia relativa necessária para mediar a gestão das contradições e garantir a coesão) e o ‘efeito de isolamento’ (permitindo a classe hegemônica ou fração de classe articular seus interesses com os de um povo-nação individualizado e fraturado). Nesse contexto, Poulantzas enfoca os efeitos de estruturas institucionais específicas e sua chamada “seletividade estrutural” para garantir a unidade das classes e frações dominantes no bloco de poder sob a hegemonia de uma classe específica (fração). Assim, enquanto seus primeiros estudos se concentraram na presença diferenciada das classes ou frações dominantes concorrentes nos vários ramos e centros de poder do Estado e sua unificação através da dominância do poder legislativo (típico do capitalismo competitivo) ou do poder executivo, organizado por sua vez, sob o domínio de um centro de poder específico (típico do capitalismo monopolista), seu trabalho subsequente estende essa análise da unidade do bloco de poder e da unidade concomitante do poder de Estado para incluir a presença diferencial das forças de classe nos chamados aparelhos ideológicos do Estado (ou AIEs) bem como nos ramos do aparelho estatal propriamente dito (também conhecido como ‘aparelho estatal repressivo’ ou ‘AER’) e dar um peso muito maior ao ‘policentrismo’ do próprio poder executivo como um terreno de lutas de classe e frações que é unificado através do papel central de um centro de poder no interior de uma complexa hierarquia de centros de poder.
Nesse contexto, Poulantzas enfatiza que a mediação das contradições dentro do bloco de poder depende não apenas da estrutura institucional formal do Estado (por exemplo, o centralismo e / ou organização hierárquica do AER e sua regulamentação dos AIEs), mas também de especificidades, práticas políticas (classificadas, paradoxalmente, como um processo de ‘seletividade estrutural’), como processos de tomada de decisão em curto-circuito, filtragem seletiva da implementação de políticas, parcial ‘não-tomada de decisão’, deslocando funções entre os centros de poder e revertendo papéis repressivos ou ideológicos predominantes de diferentes aparelhos estatais. Ele também observa que essas práticas envolvem não apenas membros das classes e frações dominantes, mas também seus representantes na ‘cena política’ (o campo da competição partidária e da política parlamentar), seus ‘vigias ideológicos’ e ‘intelectuais orgânicos’, os chefes do aparelho estatal cuja função como representantes formalmente imparciais do interesse público ou nacional é necessariamente condicionado pela polarização de fato em torno de diferentes interesses frações e de classe dentro do bloco de poder.
Considerações um pouco diferentes são apresentadas em relação à constituição da hegemonia sobre as classes dominadas e as massas populares. Poulantzas enfatizou consistentemente a importância de alianças de classe genuínas que se estendem além do bloco de poder nos campos econômico, político ou ideológico, ressaltando também o papel do apoio de classes subordinadas com base em ilusões ideológicas relativas à natureza do poder do Estado e não em sacrifícios políticos reais por parte do bloco no poder e seus aliados. Por outro lado, Poulantzas argumentou que o poder do Estado (pelo menos nas formas teoricamente típicas do Estado capitalista) corresponde inequivocamente aos interesses do bloco no poder e que a classe trabalhadora não pode promover seus interesses fundamentais (presumivelmente em uma transição para o socialismo) e / ou garantir sua própria hegemonia através do Estado capitalista. Dito isto, embora as classes dominadas não possam estabelecer seu próprio poder estatal simplesmente através da captura do aparato estatal existente e devam desenvolver sua própria unidade de classe na luta por uma nova forma de Estado, elas estão presentes no Estado capitalista de maneira desunificada e fragmentada e podem promover seus interesses particulares, isolados e “econômico-corporativos” por meio desse Estado na medida em que esses avanços também sustentem a hegemonia burguesa. De fato, Poulantzas observa que a burguesia normalmente emprega vários aparelhos ideológicos de Estado especialmente projetados para inculcar a ideologia burguesa na classe trabalhadora, por meio dos quais, em certos casos, a luta da classe trabalhadora é canalizada com efeitos pertinentes sobre a política do Estado. Nesse contexto, ele cita sindicatos e partidos social-democratas, argumentando que eles buscam os interesses da classe trabalhadora como uma condição para a reprodução da hegemonia burguesa.
Isso se reflete na natureza da ideologia dominante. Pois, ao rejeitar uma visão reducionista de classe das ideologias, Poulantzas nega que a ideologia dominante seja uma criação exclusiva da classe dominante e tenha um conteúdo unitário pré-determinado, determinado fora da luta ideológica de classe. Em vez disso, inclui elementos de ideologias pequeno-burguesas e da classe trabalhadora como condição para “cimentar” com sucesso a coesão social em uma sociedade dividida em classes. É dominante porque corresponde aos interesses da classe dominante na luta pela hegemonia no contexto do ‘efeito de isolamento’ e na relação concreta das forças políticas em uma dada formação social. Por sua vez, isso se reflete na permeação de (elementos da) ideologia dominante nas ideologias das classes subordinadas, de modo que a ideologia dominante chega a estruturar as próprias formas de resistência popular ao bloco no poder.
Poulantzas também relaciona hegemonia com a forma do Estado. De fato, enquanto ele argumenta que a hegemonia é um fenômeno do campo das práticas políticas (e ideológicas) de classe, ele também insiste que elas devem estar localizadas em termos da estrutura do Estado. Pois, enquanto uma dada forma de estado impõe limites à composição do bloco no poder e à natureza da classe ou fração hegemônica, mudanças em qualquer uma delas, por sua vez, exigem a reorganização do Estado. Por conseguinte, Poulantzas argumenta que o Estado liberal (ou não intervencionista) é a melhor casca possível para garantir a dominação política do capital competitivo, sugerindo também que o capital monopolista deve substituir o Estado liberal por um Estado intervencionista (e, posteriormente, pela forma “estatista autoritária”) para garantir a melhor casca para seu domínio político. Dentro desses limites, no entanto, é bem possível que diferentes frações do capital desfrutem da hegemonia e, assim, influenciem o curso específico de desenvolvimento do capitalismo em uma dada formação social. Pois, além de seu fracionamento constitutivo de acordo com as etapas do MPC, o capital também é dividido em frações de acordo com sua posição no circuito de capital em escala nacional e internacional. Assim, Poulantzas não apenas segue Marx e Engels ao sugerir que a hegemonia no Estado liberal pode ser exercida pelas frações industriais, comerciais, bancárias ou agrícolas do capital, mas também argumenta que no Estado intervencionista pode ser exercida pelas frações industriais ou bancárias de capital monopolista e, noutro lugar, refere-se a mudanças na hegemonia entre frações de capital monopolista orientadas para os EUA e frações orientadas para a CEE (Comunidade Econômica Europeia).
SOBRE AS FORMAS NORMAIS E AS FORMAS EXCEPCIONAIS
A significância desses importantes argumentos sobre as lutas políticas de classe e hegemonia surgem particularmente bem nas análises que Nicos Poulantzas oferece sobre os Estados “normais” e os Estados “excepcionais”. A distinção mais geral entre essas formas contrastantes de Estado é encontrada na alegação de que a primeira corresponde a conjunturas nas quais a hegemonia burguesa é estável e segura e a segunda corresponde a uma crise de hegemonia. Assim, enquanto o momento do consentimento domina o da violência constitucionalizada nos Estados “normais”, nos Estados “excepcionais” percebe-se um aumento do uso da repressão física e de uma “guerra aberta” contra as classes dominadas. Isso se reflete, por sua vez, no fato de que, enquanto instituições democráticas representativas com sufrágio universal e partidos políticos concorrentes caracterizam o Estado ‘normal’, os Estados ‘excepcionais’ são caracterizados por suspenderem o princípio eleitoral (com a possível exceção de plebiscitos e / ou referendos facilmente manipulados) eliminando, também, o sistema partidário plural. Além disso, enquanto os aparatos estatais ideológicos no Estado ‘normal’ são tipicamente privados e gozam de um grau significativo de autonomia sob seu controle, aqueles no Estado ‘excepcional’ são subordinados ao aparato repressivo do Estado, em parte para legitimar o aumento da coerção, em parte para superar a crise ideológica que acompanha a crise de hegemonia. Esse controle é acompanhado por um aumento do burocratismo na organização e no funcionamento interno do aparato estatal bem como por um declínio na separação de poderes entre seus ramos, ligada à infiltração de ramos subordinados pelo ramo dominante e / ou à expansão do poder paralelo, redes e correias de transmissão que cortam e interligam diferentes ramos. Isso é evidente no contraste entre o Estado de direito e seus limites constitucionais concomitantes (e sua regulação legal) à transferência de poder no Estado “normal” e o recurso “excepcional” à arbitrariedade (pelo menos na esfera do direito público), a fim de reorganizar a campo de hegemonia. Em suma, se o Estado “normal” depende da operação estável de instituições democráticas representativas sob a hegemonia da (s) classe (s) dominante (s), o Estado “excepcional” elimina as instituições democráticas e as organizações autônomas das classes dominadas dependendo, em vez disso, da coerção com certas concessões materiais e da ofensiva ideológica para garantir o domínio do capital.
Poulantzas argumenta que instituições democráticas representativas facilitam a circulação orgânica e a reorganização da hegemonia com base em ‘equilíbrios instáveis de compromisso’ dentro do bloco de poder, bem como entre este bloco e as massas populares. Mas também tende a “congelar” o equilíbrio de forças que prevalecia no momento de sua constituição e, portanto, se mostra inflexível diante de novos distúrbios e contradições. Na melhor das hipóteses, essa forma de Estado pode manter um certo grau de manobrabilidade, na medida em que constrói um aparato político para concentrar e canalizar o apoio de massa (por exemplo, o partido fascista e os sindicatos), duplicando correias de transmissão e redes paralelas de poder para facilitar mudanças rápidas na distribuição do poder em resposta ao “parlamentarismo negro” (para usar o termo de Gramsci em sua analogia aos “mercados negros”) das lutas dos bastidores entre interesses ou grupos concorrentes, instilando uma ideologia que permeia as classes dominadas tão bem quanto as classes dominantes e, portanto, atua como o “cimento” da formação social. Na pior das hipóteses, esses regimes são isolados das massas, não possuem aparatos político-ideológicos especializados para canalizar e controlar o apoio das massas, exibindo uma fragmentação rígida do poder de Estado entre ‘clãs’, ‘camarilhas’ e ‘feudos’, não possuindo uma ideologia capaz de cimentar os aparatos estatais em conjunto no interior de um bloco unificado. Isso resulta em uma política de massas confusa e inconsistente, em um esforço para neutralizar a oposição e em compromissos puramente mecânicos, alianças táticas para acerto de contas dos interesses “econômicos-corporativos” no bloco de poder. Isso intensifica as contradições internas do aparato estatal, tornando-o inflexível frente a crises econômicas e / ou políticas. Os dois casos são ilustrados por Estados fascistas e ditaduras militares, respectivamente e, embora Poulantzas não o tenha discutido da mesma forma, o bonapartismo parece ser um caso intermediário. Pois, enquanto o bonapartismo carece de um partido de massa comparável ao fascismo e está, de fato, associado a um declínio do papel representativo dos partidos na cena política em favor da predominância do executivo, ele consolida uma base de massa através da mobilização do apoio político da pequena burguesia, desenvolvendo uma ideologia distinta que articula esse apoio aos interesses do bloco no poder. Além disso, embora não seja uma forma “normal” de Estado e corresponda às crises de hegemonia e de representação, o bonapartismo ainda exibe um grau acentuado de centralismo organizado em torno do papel unificador da burocracia. Deve-se notar, no entanto, que, apesar das diferenças importantes entre essas formas ‘excepcionais’ de Estado, nenhuma delas pode garantir a regulação flexível e orgânica das forças sociais e a distribuição de hegemonia que é possível nas democracias burguesas. E, por esse motivo, assim como a transição de um Estado ‘normal’ para um Estado ‘excepcional’ coincide com crises políticas, em vez de se desenvolver por uma rota contínua e linear, a transição de uma forma ‘excepcional’ para uma forma ‘normal’ envolve também uma série de rupturas e crises, em vez de um simples processo de autotransformação.
ESTATISMO AUTORITÁRIO
Essas análises de estados ‘excepcionais’ também influenciaram Poulantzas em suas discussões mais recentes sobre o Estado ‘normal’. Ele sugere que a nova forma de Estado capitalista é o ‘estatismo autoritário’ e define sua tendência básica de desenvolvimento como ‘controle intensificado do Estado sobre todas as esferas da vida socioeconômica, combinado com o declínio radical das instituições da democracia política com o corte draconiano e multiforme das chamadas liberdades “formais”. Mais particularmente, ele argumenta que os principais elementos do estatismo autoritário e suas implicações para a democracia representativa compreendem: primeiro, uma transferência de poder do legislativo para o executivo e a concentração do poder no interior deste; segundo, uma fusão acelerada dos três poderes estatais, o legislativo, o executivo e o judiciário – acompanhada por um declínio do Estado de direito; terceiro, o declínio funcional dos partidos políticos como interlocutores privilegiados da administração e organizadores principais da hegemonia; e, finalmente, o crescimento das redes paralelas de poder, atravessando a organização formal do Estado, exercendo uma participação decisiva em suas atividades.
Essas mudanças correspondem a um aprimoramento peculiar dos elementos gerais da crise política e da crise do Estado articulados com a crise econômica supostamente característica de toda a atual fase do capitalismo. Elas também podem ser reforçadas pelo ‘Estado em crise’ (quando as crises são do Estado e não no Estado), como exemplificado na França, Portugal, Grécia, Espanha e Itália. Isso significa que o ‘estatismo autoritário’ deve ser visto como uma forma normal do Estado capitalista (e, portanto, como ainda de caráter essencialmente democrático) e não como uma forma excepcional (que, segundo Poulantzas, é sempre temporária e conjunturalmente determinada, em vez de característica estrutural permanente de toda uma fase do capitalismo). No entanto, devido à instabilidade permanente da hegemonia burguesa nas principais sociedades capitalistas e aos elementos gerais da crise política e estatal, certas características excepcionais estão intimamente ligadas às características normais dominantes dessa nova forma de Estado. Em particular, surge um aparato para-estatal repressivo de reserva, paralelo aos principais órgãos do Estado e que serve preventivamente para policiar as lutas populares e outras ameaças à hegemonia burguesa. Mais comumente, os vários elementos excepcionais que caracterizam todas as formas de Estado são agora cristalizados e orquestrados em uma estrutura permanente paralela ao Estado oficial. Essa duplicação do Estado parece ser uma característica estrutural do estatismo autoritário, envolvendo uma constante simbiose e uma interseção funcional das duas estruturas sob o controle do alto comando do aparato estatal e do partido dominante.
Ao discutir o ‘estatismo autoritário’, Poulantzas se concentra na ‘irresistível ascensão da administração estatal’. Ele relaciona isso principalmente ao crescente papel econômico do Estado, que é modificado pela situação política. Pois intervenção estatal significa que a lei não pode mais ser confinada a normas gerais, formais e universais cuja promulgação é preservada pelo parlamento como a personificação da vontade geral do povo-nação. Em vez disso, as normas legais estão sujeitas a especificações cada vez mais elaboradas pela administração em relação a conjunturas, situações e interesses específicos, e até mesmo sua formulação inicial passou quase que inteiramente do parlamento para a administração. Essa mudança em direção à regulamentação particularista a custa do Estado de Direito reflete não apenas nos imperativos de intervenção econômica detalhada, mas também nos problemas de permanente instabilidade do monopólio da hegemonia no seio do bloco no poder e sobre o povo. Assim, além de seus efeitos econômicos, o declínio da lei também é evidente na crescente preocupação pelo policiamento preventivo dos que são potencialmente desleais e desviantes, em vez da punição judicial por ofensas claramente definidas contra a lei.
Essas mudanças incentivam a fusão dos três ramos do Estado – legislativo, executivo e judiciário – que desfrutavam pelo menos de uma separação formal no Estado constitucional liberal. Assim, enquanto a instituição parlamentar se tornou uma mera ‘câmara de registro’ com poderes muito limitados, a burocracia estatal vem se tornando ator principal, sendo o lugar preponderante da elaboração da política de Estado sob a égide do executivo político. O poder real está rapidamente se concentrando e centralizando nas cúpulas do sistema governamental e administrativo e, de fato, está cada vez mais focalizado no cargo de presidente ou primeiro-ministro, no topo das estruturas administrativas diversas, com a aparência resultante de um sistema presidencial / ministerial personalista. Ao mesmo tempo, existem grandes mudanças no sistema partidário e no papel dos partidos políticos. O mais significativo aqui é o afrouxamento dos laços de representação entre as partes do poder e o bloco de poder (que acha difícil organizar sua hegemonia por meio de partidos no parlamento e concentra-se no governo) e entre os partidos e as massas populares (com essa representação cada vez mais mediada pelo sistema de lobby no nível reformista, econômico-corporativo). Em vez de cumprir suas funções tradicionais na elaboração de políticas por meio de compromissos e alianças em torno de um programa partidário legitimador do poder de Estado por meio da competição eleitoral por um mandato popular nacional, esses partidos evoluíram para serem correias de transmissão das decisões do executivo. Por sua vez, os principais canais de legitimação política foram redirecionados por meio de técnicas plebiscitárias e manipuladoras, contando com a mídia de massa dominadas/influenciadas pelo executivo. O declínio das instituições parlamentares, do Estado de direito e dos partidos políticos na fase atual do capitalismo acarreta um declínio radical da democracia representativa e de suas liberdades políticas, estendendo concomitante o controle autoritário sobre todas as esferas das relações sociais.
No entanto, embora a burocracia estatal tenha se tornado o principal agente na elaboração da política estatal no interesse de um bloco de poder dominado pelo capital monopolista, suas atividades se deparam continuamente com os limites inerentes à sua organização material e / ou à reprodução interna de conflitos e contradições entre diferentes classes, frações e categorias sociais. Isso coloca o problema de como a administração do Estado deve ser unificada e homogeneizada para garantir sua operação efetiva em nome do capital monopolista. Em Estados excepcionais, isso é realizado através de um aparato político (como o partido fascista, o exército, a polícia política) que é distinto da administração; no caso teoricamente normal da democracia representativa, ela é realizada através do funcionamento orgânico de um sistema partidário plural localizado a uma certa distância do aparato administrativo central.
Mas como isso pode se realizar no caso do ‘estatismo autoritário’? Poulantzas sugere a necessidade de um partido de massa dominante que possa funcionar como uma rede paralela e garantir a estrita subordinação política de todo o governo às cúpulas do executivo. Esse “partido estatal” atua como um comissário político no coração da administração e desenvolve crescentemente uma comunidade material e ideológica de interesse com os principais funcionários públicos. Ao mesmo tempo, esse partido deve transmitir a ideologia do Estado às massas populares e reforçar a legitimação plebiscitária do estatismo autoritário. Embora o estatismo autoritário tendencialmente necessite de um único partido de massa dominante, altamente unificado e estruturado, é mais provável que o consiga quando houver um longo período sem alternância no governo, essa necessidade também pode ser satisfeita através de um único “centro” interpartidário que domina os partidos que se alternam no poder em um sistema pluripartidário.
No entanto, apesar da consolidação do estatismo autoritário no interior de estados capitalistas metropolitanos, há um aprofundamento dos elementos gerais das crises política e estatal. Isso é visível na polarização partidária da administração permanente cada vez mais politizada à esquerda, e não ao lado do ‘partido estatal’ dominante (especialmente entre os funcionários menores, com seus laços estreitos com a nova pequena burguesia e seu papel de linha de frente nos confrontos com as massas populares), a relativa rigidez da relação de forças dentro da administração em comparação com a reorganização flexível de forças possível por meio de um sistema pluripartidário orgânico e, por último, as várias formas de luta de massa precipitadas pelas novas formas de intervenção estatal. Em suma, embora o estatismo autoritário envolva um fortalecimento definitivo do poder do Estado em detrimento da democracia representativa, também envolve um enfraquecimento definitivo de sua eficácia na garantia das condições da hegemonia burguesa. Isso apresenta oportunidades e perigos a esquerda em sua luta por uma transição democrática ao socialismo.
O DESLOCAMENTO DA DOMINÂNCIA PARA O POLÍTICO
Inicialmente, Poulantzas argumentou que o capitalismo envolvia uma separação institucional distinta das regiões econômica e política e acrescentou que o econômico não era apenas determinante em última instância (como era em todos os modos de produção), mas também dominante (no sentido de que o processo de trabalho e a apropriação do trabalho excedente foram mediados por meio de relações de troca e não por força extra-econômica). Isso não significa que o Estado não intervenha na economia, mas implica que seu papel se limita a manter as condições ‘externas’ de acumulação de capital. Assim, Poulantzas observou como a lei sanciona as relações de produção e exploração através de sua representação jurídica como direitos vinculados à propriedade privada, organiza a esfera de circulação através do direito contratual e comercial e também regula a intervenção do Estado na região econômica. Ele também argumentou que a região jurídico-política tem efeitos importantes na luta econômica de classes por meio do ‘efeito de isolamento’. Pois a ordem jurídica interpela os agentes de produção como sujeitos jurídicos individuais, e não como membros de classes antagônicas: isso significa que os agentes econômicos não experimentam as relações capitalistas como relações de classe, mas como relações de competição entre indivíduos mutuamente isolados e / ou grupos fragmentados de trabalhadores e capitalistas.
Esse efeito já coloca problemas relativos à ‘externalidade’ das regiões econômicas e políticas e, de fato, em autocrítica posterior, Poulantzas admite que ele tendia a ver essas regiões como distintas e mutuamente impermeáveis e, consequentemente, era incapaz de compreender a natureza ou o papel das intervenções econômicas do Estado. Esses problemas são agravados pela afirmação frequentemente avançada de que o crescimento do capitalismo monopolista envolve um deslocamento de dominância da região econômica para a política, sem, no entanto, alterar a matriz básica do Modo de Produção Capitalista. No máximo, Poulantzas admite que isso envolve uma transformação na forma de separação das regiões econômicas e políticas do MPC e destaca que o crescimento da intervenção econômica ainda depende da separação das duas regiões. Os vários argumentos relativos a esse ‘deslocamento’ são tão cruciais para a periodização geral do Estado capitalista de Poulantzas e para sua descrição no próprio MPC, que agora devemos considerá-los com o máximo de detalhes possível.
Vamos começar lembrando dois argumentos. Em primeiro lugar, Poulantzas diz que a matriz típica do MPC emerge com a “subsunção real” do trabalho assalariado sob controle capitalista. Isso ocorre com o aumento da indústria ou maquinário em larga escala (em vez de uma simples cooperação baseada na manufatura) e está associado à determinação do circuito geral de capital pelo ciclo do capital produtivo (em oposição ao capital comercial ou de mercadorias do período de transição fabril). Em segundo lugar, Poulantzas argumenta que a base de toda exploração capitalista no MPC puro é a criação e apropriação de mais-valor. Nesse contexto, Poulantzas segue Marx ao distinguir duas formas de apropriação da mais-valia: absoluta (baseada na extensão do dia útil e / ou na intensificação do esforço) e relativa (baseada no aumento da produtividade para uma determinada duração e intensidade do trabalho). Poulantzas então usa essa distinção para demarcar dois estágios do MPC: capitalismo competitivo ou liberal (baseado na mais-valia absoluta ou ‘exploração extensiva’) e capitalismo monopolista ou imperialismo (baseado na mais-valia relativa ou ‘exploração intensiva’ e associado à importante tendência da queda da taxa de lucro (TRPF)). No estágio competitivo, o Estado intervém para garantir as condições gerais ‘externas’ da exploração capitalista; no estágio monopolista, ele intervém no próprio processo de valorização – especialmente para promover a intensa exploração da força de trabalho e mobilizar contra-tendências para a TRPF.
Assim, o Estado passa de um papel mais ou menos limitado para garantir as condições políticas e ideológicas gerais da acumulação de capital (permitindo a reprodução da força de trabalho através da forma salarial, além de permitir que capitalistas individuais controlem a valorização) para um papel em que o Estado está fortemente envolvido na reprodução da força de trabalho (educação, treinamento, saúde, habitação, transporte, serviços coletivos, etc.) e no processo de valorização (pesquisa científica, inovação tecnológica, reestruturação industrial, medidas monetárias e fiscais para integrar o ciclo de produção e a esfera de circulação-consumo, promovendo a desvalorização de uma parte do capital social total para elevar a taxa média de lucro, etc.). Entre as últimas funções está incluído o papel do Estado na socialização das relações de produção para igualar a socialização das forças produtivas (descrito como tal em dois textos iniciais, redefinidos posteriormente como um preenchimento da lacuna entre posse econômica internacional cada vez mais integrada e poderes de propriedade econômica que ainda são relativamente dispersos).
Além disso, enquanto as relações econômicas – no sentido das forças de mercado como principal mediação da lei do valor – eram dominantes no capitalismo competitivo e as funções econômicas do Estado estavam subordinadas ao seu papel estritamente político como fator de coesão social, no capitalismo monopolista são as funções econômicas do Estado que são superordenadas e incompressíveis enquanto áreas centrais de valorização que também foram transferidas do mercado para o campo de intervenção estatal. Por sua vez, isso está associado à reorganização, ampliação e consolidação dos aparelhos econômicos de Estado, para que assim seu papel econômico não seja mais mascarado pela predominância de funções repressivas ou ideológicas de caráter político global, emergindo como um centro de poder privilegiado para a fração do capital monopolista, que exerce hegemonia dentro do bloco no poder e depois desempenha um papel crucial na unidade – centralização do poder do Estado. Em resumo, no entendimento de que o ciclo do capital produtivo se tornou crucialmente dependente da intervenção do Estado e de que o papel político global do Estado foi subordinado a suas novas funções econômicas, Poulantzas conclui que houve um deslocamento de dominância na matriz do MPC das forças econômicas (ou forças de mercado) para a intervenção política (ou estatal) na reprodução geral da relação de capital.
Ao apresentar essas visões, Poulantzas continua enfatizando que a intervenção econômica está relacionada à luta de classes. Isso vale não apenas para a luta econômica de classes no centro do processo de valorização dentro do ciclo do capital produtivo, mas também para a luta política e ideológica de classes relativas às condições gerais de dominação de classe. Poulantzas, em particular, rejeita a visão de que o papel econômico do Estado é técnico e neutro, insistindo que é determinado na e por meio da luta de classes. Contradições entre as classes dominantes e frações no bloco de poder e entre as classes dominantes e dominadas são necessariamente reproduzidas nas atividades econômicas do Estado – tanto em relação ao seu impacto econômico de curto prazo ou quanto às suas repercussões na hegemonia dentro do bloco de poder e / ou sobre as massas populares. Isso ajuda a explicar a incoerência das políticas econômicas e a tradução de crises econômicas em crises políticas e ideológicas. Isso também é relevante para compreender como as políticas econômicas contribuem para a manutenção da hegemonia por meio das formas de individuação e fragmentação social que elas impõem às relações de classe, bem como pelas concessões materiais para as classes dominadas.
Poulantzas argumenta também que seu papel econômico dominante introduz certa rigidez no Estado. Esse não pode mais evitar os efeitos adversos da intervenção, recusando-se a intervir – a inação precipitaria problemas econômicos devido ao fracasso resultante em garantir pré-condições políticas cruciais para a acumulação de capital no estágio atual do capitalismo. Assim, as funções econômicas seguem uma lógica própria que pode ser contrária à necessidade de garantir a hegemonia do capital monopolista. A subordinação dessas atividades aos interesses do capital monopolista põe em dúvida a pretensão estatal de incorporar o interesse nacional-popular; e sua dependência de intervenções ad hoc e discricionárias lança dúvidas sobre a legitimidade das ações do Estado, na medida em que elas ainda são justificadas pela legalidade ou pelo Estado de direito. Poulantzas sugere que isso é em parte resolvido por meio de uma mudança na ideologia dominante dos valores e normas jurídico-políticas para valores e normas tecnocráticas, concluindo ainda que o estágio atual do capitalismo acarreta um problema generalizado da hegemonia no bloco no poder e sobre as massas.
Finalmente, Poulantzas analisa os limites da intervenção estatal na região econômica. Ele as localiza em três áreas: a separação entre as regiões econômicas e políticas do MPC, a forma institucional do Estado e os efeitos da luta de classes. Ele argumenta que, embora o Estado não possa evitar a intervenção na economia, ele é também excluído do centro produtivo do circuito do capital: é, portanto, reduzido a um papel predominantemente reativo – enfrentando os efeitos do capitalismo sem ser capaz de agir decisivamente em suas causas. Essa exclusão também significa que a disponibilidade de recursos para o Estado depende da rentabilidade flutuante do capital e isso, por sua vez, dificulta o planejamento de receitas e pode precipitar crises fiscais. A incoerência de suas políticas também é atribuída à inércia administrativa, incompetência, ponderação burocrática e poderes contrários de veto do próprio aparato estatal. Esses fatores são reforçados pelas lutas de classes no bloco de poder e entre o bloco de poder e as classes dominadas que são necessariamente reproduzidas no terreno do Estado.
SOBRE A TRANSIÇÃO SOCIALISTA
Os pontos de vista de Nicos Poulantzas sobre estratégia política mudaram pari passu, com suas mudanças de opinião sobre a natureza do tipo de Estado capitalista. Inicialmente ele defendia uma estratégia leninista, na qual a classe trabalhadora deveria ser mobilizada numa organização contra-estatal externa ao Estado capitalista e sob a liderança de um partido político revolucionário de vanguarda. Como o Estado capitalista era a expressão institucional inequívoca da dominação política burguesa, seria impossível para a classe trabalhadora utilizar essa forma de Estado para efetuar uma transição para o socialismo. De fato, Poulantzas enfatiza que a classe trabalhadora não pode, seguindo Gramsci, alcançar a hegemonia antes de tomar o poder do Estado. Essas visões foram um tanto elaboradas nas reflexões de Poulantzas sobre a estratégia e as táticas do Comintern em relação ao fascismo e seus resíduos nas teorias comunistas contemporâneas do Capitalismo Monopolista do Estado e da aliança anti-monopolista. Ao criticar os erros do Comintern Poulantzas sugere que uma revolução comunista bem-sucedida (ou, de fato, a defesa das vitórias da classe trabalhadora nas sociedades capitalistas) exige o primado da luta política de classes sobre a luta econômica de classes, a busca consistente de uma linha de massas e um compromisso com o internacionalismo proletário. Por sua vez, isso envolveria o desenvolvimento de conselhos de trabalhadores como o lugar da luta de massas (com demandas econômicas subordinadas à luta política de classes), o desenvolvimento de uma frente única da classe trabalhadora e o desenvolvimento de uma frente popular entre os camponeses pobres e a pequena burguesia. Poulantzas também argumenta que os partidos comunistas contemporâneos tendem a separar as lutas econômicas e políticas de classe, a negligenciar uma linha de massas e a confiar em pactos eleitorais para mobilizar classes intermediárias por meio de suas organizações próprias, dando prioridade à frente popular (erroneamente definida por abranger o capital não-monopolista e as classes intermediárias) em relação ao desenvolvimento de uma frente única e enfatizando excessivamente o aspecto nacional do programa comunista.
Esse compromisso com uma linha de massas envolvendo alianças com as classes intermediárias também é central para o pensamento de Poulantzas sobre as classes no capitalismo contemporâneo. Ele argumenta que o partido comunista deve procurar polarizar a pequena burguesia em torno da classe trabalhadora e unificar o “povo” sob a liderança da classe trabalhadora contra o bloco de poder. Isso não simplesmente porque a pequena burguesia está se proletarizando devido ao lugar objetivo que ocupa nas relações de produção – mas para afastar as frações da pequena burguesia do apoio às organizações burguesas, dando, assim, suporte às organizações da classe trabalhadora que conquista a pequena-burguesia por meio da representação ativa e prolongada de seus interesses específicos. Isso envolve mais do que ‘compromissos’ mecânicos e ‘concessões’ de curto prazo para a pequena burguesia – requer uma estratégia de longo prazo que reconheça as diferenças entre as classes e frações da aliança, que tente gradualmente resolver essas ‘contradições no seio do povo’ para então unificá-lo e com isso tentar modificar as posições (ou demandas) de classe dos potenciais aliados, para que eles compartilhem os objetivos da classe trabalhadora na transição para o socialismo.
Esses argumentos são significativamente alterados nos trabalhos posteriores de Poulantzas, sob o impacto de suas contínuas reflexões sobre a ditadura militar em sua terra natal (Grécia) e a natureza mutável do Estado no capitalismo avançado. Em particular, ele negou a continuidade da validade da estratégia leninista da dualidade de poderes, pois essa se baseava numa ruptura entre o Estado capitalista como um aparelho monolítico centralizado e um poder popular paralelo e externo a esse Estado oficial. Parece haver três razões principais para essa mudança no argumento: primeiro, a reorganização e ampliação do Estado, que agora penetra todos os âmbitos da vida social; segundo, a condensação das contradições de classe no seio do Estado, tornando possível que rupturas passem pelo Estado e, terceiro, o fato histórico de que as ditaduras militares entraram em colapso sem o desenvolvimento de uma situação de dualidade de poderes.
Poulantzas concluiu que seria necessária uma nova estratégia no estágio atual do capitalismo. Isso envolveria a estreita articulação e coordenação da luta de classes dentro do aparato oficial do Estado com a finalidade de intensificar suas contradições internas, polarizando porções significativas de seu pessoal em torno de uma transição para o socialismo e provocando rupturas entre os vários centros de poder, ramos e aparatos do Estado integral; e a luta de classes à distância do aparato oficial de Estado, com o objetivo de alterar o equilíbrio de forças no interior do Estado, construindo órgãos de democracia direta e unificando as massas populares em oposição ao bloco no poder. O colapso das ditaduras militares ocorreu em grande parte por causa de contradições internas dentro do bloco de poder que foram intensificadas por lutas populares à distância do núcleo do Estado; o fracasso de um partido de massa revolucionário em coordenar e centralizar essas lutas populares sob a hegemonia da classe trabalhadora foi a principal razão pela qual as ditaduras foram substituídas por regimes democráticos burgueses. Nesse contexto, Poulantzas enfatiza que o Estado não é um mero instrumento a ser capturado pela classe trabalhadora em um ataque frontal, seja por meio de infiltração ou de cerco – possuindo uma forma institucional que circunscreve as mudanças no equilíbrio de forças e permite à burguesia recuperar o poder de Estado se a classe trabalhadora não estabelecer as condições institucionais para o exercício de seu próprio poder. É por esse motivo que uma transição bem-sucedida em direção ao socialismo democrático exige uma ação dentro do Estado, uma ação para transformar o Estado e uma ação à distância do Estado. Mas certamente novos elementos também foram introduzidos. Em primeiro lugar, ele enfatiza a necessidade de preservar e ampliar as instituições e liberdades da democracia representativa ao lado dos órgãos em desenvolvimento da democracia direta. Pois a experiência histórica não apenas sugere que a abolição da democracia parlamentar supostamente “burguesa” leva inevitavelmente à supressão da democracia direta pelo partido de vanguarda devido à eliminação das liberdades ditas “formais” e do sistema partidário plural, mas também devido a um perigo claro de que a democracia direta logo degenere em um sistema econômico-corporativo desunificado, a menos que haja um fórum parlamentar pelo qual os diferentes interesses possam ser organizados e unificados em torno do projeto socialista. Em segundo lugar, Poulantzas parece rejeitar a necessidade de um único partido revolucionário de massas que atue como a vanguarda da transição para o socialismo. Essa rejeição está ligada à visão de que a democracia representativa envolve uma pluralidade de partidos e a uma reavaliação do próprio partido de vanguarda. Nesse contexto, Poulantzas sugere que os partidos comunistas estão em crise por causa de seus compromissos com a primazia da classe trabalhadora e com as lutas nas empresas. Isso significa que eles subestimaram os novos movimentos sociais (como feminismo, regionalismo, movimentos ecológicos, agitações estudantis etc.) que ou são policlassistas ou estão localizados fora do âmbito da produção. Ele conclui que os partidos devem estar ativamente presentes nos novos movimentos sociais sem se tornar meramente populistas e que esses movimentos devem encontrar um lugar nos partidos sem perder sua própria especificidade (não classista). Por sua vez, isso implica que uma certa tensão irredutível entre partidos da classe trabalhadora e movimentos sociais é uma condição necessária da dinâmica de transição para o socialismo democrático. Finalmente, em aparente contradição com seu compromisso inicial com o chamado internacionalismo proletário e sua crítica a uma ênfase excessiva ao lado nacional da política comunista, Poulantzas adotou um compromisso com os caminhos nacionais para o socialismo e argumentou que tentativas de contornar essas realidades nacionais seriam insanas.
UMA CRÍTICA DE POULANTZAS
O ponto de partida para a análise de Poulantzas é a separação institucional das regiões jurídico-política da econômica no MPC e a oportunidade teórica que isso oferece para uma descrição separada daquela região nas sociedades capitalistas. De fato, Poulantzas argumenta que, caracterizada pelo comportamento hegemônico de classe e pela representação dos interesses políticos da (s) classe (s) dominante (s), é através de conceitos políticos apropriados que o Estado capitalista deve ser investigado. Além disso, embora Poulantzas tenha prestado mais tarde maior atenção ao papel econômico do Estado, suas análises sobre a limitação de tal intervenção ainda se concentram amplamente em fatores políticos. Essa abordagem obviamente coloca problemas sobre o papel da determinação econômica em sua consideração sobre a região jurídico-política – especialmente porque ele originalmente sugeriu que a região econômica do MPC não era apenas determinante, mas também dominante. De fato, como o próprio Poulantzas argumentou certa vez em sua revisão de Pour Marx, de Althusser, as concepções estruturalistas sobre a “determinação econômica em última instância” combinada com uma insistência na “autonomia relativas” das diferentes regiões podem facilmente levar a uma “superpolitização” da luta de classe e a uma “superdominância” do nível político em geral. No sistema teórico de Poulantzas, além disso, essa tendência do “político” é reforçada por dois outros elementos. Poulantzas argumenta que a função constitutiva do Estado é manter a coesão global se a formação social for dividida em classes e que o Estado capitalista é o primeiro a se especializar nessa função por meio de sua capacidade estruturalmente determinada de garantir a liderança hegemônica de classe. Em suma, a tentativa de combinar as perspectivas althusseriana e gramsciana no contexto de uma teoria geral do Estado como órgão de dominação política agravou o potencial “politicista” inerente a cada uma dessas perspectivas.
Essas tendências à “superpolitização” se refletem em muitos aspectos do trabalho de Nicos Poulantzas. Assim, apesar de sua defesa inicial da determinação econômica em última instância, isso parece funcionar meramente como garantia de privilegiar a determinação política em primeira instância. No máximo, Poulantzas discute as determinações econômicas em termos de contradições no campo da luta econômica de classes e suas repercussões na luta pela hegemonia. Além disso, ele se refere apenas às limitações estruturais impostas pela exclusão do Estado do núcleo produtivo da economia capitalista. Não há tentativa de considerar como as formas básicas de relação do capital impõem restrições estruturais distintas ao funcionamento do aparato estatal e ao exercício do poder estatal.
Em vez de explorar as complexas inter-relações entre fatores econômicos e políticos na determinação da natureza do aparato estatal e do poder estatal, Poulantzas realmente adota uma problemática política que envolve momentos estruturalistas e gramscianos. Por um lado, ele examina como a dominação política de classe está inscrita nas formas institucionais básicas do Estado capitalista; e, por outro lado, ele considera como as classes e / ou frações dominantes estabelecem sua hegemonia por meio de práticas políticas e ideológicas específicas. O chamado “efeito isolamento” medeia esses dois momentos, na medida em que fornece a matriz tanto para a articulação institucional do Estado quanto para as práticas relacionadas à hegemonia. No entanto, embora os momentos estruturalista e gramsciano sejam mediados dessa maneira, existem sérias dificuldades teóricas a cada momento e sua articulação através do ‘efeito de isolamento’. Isso pode ser visto nas várias tentativas que Poulantzas faz para explicar a autonomia relativa e a unidade de classe do aparato Estatal, a constituição da hegemonia no bloco de poder e sobre as classes dominadas e o papel das forças de classe e as não-classistas na luta política. Vamos lidar com cada uma dessas problemáticas.
Poulantzas introduz a noção de autonomia relativa para que realize uma função precisa em sua análise do Estado capitalista. Refere-se à forma e o grau de autonomia institucional em relação às classes e frações dominantes necessários para organizar sua hegemonia. Nesse sentido, é totalmente diferenciado de duas outras formas possíveis de autonomia relativa: a que facilitou uma revolução pelo alto durante a transição do feudalismo para o capitalismo e a que, devido ao equilíbrio entre as forças sociais, permitiu ao Estado arbitrar entre elas. Inicialmente, Poulantzas explicou a autonomia relativa do Estado em termos do lugar particular da região política na matriz estrutural do MPC. Pois ele argumentou que a unidade institucional do Estado como instância está fundamentada na manutenção da unidade dos vários níveis do MPC; e acrescenta que essa unidade ou autonomia em si, só é possível devido à separação institucional do estado da região econômica e a concomitante separação da luta de política de classes política da luta econômica. No entanto, enquanto Poulantzas certamente coloca a autonomia relativa em um arcabouço estruturalista, ele também a localiza em termos do campo da luta de classes (política). Nesse contexto, ele tenta mostrar que as formas específicas e o grau de autonomia relativa dependem da conjuntura precisa da luta de classes. Assim, Poulantzas realmente adota duas abordagens da autonomia relativa do Estado: a estruturalista e a conjuntural.
Isso introduz uma contradição fundamental em sua análise, pois Poulantzas sustenta que, embora as políticas do Estado capitalista sejam prodigiosamente contraditórias e incoerentes a curto prazo, a longo prazo elas só podem corresponder aos interesses políticos da burguesia. Esse argumento coloca problemas crescentes para Poulantzas, pois à medida que sua posição teórica muda progressivamente da metafísica estruturalista para uma insistência no primado da luta de classes sobre a causa estrutural – uma mudança refletida em suas crescentes afirmações de que as lutas de classes são reproduzidas no coração do aparato estatal, acaba por reconhecer a tendência à desunião no aparato estatal. Como Poulantzas resolve essa contradição em sua discussão sobre a autonomia relativa? Parece que ele abandonou o compromisso com uma interpretação estruturalista sobre os efeitos estruturais como refletindo os imperativos funcionais da autorreprodução do todo social; e substituiu por uma perspectiva que entende os efeitos estruturais como efeitos específicos de forma determinada das instituições nas lutas políticas de classes. Assim, ele sugere que o interesse político de longo prazo da burguesia emerge como resultado de uma multiplicidade de micropolíticas diversificadas, refletindo, por sua vez, as lutas e contradições de classe inscritas de maneira específica no próprio Estado. Aparentemente, essa solução depende da metáfora de um paralelogramo de forças e / ou de uma seletividade estrutural inerente à forma institucional do estado como tal.
Mas como essa “necessidade macroscópica” pode emergir dessa “diversidade microscópica”? Ou sua solução é nula porque não pode passar de uma infinidade de políticas contraditórias para um resultado final inequívoco ou então é tautológica porque ele apenas postula o resultante que sua abordagem teórica exige. Além disso, se Poulantzas tivesse conseguido mostrar que a autonomia relativa do Estado poderia garantir o domínio político burguês, isso teria sérias consequências para sua análise geral. Pois isso minaria claramente seu argumento a respeito da possibilidade de crises dessa mesma hegemonia que a autonomia relativa deveria garantir e / ou acarretaria numa abordagem teleológica dos Estados excepcionais que emergiriam para reconstituir a hegemonia burguesa. Alternativamente, isso significaria que sua explicação seria apresentada em um nível tão alto de abstração que o conceito de autonomia relativa se tornaria redundante. Pois, como existem apenas duas classes fundamentais nas sociedades capitalistas (a pequena burguesia não possui interesses políticos de longo prazo e é incapaz de exercer o poder do Estado) e, portanto, apenas dois possíveis efeitos do poder do Estado (reprodução do MPC ou uma transição socialismo), todos os resultados antes de uma transição contariam como a manutenção a longo prazo do capitalismo. Nesta interpretação de seu argumento, a noção de autonomia relativa é redundante porque qualquer forma de Estado na sociedade capitalista teria o mesmo efeito subespécie aeternatis. Além disso, se Poulantzas realmente tivesse pretendido tal argumento, ele também não poderia advogar que operasse tanto dentro como fora do Estado para produzir uma ruptura ou quebra decisiva de seu funcionamento em nome do capital. Em suma, há dificuldades fundamentais em seu relato de relativa autonomia.
Esses problemas são reproduzidos na análise de Poulantzas da unidade do poder estatal. De fato, como observamos acima, ele estabeleceu originalmente uma relação circular entre a autonomia relativa do aparelho de Estado e a unidade de classe do poder de Estado. Em estudos posteriores, no entanto, Poulantzas tende a minar seus argumentos sobre a unidade de classe, bem como a autonomia relativa do tipo capitalista de Estado. Assim, considerando que ele originalmente considerava a unidade de classe do poder do Estado em termos do papel estruturalmente determinado do Estado como fator de unidade em uma formação capitalista e a explicava em termos da estrutura institucional da democracia política que permite a um Estado soberano se apresentar como representante do interesse geral do povo-nação, além de organizar um bloco de poder unitário sob a hegemonia de uma fração de classe específica, trabalhos posteriores tornam essa noção de unidade de classe cada vez mais problemática, pois, em primeiro lugar, Poulantzas introduz o conceito de uma pluralidade de aparatos estatais ideológicos relativamente independentes ao lado de um aparato repressivo de um único estado com uma rigorosa unidade interna; em segundo lugar, ele admite a possibilidade de que as contradições dentro dos vários ramos do aparato repressivo do Estado, bem como dentro dos diferentes aparatos ideológicos do Estado, possam adquirir um papel principal e não meramente secundário no funcionamento do Estado e, presumivelmente, minar a unidade interna normalmente no domínio de qualquer ramo da RSA, que é o centro privilegiado da fração hegemônica. Em terceiro lugar, ele considera a autonomia relativa do Estado capitalista como a soma das autonomias relativas comandadas por diferentes ramos, aparelhos ou redes em relação a outros de sua espécie e a unidade de classe de seu poder como o resultado de uma multiplicidade de atividades diversificadas, macro-políticas mutuamente contraditórias. Por fim, ele abandona o argumento de que as classes e frações do bloco de poder ocupem centros de poder privilegiados dentro do aparato estatal enquanto as classes dominadas podem ter apenas centros difusos de resistência e, em vez disso, sugere que as classes dominadas podem eventualmente garantir centros de poder no próprio Estado capitalista.
Essa mudança gradual de posição reflete o abandono progressivo de Poulantzas do formalismo estruturalista na análise das práticas de classe, mas ainda é combinado com uma contínua insistência formal na autonomia relativa dos aparatos estatais como um todo e na unidade de classe do poder estatal exercido através desses aparelhos. Essa insistência é formal porque é relegada para a famosa última instância, a longo prazo, a conclusão do processo etc., e, como já foi observado, a hora solitária da última instância nunca chega, o longo prazo é apenas o agregado de uma série de prazos curtos, e o processo nunca é concluído, mas é sempre renovado. Mas Poulantzas continua a insistir nesses princípios, a fim de distinguir suas análises das abordagens instrumentalistas e / ou daquelas que propõem uma conquista gradual, não-ruptural e fragmentada do poder de Estado. No entanto, enquanto esses princípios gêmeos eram necessários para uma crítica estruturalista de tais posições, os últimos são mais efetivamente atacados de um ponto de vista diferente. Os resíduos estruturalistas remanescentes nas análises de Poulantzas minam esses ataques em vez de fortalecê-los, contradizendo, também, as premissas de sua própria estratégia revolucionária com sua ênfase no primado da luta de classes sobre qualquer estrutura.
Ao explicar a constituição da hegemonia burguesa, Poulantzas encontra dificuldades teóricas semelhantes. Embora ele defenda que a hegemonia não é uma propriedade do estado como um conjunto estrutural, mas que se constitui no terreno das práticas de classe, ele às vezes discute a hegemonia como o efeito necessário, objetivo e determinado teleologicamente da autonomia relativa do Estado e, às vezes, dá primazia às contingências da luta política de classes. Nos dois casos, é o nível político que tem um peso crucial, ou sob o disfarce do princípio estrutural da autonomia relativa ou com o papel sobredeterminante da luta política de classes. Essa ambiguidade pode ser vista em duas abordagens contrastantes para definir a hegemonia. Assim, Poulantzas às vezes identifica a fração hegemônica em termos do saldo líquido de vantagens políticas decorrentes de uma forma particular de Estado e / ou regime e conclui que essa forma corresponde aos interesses da fração hegemônica. Mas em outras ocasiões, ele identifica a fração hegemônica em termos de práticas políticas e ideológicas específicas que estabelecem seus interesses econômicos e políticos de longo prazo como sendo os interesses de todo o bloco no poder e / ou povo-nação e, assim, “polarizam” as posições de classe em torno desses interesses num “equilíbrio instável de compromisso” negociado sob sua liderança e proteção. Assim, Poulantzas às vezes relaciona a hegemonia à determinação estrutural da dominação de classe política enraizada nas coordenadas objetivas da forma de Estado e às vezes ao campo da posição política de classe com suas noções de estratégia, alianças etc.
Infelizmente, o próprio Poulantzas não tenta conciliar essas abordagens contrastantes da hegemonia e agora devemos ver se isso é possível. Talvez o ponto de partida mais plausível seja o esforço de Poulantzas em evitar uma posição instrumentalista ao passo que insiste na importância da luta de classes. Assim, se é correto argumentar que a burguesia é constitutivamente incapaz de agir como sujeito de classe unitário por causa de seus interesses internos fracionados e mutuamente contraditórios, o Estado deve ser visto como um fator crucial na organização e manutenção da unidade burguesa e, a fortiori, da hegemonia de uma fração dentro do bloco de poder. Interpretado em uma perspectiva althusseriana, isso se traduz na noção estruturalista de autonomia relativa e, portanto, na fusão da hegemonia com um domínio político inscrito na estrutura. Nesse contexto, a fração hegemônica é apenas o elemento dominante no bloco dominante (1968, p. 237) e o conceito de luta de classes, embora ainda empregado, parece tornar-se redundante.
No entanto, como Poulantzas vai abandonando progressivamente o estruturalismo ele passa a ver o poder do Estado como uma forma determinada da condensação de relações sociais, tornando, assim, mais fácil conciliar essas abordagens aparentemente contraditórias da hegemonia. Isso pode ser visto como sujeito a uma dupla delimitação por meio de (a) práticas de classe específicas no campo global de práticas de classe dentro de (b) limites estabelecidos pelos efeitos estruturais de uma dada forma e / ou regime de Estado. Isso significa que uma dada forma e / ou regime estatal envolve um privilégio estrutural para uma fração específica na disputa pela hegemonia burguesa sem garantir seu sucesso (por exemplo, o Estado intervencionista e o capital monopolista) e que existe um escopo genuíno dentro desses limites estruturais para alguma variação marginal na hegemonia de longo prazo (por exemplo, capital bancário ou monopólio industrial no estado intervencionista) e maior variação no curto prazo (por exemplo, períodos de hegemonia instável, dissociações entre hegemonia no bloco de poder e sobre o povo – nação, crises de hegemonia etc.). Também explicaria a resistência estrutural (‘autonomia relativa’) que o Estado oferece à realização bem-sucedida de estratégias organizadas sob a liderança de frações ou classes estruturalmente desprivilegiadas. Ao mesmo tempo, explicaria porque Poulantzas pode falar de hegemonia da classe trabalhadora no processo de democratização e / ou na transição para o socialismo, insistindo, no entanto, que a classe trabalhadora não pode ganhar a hegemonia antes de conquistar o poder do Estado com o “esmagamento” do Estado capitalista. Pois, embora a classe trabalhadora pudesse estabelecer sua hegemonia sobre as massas populares no nível das posições de classe e / ou exacerbar qualquer desunião entre as frações do bloco de poder no terreno do Estado capitalista, não poderia garantir a hegemonia no nível de determinação estrutural até consolidar uma nova forma de Estado que corresponda aos seus interesses políticos globais de longo prazo. Em suma, se alguém interpreta Poulantzas com simpatia, as inconsistências em seu relato da hegemonia parecem superficiais e não fundamentais. Mas essa interpretação depende claramente de rejeitar a problemática estruturalista em favor das análises da forma determinada e da teoria de classes.
Mesmo se aceitarmos essa interpretação compreensiva do trabalho de Poulantzas, no entanto, seu relato de hegemonia ainda é passível de críticas. Pois, apesar de sua insistência na ausência constitutiva de classe do Estado burguês e de seu argumento de que sua relação com a sociedade civil é refratada pela individuação e fragmentação diferencial dos agentes sociais, ele ignora as implicações do “efeito de isolamento” para a criação de hegemonia em favor de um relato reducionista de classe de forças políticas e ideologias. Em vez de explorar a relação contingente entre forças políticas e / ou ideologias com os requisitos de acumulação de capital em determinadas conjunturas, Poulantzas atribui frequentemente o caráter específico de classe de partidos políticos, aparelhos determinados e ideologias, negligenciando também o papel de movimentos não classistas (por exemplo, gênero, etnia, juventude) na luta pela liderança intelectual, moral e política. De fato, é sintomático que o próprio Poulantzas defina hegemonia em termos de dominação política de classe estruturalmente determinada e / ou em termos de polarização de posições de classe em torno de um ‘equilíbrio instável de compromisso’ sob a liderança de uma fração particular de classe. No entanto, se alguém aceita suas alegações sobre o ‘efeito de isolamento’ na constituição da sociedade civil e do Estado capitalista, a influência de forças e ideologias não classisstas devem assumir um lugar central na análise política. Essas dificuldades já são evidentes nas ambiguidades acerca do “pertencimento de classe” dos agentes da luta hegemônica, como políticos, militares, oficiais e “vigias ideológicos”, bem como nas ideologias internas de ramos específicos do aparato estatal com seus modos distintos de refração da ideologia burguesa e / ou pequeno-burguesa. Essas dificuldades tornam-se agudas quando Poulantzas reconhece a importância de vários novos movimentos sociais baseados em divisões não classistas, localizados fora da esfera de produção e com uma afiliação policlassista. Dado reconhecimento tardio dessas forças e sua morte prematura, é impossível saber como Poulantzas poderia ter modificado sua posição teórica sobre a hegemonia para levar em conta essas forças e ideologias não-classistas. Portanto, devemos concluir que seu reducionismo de classe e suas tendências estruturalistas o impediram de desenvolver os conceitos necessários para uma investigação mais detalhada da hegemonia.
Outra série de problemas ocorre no importante e provocativo relato de Nicos Poulantzas sobre as formas ‘normais’ e ‘excepcionais’ do Estado capitalista. Pois não apenas o conceito crucial de ‘hegemonia’ é subdesenvolvido em relação ao ônus explicativo imposto a ela, mas os argumentos em benefício das formas ‘normais’ são amplamente afirmados, dependendo de provas de contra-indicação nos regimes ‘excepcionais’. Essas dificuldades são acentuadas na discussão de Poulantzas sobre o ‘estatismo autoritário’. Assim, ele não apenas apresenta esse como uma forma híbrida que compreende elementos normais e excepcionais (presumivelmente articulados sob o domínio dos elementos normais), mas também insiste que o estatismo autoritário leva a um declínio da democracia representativa (a forma supostamente normal de Estado burguês) sem especificar como as substitui por novas formas de participação democrática e, portanto, mantém a estrutura democrática. Todas as evidências que ele apresenta apontam para um declínio da democracia a longo prazo e não para sua transformação interna. Provavelmente, isso está relacionado à negligência de novas formas de representação (como o “corporativismo liberal” baseado no papel da divisão do trabalho) em favor de uma descrição eclética do declínio de sua forma tradicional e parlamentar e do crescimento do controle autoritário do Estado sobre as pessoas. Além disso, enquanto seus próprios princípios metodológicos e teóricos exigem que Poulantzas demonstre como o desenvolvimento do ‘estatismo autoritário’ implica numa ruptura ou quebra do processo político (uma vez que envolve uma transição para uma nova forma de Estado), ele admite que isso seja resultado da acentuação de tendências contemporâneas ao capitalismo monopolista e, portanto, também características do Estado intervencionista. A continuidade com a fase precedente do capitalismo é evidente em sua explicação dessa nova forma de Estado em termos do crescente papel econômico do Estado e / ou da instabilidade permanente da hegemonia do capital monopolista. Em resumo, mesmo se aceitarmos a descrição basicamente descritiva do ‘estatismo autoritário’ como uma forma normal, ainda não fica claro até que ponto Poulantzas pode oferecer uma explicação distinta para sua emergência e dinâmica futura.
De fato, toda a sua abordagem para periodizar o capitalismo e seu Estado levanta questões interessantes sobre a mudança da relação de seu trabalho com a teoria stamocap. Pois, embora Poulantzas fosse um crítico veemente e implacável da teoria ortodoxa do PCF sobre o capitalismo monopolista de Estado fundadas no economicismo, instrumentalismo e reformismo, alguma convergência parece ter ocorrido entre as visões de Poulantzas e as teorias stamocap mais sofisticadas. Isso é evidente em várias áreas. Seu trabalho mais recente enfatizou que o atual papel econômico do Estado intervencionista não é o resultado de um acúmulo mecânico e unilinear de funções, mas envolve uma série de rompimentos com a fase anterior do capitalismo monopolista, que são mais significativos em geral do que a ruptura dessa fase com capitalismo competitivo. Ele argumenta que áreas inteiras da valorização do capital e da reprodução de uma força de trabalho estão agora diretamente inseridas no Estado e que essa inserção ocorre principalmente em benefício do capital monopolista. Ele sugere ainda que o capital monopolista não apenas submeteu o capital não monopolista ao seu domínio econômico, mas também como sendo o único membro do bloco no poder capaz de impor sua hegemonia; e, de fato, observa que o capital não monopolista perdeu a capacidade de agir como uma força social autônoma.
Nesse contexto, Poulantzas também argumenta que o domínio das funções econômicas do Estado ameaça minar a hegemonia do capital monopolista e, assim, ampliar o espaço para compromissos entre o povo e o capital não monopolista, bem como para alianças populares que abarquem a pequena burguesia. Por sua vez, isso leva o capital monopolista a desmantelar as formas democráticas tradicionais e a construir formas autoritárias na tentativa de compensar uma crise de hegemonia permanente e generalizada. Essa convergência notável não significa, é claro, que Poulantzas também compartilhe do economicismo, do instrumentalismo e do reformismo da teoria ortodoxa stamocap. No entanto, parece quase que, quanto mais Poulantzas desenvolve suas visões distintas sobre a hegemonia política e ideológica, a autonomia relativa do Estado como um conjunto estrutural e a importância da luta revolucionária dentro, contra e fora do Estado, mais facilmente ele poderia abarcar certos argumentos substantivos das teorias de stamocap. Pois sua articulação com seus próprios pontos de vista significa que elas perderão suas conotações economicistas, instrumentalistas e reformistas e adquirirão novas implicações teóricas e políticas.
Apesar dessas críticas, deve-se enfatizar que Nicos Poulantzas desenvolveu um dos sistemas teóricos mais ricos e complexos do marxismo contemporâneo. Ao enfocar as determinações políticas do aparelho de Estado e do poder de Estado nas sociedades capitalistas, ele rompeu com o economicismo e voltou às ideias tipicamente políticas de Marx, Engels, Lenin e Gramsci. Mesmo uma rápida olhada em seu trabalho revela o significado crucial de um corpo rico e complexo de conceitos sui generis para a análise da luta política de classes: bloco no poder, fração hegemônica, classe dominante, classe reinante, alianças de classe, classe-apoio, cena política etc. Além disso, embora ele pareça ter tomado de maneira um tanto imprudente o estruturalismo althusseriano como a garantia teórica inicial para o desenvolvimento de uma teoria política regional e, embora ainda exista um número de resíduos estruturalistas em seu trabalho mais recente, o impulso principal de sua análise foi cada vez mais direcionado para a luta política de classes. Nesse contexto, termos que originalmente tinham conotações estruturalistas patentes (como autonomia relativa) adquiriram lentamente um novo significado, pois foram articulados com o argumento de que o Estado deveria ser visto como uma relação social. Essencialmente, isso significa que o poder estatal é uma condensação determinada de formas das relações de classe e deve ser investigado em termos da interação complexa entre a chamada ‘materialidade institucional’ do aparato estatal (sua forma) e o equilíbrio de forças envolvidas na ação política como nível sobredeterminante das luta de classes (relações sociais). Nesse contexto, o conceito de hegemonia permaneceu no centro das análises de Poulantzas. De fato, não apenas a hegemonia funciona como critério fundamental de interpretação ou ponto de referência em seus estudos sobre o Estado capitalista, mas também se torna um elemento essencial em sua própria estratégia revolucionária voltada para o socialismo democrático, e não para a ‘revolução passiva’ de um ‘ estatismo autoritário ‘, sob o disfarce ocidental ou oriental. Esse compromisso crescente com uma perspectiva eurocomunista de esquerda talvez seja a prova final da dívida de Poulantzas com Gramsci.
UMA ABORDAGEM DA TEORIA DO DISCURSO
Embora eu tenha dedicado a maior parte deste capítulo às análises de Nicos Poulantzas, seria bastante errado sugerir que ele estivesse sozinho no desenvolvimento do trabalho de Gramsci sobre hegemonia e suas implicações para as teorias marxistas do Estado capitalista. No entanto, enquanto Poulantzas tentou integrar a análise da hegemonia em uma teoria regional abstrata do político e considerar sua determinação estrutural e sua constituição na e através da luta de classes, a maioria dos outros teóricos neo-gramscianos segue o seu mentor no desenvolvimento de análises conjunturais mais concretas, historicamente específicas, nas quais é dada atenção quase exclusiva à luta de classes e / ou ao equilíbrio cambiante das forças sociais. Alguns desses estudos são muito proveitosos e fornecem uma nova visão sobre conjunturas específicas. No entanto, está claramente muito além do escopo deste capítulo revisar estudos históricos específicos (o que justifica minha negligência com o trabalho de Poulantzas sobre fascismo e ditaduras militares). Mas existem também alguns estudos que visam desenvolver um relato alternativo da hegemonia em termos mais abstratos e estabelecê-lo como um conceito crucial em uma teoria regional do ideológico com ambições territoriais geralmente globais. Nesse contexto, podemos citar as tentativas de desenvolver análises discursivas da produção cultural e a formação de agentes com subjetividades específicas: essas tentativas geralmente revelam uma dívida maior com as obras de Althusser, Lacan, Derrida e Foucault do que com Gramsci e não serão mais consideradas aqui. Em vez de revisar essas tentativas tangenciais de especificar o significado da hegemonia em termos de teorias do discurso, concentro-me no trabalho individual e colaborativo de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Eles se concentram nas ideologias e na luta ideológica de classe, e não no Estado e na política, como tais, mas também as relacionam com o desenvolvimento da hegemonia política e a luta pelo poder do Estado. Como esta é uma área seriamente negligenciada por Poulantzas, vale a pena comentar aqui.
Em artigos complementares, Mouffe e Laclau atacaram o economicismo na análise da política e da ideologia. Essa crítica é afirmada com mais clareza por Chantal Mouffe em sua revisão do conceito de hegemonia nos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Ela descreve três fases no movimento do economicismo para o anti-economicismo na análise política e ideológica: a forma pura e clássica do economicismo compreendia um modelo de superestrutura básica, juntamente com a alegação de que todos os assuntos econômicos, políticos e ideológicos eram assuntos subordinados a questão de classe (por exemplo, a Segunda Internacional). A segunda fase rompe com o epifenomenalismo ao dotar os níveis político e ideológico de efetividade própria, mas permanece economicista ao remontar as origens das práticas políticas e ideológicas a sujeitos de classe intencionais, cujas ações são determinadas pela evolução de uma consciência de classe apropriada à sua posição econômica (por exemplo, Korsch e Lukács). A terceira fase rompe com essa visão reducionista de classe a priori, do sujeito originário e trata a prática ideológica como um processo que constitui sujeitos que não são nem pré-estabelecidos no nível das relações econômicas nem, uma vez constituídos nas ideologias e por meio delas, necessariamente dotados de um pertencimento classe (por exemplo, Gramsci e Togliatti).
Nesse contexto, Mouffe discerne nos estudos prisionais de Gramsci um relato anti-epifenomenalista e uma perspectiva da ideologia contra o reducionismo de classe – reconhecida apenas em estado prático, não estando totalmente teorizada – por quatro razões. Primeiro, ela argumenta que Gramsci rejeita a visão de que todas as forças políticas são essencialmente sujeitos de classe e sugere que as forças políticas sejam constituídas como vontades coletivas entre classes (ou, melhor, ‘policlassistas’) na e através da luta ideológica.
Segundo, Gramsci rejeita a visão de que existem ideologias de classe puras correspondendo de maneira paradigmática a diferentes classes e argumenta que existe um universo pluralista de elementos ideológicos que diferentes classes podem articular seletivamente de diferentes maneiras para produzir suas próprias ideologias de classe. Isso implica que as ideologias são transformadas através de uma reformulação dos elementos ideológicos existentes e não através do deslocamento total de uma ideologia de classe paradigmática por outra que é exclusiva e não ultrapassa os seus limites. Isso também significa que a hegemonia não é alcançada através da imposição de uma ideologia de classe paradigmática a outras classes para formar uma aliança de classes – mas envolve a articulação de elementos de diferentes discursos ideológicos em torno de um princípio hegemônico específico para criar um sistema ideológico relativamente unificado, mas sincrético.
Terceiro, ele insiste em que existem elementos ideológicos importantes que não têm conotações necessárias de classe e que pertencem ao campo do “nacional-popular”. Na verdade, Gramsci trata esses elementos ‘nacional-populares’ como o local por excelência da luta ideológica de classe: as duas classes fundamentais competem para articular esses elementos em seu próprio discurso de classe, para que esse se torne uma ‘religião popular’ ou expressão orgânica do interesse nacional com o consentimento ativo do povo. Os agentes dessa luta ideológica são os intelectuais e são mediados por um conjunto de aparelhos hegemônicos. Ao desenvolver essas perspectivas, Gramsci enfatiza que a liderança política e a mobilização da “vontade coletiva” estão crucialmente ligadas à “reforma intelectual e moral”.
Quarto, e finalmente, se não existem ideologias paradigmáticas de classe e, em vez disso, enfrentamos uma pluralidade de elementos ideológicos cuja conotação de classe (especialmente no caso de elementos ‘nacional-populares’) depende de sua inserção em um conjunto ideológico específico, como Gramsci consegue estabelecer o caráter de classe de diferentes sistemas ideológicos? Aqui Mouffe realiza uma leitura sintomática dos cadernos carcerários de Gramsci. Com base nisso, ela sugere que a unidade comum de uma visão de mundo classista é criada por meio de liderança política, intelectual e moral derivada de sua articulação em torno de um sistema de valores cuja realização depende do papel desempenhado pela classe fundamental no nível econômico. É este sistema de valores que constitui o “princípio hegemônico” que permeia a visão de mundo comum e confere a ela uma natureza de classe distinta.
Agora, enquanto Mouffe e Laclau prepararam o terreno para uma ruptura definitiva com o economicismo e o reducionismo de classe na análise das ideologias, ainda existem elementos residuais significativos do reducionismo de classe em seus estudos iniciais. Primeiro, embora eles admitam que não há conjuntos ideológicos paradigmáticos de classe e atribuam a pelo menos alguns desses elementos ideológicos um (necessário?) pertencimento ‘nacional-popular’ ou ‘popular-democrático’, não está claro se pelo menos alguns outros elementos ideológicos pertencem necessariamente a uma classe (sobretudo o princípio hegemônico) ou se as conotações de classe são invariavelmente contingentes à inserção de elementos neutros de classe em um conjunto cujo caráter de classe depende de seus efeitos em conjunturas específicas. Assim, Mouffe argumenta que os elementos ideológicos não têm pertencimento de classe necessário e que derivam seu caráter de classe de sua articulação com um princípio hegemônico (que é presumivelmente um elemento ideológico) sempre fornecido por uma classe fundamental. Da mesma forma, Laclau insiste que os elementos ideológicos tomados isoladamente não têm pertencimento de classe necessário, mas ele é igualmente enfático quanto ao fato de que o marxismo-leninismo é uma condição abstrata e necessária para o pleno desenvolvimento da hegemonia da classe trabalhadora. Segundo, embora reconheçam que existam elementos ideológicos ‘popular-democráticos’ ou ‘nacional-populares’ sui generis, eles negam que eles possam ser constituídos em conjuntos ideológicos puros não-de-classe e insistem que esses elementos são sempre sobredeterminados pela luta de classes. Nesse sentido, tanto Mouffe quanto Laclau privilegiam a região econômica como princípio explicativo da região ideológica: Mouffe se refere explicitamente ao papel da determinação econômica em última instância e Laclau considera que o antagonismo de classe entre as classes fundamentais está inscrito na natureza do modo de produção, enquanto os antagonismos “popular-democráticos” são tratados como contingentes à formação social como um todo compreendendo o campo da luta ideológica de classe por excelência.
Terceiro, embora Chantal Mouffe e Ernesto Laclau rejeitem a suposição de que todos os sujeitos políticos são sujeitos de classe na aparência e até na essência, eles ainda afirmam que apenas as duas classes fundamentais do modo de produção dominante podem ganhar a hegemonia. Isso seria menos preocupante se eles o interpretassem em termos dos efeitos das lutas ideológicas, e não em termos de agência de classes: mas o impulso básico de seus argumentos nesta fase é que é através da luta entre essas duas classes fundamentais para articular seus interesses com o “povo” que as ideologias são transformadas. Isso implica que pelo menos alguns assuntos políticos e ideológicos sejam redutíveis a assuntos de classe. Assim, embora Laclau admita que não há identidade necessária entre classes econômicas e grupos políticos e ideológicos empiricamente observáveis, ele deve atribuir um pertencimento de classe a pelo menos alguns deles, a fim de afirmar que os agentes de transformação ideológica são as classes fundamentais. Em última análise, isso reduz as forças democrático-populares a objetos subordinados às duas classes fundamentais, negando às forças democrático-populares qualquer autonomia ou eficácia de longo-prazo por fora da luta de classes. Em resumo, apesar dos importantes avanços que Laclau e Mouffe registraram em seus estudos iniciais de hegemonia, seu trabalho alterna desconfortavelmente entre noções anti-reducionistas e reducionistas de classe.
Nos estudos subsequentes, Laclau e Mouffe tentam superar esses problemas e agora estão desenvolvendo uma teoria geral da constituição discursiva da hegemonia. Eles argumentam que todas as relações sociais derivam seu caráter social de sua constituição discursiva: isto é, toda prática social se constitui como tal na medida em que produz significado. Essa abordagem tem implicações teóricas importantes para as relações entre “níveis” e para a análise da subjetividade social.
Primeiro, como o discursivo é considerado coextensivo com o campo social e todas as relações sociais são consideradas constituídas no e através do discurso, Laclau e Mouffe rejeitam os pontos de vista marxistas ortodoxos das relações de base- superestrutura nas quais a chamada base material é entendida como extra-discursiva e a superestrutura sozinha é tratada como discursiva. Assim, mesmo que se deseje manter a metáfora de ‘base’ e ‘superestrutura’ ou a imagem topográfica de ‘regiões’, suas inter-relações devem ser consideradas em termos da articulação de práticas discursivas. Por sua vez, isso implica que a unidade de uma formação social depende da articulação contingente entre essas práticas discursivas, em vez de derivar de uma correspondência necessária entre base e superestrutura. Nesse sentido, Laclau e Mouffe reinterpretam a noção de “bloco histórico” de Gramsci nos temos da teoria do discurso.
Segundo, essa abordagem implica que os sujeitos através dos quais as relações sociais são mediadas e reproduzidas também são constituídos no e através do discurso. Já não se pode privilegiar os súditos de classe sobre as forças democrático-populares, nem tratar a luta de classes como necessariamente mais influente que as lutas democrático-populares. O antagonismo de classe não está inscrito nas relações de produção consideradas como uma estrutura extra-discursiva, mas deriva, em vez disso, da identificação discursiva específica (ou “interpelação”) de sujeitos de classe. Isso sugere que a luta de classes é, antes de tudo, uma luta pela constituição dos sujeitos de classe antes de ser uma luta entre os sujeitos de classe. Daqui resulta que o campo da intervenção política é extremamente amplo. Pois a luta de classes não se limita mais à articulação de classes pré-existentes às forças democrático-populares ou nacionais-populares, mas se estende para incluir a própria constituição das forças de classe.
O que isso significa para a análise da hegemonia? A luta pela hegemonia é reinterpretada em termos de intervenção para articular diferentes elementos discursivos em conjuntos ideológicos mais ou menos distintos que atendem aos interesses de uma classe fundamental. Os elementos podem ser articulados para formar discursos (sic) diferentes, porque possuem núcleos de significado comuns que não são totalmente determinados na denotação e podem ser ligados conotativamente a outros elementos para produzir significados específicos que se revelam em diferentes conjuntos discursivos. Assim, ideias como ‘povo’, ‘maternidade’, ‘competição’, ‘igualdade’ e ‘cidadania’ adquirem conotações diferentes de acordo com sua articulação com outros elementos para formar um discurso específico. Isso significa que uma luta ideológica bem-sucedida deve adotar o modo de ‘interrupção’ em vez de ‘interpretação’. Pois, enquanto a interpretação atribui a diferentes elementos um pertencimento necessário a um conjunto ideológico fechado e, portanto, exclui a possibilidade de um debate significativo entre discursos mutuamente opostos e antagônicos, a interrupção envolve uma abordagem “inter-discursiva” que tenta absorver ou apropriar elementos do discurso do interlocutor, um processo aberto de persuasão e debate sobre o terreno do núcleo comum de significados.
É impossível dar um modelo único dessas práticas inter-discursivas fora de conjunturas específicas, mas Laclau e Mouffe se referem a dois modos básicos de articulação hegemônica. No caso de um discurso da diferença, a hegemonia depende da neutralização de antagonismos ideologicamente constituídos, através de sua reinterpretação como diferenças dentro de uma vontade coletiva nacional-popular (por exemplo, quando antagonismos de classe supostamente inscritos nas relações de produção são transformados em diferenças de soma positiva entre agentes econômicos que desempenham funções complementares na divisão do trabalho). Isso envolve a localização de diferenças que devem ser negociadas e comprometidas dentro de uma ampla estrutura consensual estabelecida por meio do discurso dominante sobre os parâmetros da vontade coletiva ‘nacional-popular’. Exemplos desse discurso de diferença incluem o discurso “Uma nação” de Disraeli e a política “transformadora” de Giolitti. Uma forma alternativa de discurso hegemônico envolve a constituição de um sistema de equivalências entre diferentes posições e sujeitos em (a) uma polaridade comum que é justaposta em um dualismo irredutível a outro polo e definida como superior a ele ou (b) um antagonismo comum a um inimigo interno e / ou externo que deve ser derrotado como uma condição de avanço de cada posição ou sujeito em particular. Isso envolve a polarização das diferentes posições ou sujeitos constituídos no e através do discurso e a interpelação dos dois polos como contrários e desiguais ou como contraditórios e antagônicos. Exemplos de tal discurso de equivalência incluem os discursos irredutivelmente dualistas do apartheid ou do patriarcado e os discursos populistas rupturais do cartismo na Inglaterra, do jacobinismo na França, do fascismo na Itália e do maoísmo na China.
Ambos os modos de discurso contêm perigos para a classe dominante. Assim, embora um discurso da diferença transforme contradições carregadas negativamente em contrariedades positivamente diferenciadas e crie as condições ideológicas necessárias para a integração de diferentes subjetividades em um sistema político democrático, a classe dominante pode ir longe demais ao absorver e legitimar as demandas daqueles que estão em posições subordinadas, fazendo com que as classes dominadas possam conseguir impor seu discurso dentro do aparato estatal durante crises que minem as capacidades neutralizadoras da classe dominante. Isso pode ser visto na apropriação do discurso democrático pelo discurso socialista, pois o capital monopolista encontra cada vez mais dificuldades para manter as tradições e instituições democráticas liberais. Da mesma forma, embora a classe dominante possa assimilar o ‘povo’ em um discurso de equivalência em seu próprio projeto hegemônico (particularmente durante períodos de crise), corre-se o risco de que as forças populistas desenvolvam os elementos anti-status-quo e anticapitalistas do discurso populista ao ponto de uma ruptura radical com os interesses da classe dominante. Isso pode ser visto nas ameaças colocadas pela esquerda nazista sobre tradições socialistas e na esquerda fascista italiana sobre tradições mazzinianas, garibaldianas e sindicalistas. Além disso, enquanto as tendências básicas do discurso da diferença são integrativas, na medida em que desarticula a organização das várias posicionalidades subordinadas em um único ‘povo’ interpelado como o polo dinâmico de confronto com o bloco de poder, o discurso da equivalência ‘virou-se’ mais rapidamente para objetivos radicais e rupturais através da articulação do ‘povo’ a um projeto revolucionário, e não a um populismo de direita.
Embora esses argumentos ainda estejam em processo de desenvolvimento, suas principais implicações são claras. Primeiro, uma abordagem teórico-discursiva não envolve apenas uma rejeição das formas mais ou menos complexas de economicismo vinculadas à análise teórica do Estado capitalista, mas também uma rejeição do privilégio apriorístico das classes como forças sociais já dadas e constituídas, tal como se encontra nas teorias de análise de classe. Em vez dessas posições, encontramos a insistência de que a própria região econômica é constituída discursivamente, que a unidade social deriva da articulação entre diferentes práticas discursivas, e não de alguma correspondência logicamente necessária entre uma base extra-discursiva e uma superestrutura discursiva, e que a classe, assim como as forças sociais não classistas, são constituídas no discurso e através do discurso, em vez de serem inscritas em sistemas extra-discursivos de relações sociais funcionando como seu Träger ou suporte subjetivo. Segundo, se todos os vários “níveis” ou “regiões” de uma formação social são constituídos no e através do discurso e são passíveis de transformação por meio de forças que também são assim constituídas, devemos substituir a noção de primazia causal da economia, mantida por tanto tempo entre os marxistas, por uma ‘primazia do político’ ou, melhor, uma ‘primazia do discursivo’. Isso significa que a economia é tanto um campo de luta quanto as regiões políticas e ideológicas e que suas chamadas ‘leis do movimento’ não são governadas por uma lógica de capital extra-discursiva ‘(ou equivalente em outros modos de produção). Em vez disso, o movimento da economia deve ser explicado em termos da articulação hegemônica existente em uma dada sociedade. Terceiro, como qualquer sociedade é caracterizada por uma vasta pluralidade de sujeitos e não há razão para privilegiar os sujeitos de classe, a hegemonia deve ser vista em termos da articulação discursiva de diferentes sujeitos. Assim, a conquista do papel de “liderança política, intelectual e moral” pela classe dominante ou pela classe trabalhadora vai depender de suas respectivas habilidades para desenvolver um projeto político reconhecido por outro sujeito como essencial para a realização de seus próprios interesses, desenvolvendo uma ‘ideologia orgânica’ que possa servir como um quadro de referência ideológico compartilhado no qual uma pluralidade de sujeitos possam redefinir e negociar alianças para fazer avançar aquele projeto. A centralidade de uma classe fundamental (burguesa ou proletária) num projeto hegemônico só pode ser o resultado de um esforço para interpelar e unificar essa classe em torno da luta pela ‘liderança política, intelectual e moral’: não há garantias teóricas ou necessidades extra- discursivas de que uma classe fundamental ocupará inevitavelmente tal posição de liderança, nem que outros sujeitos aceitem tal liderança. Por fim, como a hegemonia é alcançada através da articulação discursiva de diferentes sujeitos que são eles próprios constituídos no e pelo discurso, podemos interpretar a hegemonia como um ‘discurso dos discursos’ (para cunhar uma frase) focado na luta para articular sujeitos em torno de determinadas forças políticas em luta pela efetivação de projetos específicos.
Ao avaliar essa abordagem teórico-discursiva da hegemonia, precisamos primeiro esclarecer algumas ambiguidades profundas sobre o discurso. Laclau e Mouffe enfatizam que o discurso não é simplesmente o ‘texto’, não apenas ‘language’ e ‘parole’, não apenas elementos ideológicos: mas ‘o conjunto de fenômenos por meio dos quais a produção social de significado acontece’. Isso parece significar que o discurso é uma prática complexa enraizada na articulação complexa de condições extra-discursivas (como os meios de produção do discurso econômico) e os modos específicos de interpelação e cálculo (como a constituição do trabalhador formalmente livre) sob o domínio do discursivo, para que as condições extra-discursivas sejam efetivas somente através do discursivo, e no contexto de outros discursos que afetam sua condição de produção e recepção (tal qual o discurso jurídico como condição prévia da produção de mercadorias e discurso da moda como influência na comercialização de mercadorias). No entanto, embora haja um reconhecimento explícito de que o discurso envolve mais do que “texto”, é o “texto” que é colocado no centro do trabalho deles. Na prática há pouco reconhecimento de que condições extra-discursivas são eficazes não apenas através de sua mediação prévia através do discurso, mas também através de necessidades empíricas post hoc; nem que o discurso em seu sentido mais abrangente possa gerar efeitos estruturais indesejados ou propriedades emergentes que limitem os efeitos desse discurso. Assim, embora possamos desejar rejeitar o determinismo tecnológico como uma perspectiva teórica no discurso marxista, não podemos negar o papel das determinações técnicas nos campos econômico, político-militar ou ideológico. Da mesma forma, se desejamos compreender as ‘leis do movimento’ da economia capitalista ou a operação dos sistemas eleitorais nas democracias parlamentares, devemos ir além de uma análise de discursos econômicos ou políticos específicos para considerar sua interação e os efeitos que dela são derivados, os quais não podem ser inteligíveis no interior de qualquer um desses discursos. De fato, quando nos referimos aos efeitos das ‘forças de mercado’ ou à importância do ‘equilíbrio de forças político-militares’, nos referimos a propriedades emergentes de sistemas de interação que não são redutíveis a nenhum dos discursos que ajudam a constituir esses sistemas. Nesse contexto, é lamentável que a abordagem teórico-discursiva de Laclau e Mouffe deslize com muita facilidade de uma concepção geral do discurso como produção de significado social para um foco particular no discurso ideológico, excluindo aspectos econômicos, jurídicos, militares, administrativo e outros discursos, enfatizando, em seguida, o ‘discurso dos discursos’ envolvido na produção da própria hegemonia. Pois esse desvio os força a voltar ao ‘texto’ e parece reduzir a hegemonia a um efeito de vários mecanismos interpelativos considerados isolados de suas condições de produção ou recepção. Assim, embora não haja dúvida de que o sucesso da estratégia “Uma nação” de Disraeli ou do trasformismo de Giolitti dependesse em parte de um discurso da diferença, é lamentável que Laclau e Mouffe ignorem sua dependência adicional de formas específicas de representação política e intervenção do governo, formas específicas de organização política, graus específicos de manobra econômica, formas específicas de repressão política e assim por diante. Em resumo, se uma análise teórico-discursiva busca evitar a acusação de ‘logocentrismo’ ou ‘reducionismo textual’, ela deve considerar os momentos discursivos e extra-discursivos do discurso e fazê-lo não apenas em relação ao ‘discurso dos discursos’ (hegemonia), mas também em relação aos outros campos da prática discursiva.
Um segundo conjunto de problemas com essa abordagem diz respeito à distinção crucial entre ‘hegemonia política’ e ‘ideologia orgânica’. Não há dúvida de que a liderança política é conquistada ou perdida no contexto de ‘reforma intelectual e moral’. Mas há o risco de que a ‘hegemonia política’ e a ‘ideologia orgânica’ sejam conflitantes. Embora o desenvolvimento de um cimento ideológico apropriado esteja, por excelência, no campo da criação de significados compartilhados, senso “comum” etc., a liderança política trabalha com esses significados de várias maneiras para elaborar projetos particulares ou programas populares nacionais que requerem recursos específicos, iniciativas políticas, formas de mobilização, etc. Não se pode reduzir o fascismo ou o nazismo a projetos hegemônicos do papel do ‘corporativismo’ e da ‘raça’ como princípios hegemônicos: eles também envolveram programas bastante específicos de ação política projetados para promover objetivos específicos de classe e ‘nacional-populares’. Além da “reforma intelectual e moral”, era necessário que os movimentos fascistas reorganizassem o aparato estatal italiano e alemão como uma pré-condição para a implementação de seus projetos de regeneração nacional.
Nesse contexto, a noção de ‘determinação estrutural’ da hegemonia implícita no trabalho de Poulantzas é útil, pois aponta para as restrições estruturais na capacidade de uma classe conquistar uma posição de hegemonia. Além disso, dadas as dificuldades em identificar o caráter de classe do princípio hegemônico que unifica uma ‘ideologia orgânica’, parece particularmente proveitoso tentar decifrar essa questão no nível de um projeto político específico. Assim, na medida em que um projeto hegemônico específico condiciona o avanço das demandas de sujeitos aliados ou subordinados à realização dos interesses de longo prazo de uma classe fundamental, é razoável atribuir a esse projeto um caráter de classe específico. Mesmo essa solução envolve uma certa ambiguidade. Pois a hegemonia poderia ser vista em termos de liderança política no terreno da posição de classe sem referência aos efeitos do projeto hegemônico ou poderia ser estendida para incluir a exigência de que o projeto hegemônico realmente promova os interesses de longo prazo da classe hegemônica (fração). No primeiro sentido, parece não haver boas razões para negar a possibilidade de projetos hegemônicos populistas nos quais a liderança política é exercida por uma classe não fundamental ou por uma força não classista (por exemplo, jacobinismo); neste último sentido, esse projeto é inconcebível, exceto como um fenômeno meramente transitório e, de fato, muitos projetos com um caráter aparentemente claro de “classe fundamental” em termos de liderança falharam em promover os interesses de longo prazo dessa classe. De qualquer forma, podemos certamente concordar que a natureza de classe de um projeto hegemônico não depende das origens de classe de seus intelectuais orgânicos nem do pertencimento de seus elementos a qualquer classe a priori. Além disso, se quisermos decifrar as complexidades e contradições envolvidas em projetos hegemônicos como o imperialismo social liberal, o “Estado de bem-estar social keynesiano”, o fascismo ou o thatcherismo, devemos considerar não apenas as questões de liderança, mas também os efeitos de cada projeto.
Finalmente, uma abordagem teórico-discursiva nesse sentido levanta várias questões relativas à natureza e aos limites da hegemonia. Embora Laclau e Mouffe observem que existem condições específicas de produção e recepção de práticas discursivas, não há tentativa de teorizar essas condições além da afirmação de que elas devem ser consideradas como outros discursos. As condições de recepção são quase totalmente ignoradas. No entanto, como o próprio Gramsci teve o cuidado de observar, existe um mundo de diferenças entre ideologias historicamente orgânicas e ideologias arbitrárias, racionalistas ou “vontades”. Além disso, por mais plausível que um determinado projeto hegemônico possa parecer em termos de sua pretensão de articular sujeitos e demandas de classe com demandas não classistas, ele se tornará apenas ‘diretivo’ na medida em que forças estrategicamente significativas o apoiem e fontes prováveis de resistência sejam neutralizadas. Um modo “interruptivo” de intervenção discursiva em um espaço ideológico constituído “interdiscursivamente” pode muito bem ser uma condição necessária para a desconstrução e re-articulação bem-sucedida de projetos hegemônicos, no entanto, está longe de ser uma condição suficiente. Ainda precisamos explorar as condições sociais que determinam a “abertura” de sujeitos a projetos específicos e / ou os tornam estruturalmente “disponíveis” para mobilização. Além disso, embora essas condições possam ter um momento discursivo, elas também terão um momento extra-discursivo (por exemplo, a maneira pela qual a solidariedade da classe trabalhadora é sustentada não apenas discursivamente, mas também através da organização espacial das comunidades da classe trabalhadora). Também devemos observar como os projetos hegemônicos são tipicamente promovidos por meio de uma combinação de meios que inclui não apenas persuasão e compulsão moral, mas também incentivos materiais e repressão corporal. Isso implica que devemos considerar discursos de repressão e resistência à repressão e discursos de concessões materiais e disposição para fazer sacrifícios materiais, bem como discursos que dependem de debates racionais e democráticos entre os intelectuais orgânicos de projetos concorrentes. A esse respeito, Laclau e Mouffe tendem a ignorar o fato de Gramsci encarar o poder estatal como ‘hegemonia blindada pela coerção’, observando, também, como as capacidades hegemônicas dependiam do fluxo de concessões materiais. Essa negligência significa que seu novo relato de hegemonia deve ser julgado parcial e incompleto.
CRÍTICA METODOLÓGICA AO NEO-GRAMSCIANISMO
Os estudos neo-Gramscianos que foram considerados acima aderem intimamente ao método da articulação. Isso fica evidente não apenas na total rejeição da subsunção e da derivação lógica como métodos apropriados de construção de teorias por parte de Nicos Poulantzas, mas também no argumento de Laclau e Mouffe de que a articulação é o princípio organizacional das relações sociais como um todo e não do discurso ideológico considerado sozinho. Por sua vez, isso reflete a formalização estruturalista althusseriana das visões de Lenin sobre a conjuntura “sobredeterminada”, bem como as próprias tentativas de Gramsci de romper com a noção economicista de correspondência necessária e substituí-la pelo conceito de um “bloco histórico” contingente e socialmente constituído. Claramente, se rejeitarmos a abordagem economicista com sua redução da formação social a um sistema de base-superestrutura e também rejeitarmos a doutrina subjetivista de que as formações sociais são produto de agentes dotados de razão, autonomia e livre arbítrio, torna-se necessário desenvolver um relato alternativo da relativa unidade e coesão das formações sociais (o chamado “efeito sociedade”) sugerindo uma abordagem alternativa para a análise da subjetividade social e o papel da ação social na reprodução social. A esse respeito, Laclau e Mouffe parecem ter avançado ainda mais do que o último Poulantzas. Pois, embora Poulantzas atribuísse a relativa unidade e coesão de uma formação social às atividades do Estado como veículo de liderança da classe hegemônica, ele não forneceu um relato adequado da subjetividade social e recaiu em uma posição tipicamente reducionista de classe. Em contraste, Laclau e Mouffe lidam com ambas as questões em termos ‘teórico-discursivos’ – os sujeitos são interpelados em e através do discurso e as formações sociais são unificadas na medida em que exista um ‘discurso dos discursos’ hegemônico capaz de mobilizar e ‘direcionar’ as energias de sujeitos diversos para formar uma ‘vontade coletiva’.
Esses teóricos não estão sozinhos na oposição a relatos reducionistas da política e da ideologia e será útil contrastar sua abordagem com a solução alternativa proposta por Barry Hindess e Paul Hirst. Eles desenvolveram uma crítica sustentada e provocativa da concepção marxista recorrente do todo estruturado, dotado de prioridade causal sobre seus elementos, de modo que exista uma correspondência necessária entre esses elementos – no sentido de que cada um assegura as condições de existência dos outros e assim, da autorreprodução do todo. Embora exista espaço nessa abordagem específica para a ‘autonomia relativa’ e a ‘efetividade recíproca’ de diferentes elementos dentro do todo, ela marca um grande avanço teórico sobre o reducionismo simples, com sua base completamente autônoma e epifenômenos ineficazes. Essa concepção, no entanto, não impõe apenas uma unidade espúria a esses elementos, mas também estabelece limites arbitrários à sua articulação através de seu compromisso primordial com a primazia causal da autorreprodução do todo complexo. Em particular, Hindess e Hirst argumentam que, embora se possa especificar legitimamente as condições de existência de um determinado objeto teórico (por exemplo, relações capitalistas de produção), é bastante ilegítimo concluir que essas condições são necessariamente e automaticamente realizadas. Pois tal conclusão negaria, na prática, que os meios para sua realização tenham uma medida real de autonomia na reprodução social, implicando que qualquer variação desses meios (instituições, práticas) e seu impacto fossem heteronomamente determinados pelo requisito de que certas condições da existência sejam cumpridas. Essa crítica é aplicada não apenas às relações entre as várias regiões de uma formação social, mas também ao vínculo entre localização de classe e comportamento político. A este respeito, sustenta-se que não há correspondência necessária entre as classes como conjuntos de agentes econômicos e as forças presentes no cenário político. Hindess e Hirst argumentam que as classes como tais nunca estão presentes como forças políticas, que os interesses de classe não são objetivamente predeterminados por meio de relações abstratas de produção, mas dependem de formas particulares de cálculo orientados à conjuntura cuja natureza é determinada, pelo menos em parte, para além da região econômica, sendo que a relação entre forças políticas e a realização de interesses de classe não pode ser interpretada como uma representação direta, mas mediada por formas de representação que varia de acordo com o modo de cálculo político, por fim, muitas forças políticas estão preocupadas apenas tangencialmente com questões de classe e estão enraizadas em relações que não são de classe, como gênero ou raça. Em resumo, encontramos aqui uma crítica sustentada ao economicismo e ao reducionismo de classe, bem como uma defesa espirituosa de um relato aberto e complexo da natureza das formações sociais e de suas múltiplas determinações.
Além disso, Hindess e Hirst não apenas rejeitam a visão de que existe uma unidade necessária para uma formação social e, portanto, uma correspondência necessária entre suas diferentes regiões ou níveis, como também enfatizam que não pode haver um ponto de referência privilegiado para todas as práticas, não podendo haver um princípio único de explicação ou modelo causal para todos os eventos. Em vez disso, insistem na heterogeneidade das relações sociais, na multiplicidade de pontos de referência e em seu caráter discursivo, e não extra-discursivo, assim como na variabilidade das relações causais e dos princípios de explicação.
Isso sustenta a alegação de que não se pode substituir a tese de uma ‘não-correspondência necessária’ pela de uma ‘correspondência necessária’. Pois ambas as teses pressupõem que a formação social compreende várias instâncias unificadas em uma totalidade. Eles rejeitam a noção de totalidade e os problemas decorrentes das relações entre as regiões econômica, política e ideológica nos termos de uma hierarquia necessária de determinações (incluindo a determinação em última instância pelo econômico), autonomias relativas, efetividades recíprocas e assim por diante. Em suma, em vez de manter a ideia de que existem regiões unitárias distintas negando a correspondência necessária em favor de sua independência mútua, Hindess e Hirst rejeitam a suposição inicial de regiões unitárias distintas e, a fortiori, a visão de que elas poderiam estar envolvidas em uma relação de ‘não correspondência necessária’. Eles argumentam que toda conversa sobre relações de correspondência ou não correspondência é inaceitável porque não existem entidades unitárias entre as quais tais relações possam ser obtidas. Em vez disso, propõem-se a investigar as condições de existência de práticas e instituições específicas sem nenhum compromisso com uma perspectiva totalizante ou qualquer julgamento a priori ou hipóstase sobre as conexões causais entre essas condições e o objeto de investigação. Tal abordagem exclui claramente todo o recurso aos métodos de subsunção ou derivação lógica e aponta para a necessidade de uma análise da articulação contingente entre objetos teóricos discursivamente constituídos.
Infelizmente, enquanto Hindess e Hirst se envolvem nas críticas mais rigorosas e intransigentes, fica muito menos claro como eles analisariam as relações entre os diferentes elementos de uma formação social. Eles mesmos fornecem apenas uma lista serial desses elementos e argumentam que esses elementos não se combinam para produzir um ‘efeito de sociedade’, ou seja, não funcionam como uma unidade social definida ou relativamente coerente ou como um todo. Em particular, embora alguém possa apoiar a rejeição do princípio da determinação econômica em última instância e / ou da ideia de funcionalismo holístico que confere prioridade causal ao todo sobre suas partes, não está claro como a distinção entre ‘condições de existência ‘e’ formas ‘através das quais essas condições particulares podem ou como não podem ser garantidas, devem funcionar em seu método de investigação teórica.
Assim, Hindess e Hirst rejeitam o método racionalista com suas tentativas de deduzir as formas específicas pelas quais as condições gerais de existência são protegidas das próprias relações de produção (isto é, derivação) e são igualmente opostas ao método empirista em que tais formas são dadas empiricamente à teoria por circunstâncias particulares que estão além do domínio da determinação teórica, considerando que as condições de existência podem ser assim determinadas (isto é, subsunção). Mas isso ainda deixa em aberto o problema de como se pode conectar uma especificação teórica abstrata de alto nível das condições de existência a um dado empírico concreto de baixo nível sobre a ampla variação nas formas pelas quais essas condições são realizadas. Vamos considerar como Hindess e Hirst lidam com esse problema.
Parece que eles desejam identificar um objeto teórico específico em termos de um discurso teórico específico (em vez de se afastar de um ‘concreto real’ constituído extra-discursivamente e pré-dado considerado como um todo), para estabelecer pelo menos alguns de suas condições de existência (presumivelmente isso é realizado através do método de retrodução hipotética em vez de um processo de dedução hipostatizante); e, em seguida, examinar empiricamente como essas condições são garantidas (se é que existem) em determinadas conjunturas (o que exige respeito a efetividade diferencial de formas particulares para evitar o custo da subsunção). Ao adotar esse procedimento, Hindess e Hirst negligenciam dois aspectos importantes do método de articulação. Primeiro, eles não conseguem distinguir diferentes níveis de abstração no discurso teórico. Isso significa que eles encontram dificuldades espúrias em fechar a lacuna entre condições abstratas de existência e variação empírica nas formas pelas quais essas condições são garantidas. Em vez disso, poderíamos tentar estabelecer uma hierarquia de condições de existência correspondente à hierarquia de níveis de abstração na qual o objeto teórico pode ser especificado: quanto mais concreta for a especificação do objeto investigado, mais determinantes serão as formas pelas quais ele pode ser realidade. Esse método está implícito no relato de Poulantzas sobre as formas de Estado correspondentes às sociedades divididas em classes, sociedades capitalistas, sociedades capitalistas monopolistas e assim por diante. Em segundo lugar, Hindess e Hirst negligenciam a condicionalidade das ‘condições de existência’ e, portanto, enfatizam excessivamente sua independência da instituição ou prática cuja existência elas ajudam a garantir. Mas não há uma boa razão a priori para supor que as condições de existência economicamente relevantes e as instituições e práticas condicionadas pela economia devem ser categorias mutuamente exclusivas. De fato, se examinarmos a lista de Barry Hindess e Paul Hirst das condições de existência das relações de produção capitalistas, descobrimos que ela inclui uma forma determinada de sistema jurídico e formas específicas de Estado e política. No entanto, a reprodução da lei, do Estado e da política presumivelmente tem entre suas condições de existência formas específicas de receitas articuladas com as relações capitalistas de produção (por exemplo, as análises do ‘Estado tributário’ desenvolvido no debate sobre derivação de formas). Deveria ficar claro que esse argumento não precisa reintroduzir a tese da determinação econômica em última instância, mas levanta a questão da determinação econômica de maneira pertinente. É nesses termos que podemos introduzir a questão da articulação de elementos heterogêneos para constituir uma formação social relativamente unificada, capaz de se reproduzir, os limites de covariância envolvidos no pressuposto mútuo e / ou co-determinação desses elementos e a importância relativa de vários elementos na determinação geral da coesão social. Essa abordagem não precisa envolver nenhuma rejeição do compromisso de Hindess e Hirst com a heterogeneidade das relações sociais, a multiplicidade de pontos de referência teoricamente possíveis para estabelecer condições de existência e a variabilidade das relações causais. De fato, parece oferecer uma descrição mais completa do que envolver realmente o método de articulação.
Após esse desvio teórico, podemos agora voltar aos métodos empregados nos trabalhos revisados acima. É claro que em seus estudos anteriores, Poulantzas às vezes adotou a posição reducionista criticada por Hindess e Hirst. Ao discutir a reprodução social, por exemplo, ele tendia a tratar o Estado como um fator de coesão cuja efetividade e autonomia relativa estavam inscritas na estrutura global do MPC; e ele também via as forças políticas como representações na cena política das classes inscritas na matriz mesma do MPC. Em seus estudos posteriores, no entanto, Poulantzas modificou essa abordagem. Ele veio a rejeitar o estruturalismo da Escola Althusseriana e começou a tratar o Estado como um conjunto institucional complexo e não unitário, cujo papel na reprodução social dependia do equilíbrio de forças. Além de seu argumento de longa data de que a região econômica é fracionada, sujeita ao “efeito de isolamento” e sua ênfase igualmente de longa data na heterogeneidade dos elementos ideológicos, bem como na natureza socialmente construída das ideologias de classe, Poulantzas adotou gradualmente a visão de que não havia unidade necessária para o aparato estatal e que a unidade emergida era resultado de práticas de classe específicas. Assim, ele chegou a uma “teoria relacional” na qual o poder de Estado é examinado parcialmente como forma determinada de uma condensação da relação entre as forças políticas. Além disso, em contraste com a negação implícita de Hindess e Hirst de que se poderia investigar as condições de existência e as formas em que elas estão protegidas em diferentes níveis de abstração, Poulantzas abordou explicitamente essa investigação em vários níveis. Assim, quanto maior o grau de abstração, maior o peso que ele atribuiu à determinação através da forma; e, quanto maior o grau de concretização, maior a ênfase em forças sociais específicas. Além disso, enquanto a maioria das contribuições para o debate sobre derivação de formas era ignorante ou alheio à distinção entre níveis e planos de abstração, Poulantzas inicialmente se esforçou ao enfatizar as características sui generis da região política, abrindo contra si acusações de politicismo. Nos estudos subsequentes, ele teve mais cuidado ao considerar a articulação complexa de determinações econômicas, políticas e ideológicas oferecendo explicações conjunturais específicas dos vários fenômenos que ele investigou. Esse desenvolvimento culminou no reconhecimento tardio de Poulantzas de que a estratégia socialista exigia a articulação da luta de classes com movimentos sociais sui generis enraizados em relações não classistas. Mas mesmo seus primeiros estudos enfatizaram o papel teórico crucial da dupla articulação de níveis e planos de abstração, a fim de fornecer um relato completo dos fenômenos ‘reais-concretos’ e apresentá-los como a ‘síntese complexa de múltiplas determinações’. Sob certos aspectos, Laclau e Mouffe aderem mais estreitamente do que Poulantzas à abordagem defendida por Hindess e Hirst. Enquanto Poulantzas se deparou com a teoria do discurso apenas em seu trabalho mais recente, parecendo ter sido seriamente influenciado apenas por Foucault; todos os outros estão envolvidos com a teoria do discurso há algum tempo e ela exerce uma forte influência sobre todos eles. Além disso, todos os quatro teóricos são veementes em sua oposição não apenas ao economicismo, mas também ao reducionismo de classe e seus trabalhos só podem ser totalmente apreciados nesse contexto. Apesar dessas afinidades teóricas, Laclau e Mouffe rejeitam um princípio apoiado por Hindess e Hirst. Pois, se o último par às vezes deu a impressão de que deseja opor o princípio reducionista da ‘correspondência necessária’ ao princípio antirreducionista da ‘não correspondência necessária’ (embora, como vimos acima, eles rejeitem os dois princípios), o antigo par de autores critica o princípio da ‘não correspondência necessária’, com o argumento de que exclui qualquer possibilidade teórica de estudar a unidade relativa de uma formação social. A solução deles para esse problema de ‘correspondência não necessária’ (para cunhar uma frase) é argumentar que ela deriva de formas específicas de articulação discursiva – que se resumem ao conceito de hegemonia. Desde que se leia essa noção de ‘correspondência contingente’ de maneira não totalizante, isto é, aplicando-se a elementos especificados de uma formação social e não a todo o sistema, os autores parecem oferecer uma resposta apropriada à questão oculta da ordem social. Nesse sentido, o conceito de ‘articulação’ na teoria do discurso fornece um paradigma valioso para a explicação das relações contingentes entre fenômenos localizados em diferentes planos de abstração. Resta ver se Laclau e Mouffe podem evitar os perigos do “reducionismo textual” no desenvolvimento dessa abordagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos a contribuição de Antonio Gramsci para uma teoria relacional anti-reducionista do Estado e do poder estatal e seu subsequente desenvolvimento em duas direções novas. Espera-se que os avanços teóricos substantivos alcançados pela escola (neo-) gramsciana tenham surgido no decorrer dessa discussão. Em resumo, os avanços mais importantes compreendem: a noção de ‘Estado integral’ considerado como ‘hegemonia blindada pela coerção’, ênfase nas bases sociais do poder de Estado na sociedade civil e na sociedade política, a noção antirreducionista de ‘bloco histórico’ como uma forma contingente e socialmente construída de correspondência entre as regiões econômica, política e ideológica de uma formação social e a ênfase antirreducionista na especificidade do ‘nacional-popular’ e ‘popular-democrático’ em oposição às demandas e lutas de classe. Poulantzas, além disso, tentou delinear a determinação estrutural da ‘hegemonia blindada pela coerção’ através de seu foco nas formas de Estado como um conjunto de relações sociais com uma efetividade definida no equilíbrio das forças sociais, elaborando também a distinção entre as formas ‘normal’ e excepcional de Estado. Por sua vez, Laclau e Mouffe estenderam o trabalho de Gramsci através de uma preocupação com os mecanismos discursivos através dos quais a hegemonia pode ser alcançada e, assim, forneceram uma defesa contra a acusação de que o instrumentário conceitual dos estudos neo-gramscianos compreende apenas um conjunto de buracos de pombo em que fatos diferentes podem ser atribuídos de maneira puramente ad hoc e empirista.
O desenvolvimento dessas contribuições não se deu, no entanto, sem custos teórico relevantes. Em particular, o foco (neo-) gramsciano nos aspectos da ‘liderança política, intelectual e moral’ tem sido associado a uma correspondente negligência das contradições e restrições de ordem econômicas. No caso de Poulantzas, isso resulta em uma tendência ao “politicismo”, na medida em que ele combina o conceito gramsciano de hegemonia com o conceito althusseriano da autonomia relativa do Estado. No caso de Laclau e Mouffe, isso resulta em uma tendência ao ‘logocentrismo’ ou ‘reducionismo textual’, na medida em que se concentram no momento discursivo por excelência, no estudo da hegemonia como um ‘discurso de discursos’ abrangente no campo da luta ideológica. No entanto, precisamente porque Poulantzas e Laclau e Mouffe adotaram o método de articulação (que, deve-se enfatizar, não é universalmente verdadeiro para a escola neo-gramsciana), é possível recuperar suas contribuições sem adotar, necessariamente, suas tendências “políticistas” ou “textual-reducionistas”. Algumas indicações de como isso pode ser alcançado serão apresentadas no capítulo final.