A verdadeira e a falsa ontologia na fenomenologia de Berger e Luckmann

Por Germano Rama Molardi 

A obra resenhada, Modernismo, pluralismo e crise de sentido é produto do trabalho conjunto de um austríaco e de um esloveno que se conhecem a partir do momento em que se mudam para os Estados Unidos, onde vão ser colegas no curso de pós-graduação da New School for Social Research, onde também foram professores. A parceria engendra a escrita de um livro importante para a sociologia do conhecimento, como é o caso de A construção social da realidade.

Os autores se separam, uma vez que Luckmann se muda para a Alemanha para ser professor na Universidade de Frankfurt, enquanto Berger permanece nos Estados Unidos como professor na Universidade de Boston, mas isso não os impede de escrever o livro Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. A edição utilizada como referência fora impressa pela Editora Vozes em 2012 e conta com um curto prefácio do professor doutor Werner Weidenfeld. Uma vez dividida em sete pequenos capítulos, a presente resenha se resguardará o direito de percorrer os trechos centrais de cada capítulo, apresentando (para o bem ou para o mal), a partir deles, as críticas necessárias.


Há espaço para a metafísica na fenomenologia de Berger e Luckmann?

Berger e Luckmann (2012) estão preocupados em apresentar, no primeiro capítulo, “pressupostos gerais e estruturas básicas da significância da vida humana” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p.14). Para isso, mobilizam desde já a definição de que o sentido se constitui na consciência humana como parte constitutiva de outros atributos típicos à espécie humana, como é o caso da corporeidade, da sociabilidade e da formação histórico-social das identidades. Ora, desde aqui estabelece-se um ponto nevrálgico da crítica ontológica que se pretende fazer: a formação do ser social enquanto ente que trabalha, enquanto sujeito de uma atividade laborativa atribuidora de sentido, portanto teleológica, contraria a concepção de que é a consciência que atribui sentidos em sua gênese. Os autores apresentam uma ponderação interessante do ponto de vista da crítica ontológica. Afirmam:

“A consciência tomada em si não é nada; deve haver sempre consciência de algo. Existe somente enquanto dirige sua atenção para um objeto, para um objetivo. Este objeto intencional é constituído pelas diversas realizações de síntese da consciência e aparece em sua estrutura geral se se trata de percepções, memórias ou imaginações” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 14-15).

Ao contrário, é a atividade prática do ser, no sentido de suprir necessidades imediatas, que é suprassumida pelo trabalho teleológico, mediato, típico ao ser social. É a partir do trabalho teleológico que o ser social funda-se como ente consciente e, portanto, a capacidade de ver-se como ser que existe a parte do meio em que se insere. Marx assim explica essa relação:

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, só por isso, ele é um ser genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisamente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é livre (MARX, 2010, p. 84-85).

Como supracitado, só temos consciência enquanto ser social e, portanto, enquanto ser que trabalha. Se assim o é, é com base na processualidade histórica do exercício do trabalho e das mais diversas realizações dessa atividade que se fundamentam, em última instância, as formas de percepção, de memória ou de imaginação acerca do mundo, ou seja, de consciência (MARX; ENGELS, 2007). Nas palavras de Marx, “não é a consciência que determina a vida, mas vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94) do ser social. Ou seja, é apenas na medida em que se nega a existência de uma história prévia à existência do ser social que a moral, a religião e as ideologias em geral conseguem estruturar a existência do pensamento de forma alheia ao exercício material que cria a consciência dos seres humanos. Seguimos.

Berger e Luckmann definem sentido como uma forma mais complexa de consciência, “uma relação entre as experiências” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 15). Os autores, entretanto, não situam historicamente de que maneira se dão essas relações. Pensando contemporaneamente, por exemplo, poderíamos nos questionar de que forma o modo de produção capitalista atinge dimensões globais, incide sobre uma totalidade cada vez mais extensa do globo terrestre. Os autores se utilizam do acervo social do conhecimento para explicar a “enredada fenomenologia das realizações múltiplas da consciência” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 16), ou seja, a forma como atribuímos sentido ao mundo objetivo externo – os autores, aqui, utilizam-se do exemplo das flores e suas espécies e do fato objetivo de relacionarmos elas às mais diversas relações sociais.

Dizem Berger e Luckmann (2012) que a externalização de determinada atividade constitui-se na relação entre a finalidade e seus meios e que está, por ser pré-existente como projeto, pode ser comparada com outras atividades e consigo própria nas suas correspondências e não-correspondências. Ora, aqui a análise parece-nos, novamente, parcialmente correta: isso porque a atribuição de sentidos por parte do ser social, fundamento constitutivo de processos históricos que dá origem ao que os autores chamam de acervo social do conhecimento (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 16) aparece ao leitor como fenômeno a-histórico.

[…] deve-se procurar na constituição subjetiva do sentido a origem de todo acervo social do conhecimento, do reservatório histórico do sentido, do qual se nutre a pessoa nascida numa determinada sociedade e numa época certa (BERGER; LUCKMANN, 2012, P. 18).

Num primeiro momento, pode parecer uma crítica infundada estabelecer que a apresentação do acervo social do conhecimento, para Berger e Luckmann, aparece como a-histórica. Entretanto, na medida em que se atribui à constituição subjetiva do sentido a origem desse acervo, ignora-se, mais uma vez, a constituição histórica do ser social como ente relativamente descolado de sua realidade imediata, ou seja, como ente que trabalha conscientemente. Se com o conceito de constituição subjetiva do sentido querem os autores se referir à produção de uma racionalidade objetiva, ou seja, da produção de uma ciência, essa não se dá apesar da realidade, sustentada apenas pela intepretação dos fenômenos, mas também com e pelos fenômenos em si mesmos. Aqui, adentramos na pergunta se existe espaço, na fenomenologia, para a metafísica. Nas palavras de Lukács (2012, p. 60),

[…] o universal não aparece na realidade existente em si de maneira imediata ou isolada, independentemente dos objetos e das relações singulares, sendo portanto necessário obtê-lo mediante a análise de tais objetos, relações etc. Isso, porém, de modo algum suprime o seu ser-em-si ontológico, mas apenas lhe confere características específicas. Não obstante, é dessas circunstâncias que surge a ilusão de que o universal nada mais é que um produto da consciência cognoscente, e não uma categoria objetiva da realidade existente em si.

A obra de Berger e Luckmann está repleta dessas pretensões ilusórias de admitir o universal acervo de conhecimento como produto de “extratos superiores de sentido”, ou atribuir essa dimensão universal da vida social ao fato de que diferentes pessoas reagem da mesma forma a desafios semelhantes, o que faz com que “elas esperem essa forma de reação umas das outras e que se obriguem reciprocamente até mesmo a lidar com esta situação típica  dessa maneira e não de outra” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 19). Existe metafísica nessa análise dos fenômenos sociais na medida em que não se explica, de fato, em momento algum, de onde partem as constituições subjetivas do sentido na obra, uma vez já demonstrada a tese de que a consciência não existe alheia ao confronto material do ser social com o seu meio, ou seja, anteriormente e alheia ao trabalho.

No decorrer da obra, os autores afirmam que as instituições de dominação e organização do trabalho e, sobretudo, “instituições que socializam o trato com forças incomuns” (idem) fazem valer seus interesses na produção social de sentidos. Apesar de sobreporem as segundas às primeiras, ambos autores não deixam claro a que se referem quando fazem referência à “socialização do trato com forças incomuns”, afirmam corretamente que tais atribuições não exercem domínio absoluto, premissa com a qual concordamos, ainda que parcialmente, uma vez que supõe que até a modernidade, acerca desse exercício de controle, houve o predomínio da monopolização.

Para os autores, os processos controlados por instituições, tratados como secundários em relação aos processos nos quais se envolvem os indivíduos, são responsáveis pela seleção ou apagamento de conhecimentos determinados (BERGER; LUCKMANN, 2012) e tais crivos dão origem ao “reservatório social do sentido”, cujas ramificações atribuem conhecimento mais gerais ou mais específicos. Com tais ramificações, Berger e Luckmann (2012) trabalham segundo a lógica das estruturas, chegando a afirmar que “as áreas de sentido são estratificadas em si” (2012, p. 21). Para ambos, é a partir dos fatos menos complexos do mundo social que se estruturam padrões de experiência, dos quais se desenvolvem esquemas de ação e, por fim, sistemas de valores (idem). Aqui, retorna-se à crítica anteriormente feita de que não há gênese – ao menos uma gênese não-metafísica – para a criação de, nas palavras dos autores, um “resultado geral”, o “cerne do entendimento comum”, de sentidos que ultrapassam os limites da vida individual dos sujeitos (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 22).

Entre o final do primeiro capítulo e o início do segundo, a Significância nas relações sociais, coincidência de sentido e as condições gerais para o surgimento da crise de sentido, Berger e Luckmann (2012) estão trabalhando com a questão da reprodutibilidade geracional dos sentidos. Entretanto, para isso, retomam os conceitos de “reservas sociais de sentido” e “acervo social de conhecimentos” sem, entretanto, explicar a gênese material de tais acervos, qual seria facilmente constatável não fosse a análise substancialmente metafísica. Entretanto, faz-se importante sublinhar, os autores constatam de maneira parcialmente correta o processo de formação da identidade dos indivíduos a partir do aprendizado de “seus modos de proceder como ações típicas à luz dos padrões historicamente dados de experiência e ação” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 26). Novamente, a processualidade histórica da formação das consciências é citada sem ser, de fato, considerada.

É com o debate acerca da crise intersubjetiva de sentido que os autores dão início acerca das diferenças entre comunidades de vida e comunidades de sentido. Dizem os autores acerca dessa contradição:

Para diferentes formas de comunidades de vida podem ser esperadas medidas diferentes ou típicas de coesão […]. Se os membros de certa comunidade de vida acham inquestionáveis as concordâncias de sentido que se esperam deles, mas não conseguem cumpri-las, então temos as condições do surgimento de uma crise de sentido (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 31).

Segundo os autores, portanto, quando existem não-correspondências entre aquilo que se espera dos sujeitos nas suas formas de agir e nas suas formas concretas de ação, ou seja, quando há problemas nas comunidades da vida que criam distintas comunidades de sentido não alinhadas à reprodutibilidade estável de determinada sociedade em determinado tempo histórico, é nos marcos dessa sociedade que as causas do problema devem ser procuradas (BERGER; LUCKMANN, 2012). O segundo capítulo, em sua brevidade, demonstra-se como uma espécie de ponte entre as reflexões iniciais e o que se pretende debater de mais central na obra.

Uma crise de sentido centrípeta?

Sobre os trechos finais desse capítulo, cabe serem feitos apontamentos acerca da diferença que se faz entre sociedades pré-modernas, cujas instituições religiosas e “quase” religiosas conduziam suas atribuições de sentido com a pretensão de atingir a totalidade social e sociedades modernas, às quais os autores atribuem a capacidade de, uma vez impossível a constituição de sentidos únicos para as mais diversas ordens de valores, engendrar diferentes ordens de valores para diferentes dimensões da vida social, que os autores nomeiam como pluralismo (BERGER; LUCKMANN, 2012). É somente nas sociedades modernas, para os autores, que o pluralismo atingiu “expressão plena”. Segundo Berger e Luckmann (2012),

[…] pode-se dizer com certeza que nos países altamente industrializados, isto é, onde a modernização progrediu mais e onde a forma moderna de pluralismo está plenamente desenvolvida, as ordens de valores e as reservas de sentido não são mais propriedade comum de todos os membros da sociedade. O indivíduo cresce num mundo em que não há mais valores comuns, que determinam o agir nas diferentes áreas da vida, nem uma realidade única, idêntica para todos (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 41).

Os autores não determinam quais países são esses a que se referem; também não explicam quais as circunstâncias permitiram o desenvolvimento da industrialização e seu consequente pluralismo. Apontam apenas, de maneira tipicamente fenomênica, que o avanço econômico dos países centrais do capitalismo permite avanços também em suas dinâmicas internas de ampliação da participação democrática. Mas não o fazem de uma perspectiva que abranja a totalidade e que demonstre que aos países de continentes como a América Latina, a África, a Ásia não couberam outras alternativas ante o colonialismo europeu, se não o de reproduzirem formas arcaicas de dominação política e econômica de acordo com os interesses dos países centrais, quando conveniente. Exemplos como esse figuram na história dos países latinos, para prendermo-nos aos mais próximos, em que os regimes autoritários da década de sessenta que asseguraram a manutenção da condição dependente foram amplamente financiados por países em Europa e América do Norte.

A isso, seguem-se definições apologéticas ao livre mercado das ideias, como as de que “quanto menos condicionamentos, obrigatórios para toda a sociedade, das interpretações compartilhadas da realidade houver, tanto mais poderão desenvolver-se diferentes comunidades de vida em comunidades quase autônomas de sentido” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 42). Volta-se às questões postas logo acima quando os autores afirmam, depois de justificarem historicamente a incapacidade de absolutização de valores supraordenados por parte das religiões, que existem formas societárias modernas em que, alcançados altos graus de bem-estar econômico, as comunidades de sentido não se veem ameaçadas por fatores externos e conseguem, a partir disso, forjar consensos de maneira pacífica (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 47). Entre tais sociedades, as quais os autores não nomeiam, por certo devem estar aquelas que figuram entre as economias dominantes do modo de produção capitalista. Eis o que os autores consideram como modernidade:

Modernidade significa um aumento quantitativo e qualitativo de pluralização. São conhecidas as causas estruturais desse fato: crescimento populacional e migração e, com isso, um aumento de cidades – pluralização no sentido físico e demográfico; economia de mercado e industrialização que misturam pessoas dos mais diferentes tipos e que as forçam a chegar a um entendimento mais ou menos pacífico; estado de direito e democracia que garantem institucionalmente este entendimento; os meios de comunicação de massa que exibem constantemente e com insistência uma pluralidade de modos de pensar e viver (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 51).

Eis, acima, as premissas para a existência do que os autores chamam de crise estrutural de sentido, já que “o pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de valores e da interpretação” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 52). Tais características acima descritas também se apresentam em países de economia dependente, ainda que tardiamente, algo que não foge aos olhos dos autores. Os autores incumbem-se a tarefa de demonstrar que o pluralismo moderno é causador dessa crise estrutural de sentido. Aqui, retomamos o subtítulo mais uma vez colocado em forma de questionamento como forma de problematizar o nível de preocupação consigo própria da sociedade europeia e sua sociologia, aqui nas figuras de Berger e Luckmann.

Há espaço para o relativismo na fenomenologia de Berger e Luckmann?

No capítulo em que tratam sobre a perda de autoevidência, os autores afirmam que não há afirmação sobre a realidade que possa ser definida como única. Dito isso, o texto reitera a dimensão contraditória dessa “realidade”, já que pôde ser sentida como libertação e peso, de maneira ambivalente. “O pluralismo dificulta grandemente o controle. […] é muito cansativo ter de levar sua própria vida sem poder “agarrar-se” a padrões de interpretação e normas de comportamento inquestionavelmente válidos” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 59). A moderna sociedade cria novas potencialidades a partir do pluralismo, afirmam os autores.

A economia de mercado e a democracia substituem a ideia de um destino rigorosamente determinado pela possibilidade da escolha. Aos autores, os fenômenos da sociedade moderna lhe parecem demasiadamente puros, como há de ser na metafísica: “o conhecimento inquestionavelmente seguro se dissolve em um conjunto de opiniões unidas de modo livre […]. Interpretações firmes da realidade se tornam hipóteses. Convicções se tornam questões de gosto. Preceitos se tornam sugestões” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 62). Ou, como diriam Marx e Engels, “tudo que era sólido e estável se desmancha no ar” (ENGELS; MARX, 2010, p. 43). A outra dupla, anteriormente aos autores da obra resenhada, entretanto, vão além: “[…] tudo o que era sagrado é profanado e os homens são finalmente obrigados a encarar sem ilusões a sua posição social e a suas relações com os outros homens” (idem). Havemos de considerar outro textos, no entanto, de Marx e Engels, em que trabalham as categorias de origem hegeliana, classe em si e classe para si.

O Manifesto Comunista é, antes de tudo, um panfleto político agitativo. Suas frases de efeito não dizem respeito à complexidade da obra marxiana, mas ao papel político que esse documento histórico visava cumprir à sua época. Isso se demonstra no fato de que boa parte da obra de Marx está dedicada aos desdobramentos da ideologia na vida da classe trabalhadora, aos quais Berger e Luckmann parecem virar de costas, propositadamente, e que faz toda diferença ao entendermos as razões pelas quais ainda não houve um processo de rompimento com a sociedade de classes de tipo capitalista, apesar de reafirmadas as consequências do modo de produção capitalista ao conjunto da sociedade global.

Negar isso parece parte constitutiva da obra de Berger e Luckmann, como aparece ao leitor nos trechos acima citados em que a realidade ser questionada enquanto dinâmica ontológica per se aparece aos autores sem críticas e, mais uma vez, a-historicamente. Por isso é que afirmam a América (referindo-se aos Estados Unidos) como “uma sociedade que pode ser considerada a pioneira do pluralismo moderno”, em que as crenças religiosas se apresentam como preferências inseridas também, por sua vez, em um mercado livre. O que dizer do islamismo, contra o qual a “América” conduz, ainda hoje, uma campanha de demonização, em que “a “alma” islâmica e oriental é rotulada como incapaz de aceitar o Estado leigo e moderno, que vingaria tão bem no mundo judeu-cristão” (LOSURDO, 2010, p. 227)? Há espaço, portanto, para o relativismo na obra de Berger e Luckmann, mas somente na medida em que não são questionadas as verdades da própria obra em análise, do conjunto de sentidos supraordenados do livre mercado e da democracia ou, por assim dizer, do “pluralismo moderno”. Assim, “a posição de monopólio que foi tirada das Igrejas pelo Estado democrático de direito é agora concedida pelo Estado democrático de bem-estar social a uma série de novas instituições de produção de sentido” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 71-72) que ou concorrem por seus produtos no mercado, ou disputam monopólio através do Estado, com ele ou a partir dele.

Ao que os autores definem como crise estrutural de sentido, atribuem como remédio as instituições intermediárias de sentido, de modo que a crise se torne não geral, mas latente (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 76), porque geram e sustentam sentido à vida dos indivíduos, de modo que saiam intocadas as instituições centrais que regem a manutenção do “caso normal”, como é o caso do Estado. Assim como feito sistematicamente durante toda a obra, a crise latente de sentido é posta sobre as costas do “pluralismo moderno”.

Os últimos dois capítulos servem como balanço geral do conjunto até então desenvolvido. Duas coisas nos saltam aos olhos: a crítica ao relativismo, que nos parece falsa, pelos motivos já citados acima, em que, em nome do pluralismo, o relativismo ganha espaço no questionamento aos sentidos supraordenados para, posteriormente, surgir como objeto de crítica na medida em que o indivíduo perde a credibilidade se desprendido de pelo menos alguma das múltiplas instituições intermediárias (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 82), o que ressalta, nessa fenomenologia também uma tônica funcionalista no que tange o tratado com as instituições.

Um segundo ponto é o grande pesado posto sobre as costas do pluralismo, dos regimes democráticos e de livre mercado, uma vez abstraídas algumas questões que nos parecem centrais para o entendimento da crise de sentido. Em primeiro lugar, os próprios autores admitem que certas “instituições” são funcionais à manutenção de determinada normalidade, na medida em que incidem na realidade para que não haja crises estruturais de sentido. Para não irem além do pluralismo como gênese desse problema, os autores transformam a ordem questionada nas fissuras como dada e, por mais que admitam a modernidade como expressão plena do pluralismo, admitem que as instituições não servem para outra coisa senão para o “apagamento” das brechas que questionam determinada ordem. Poderíamos, diante de tais condições, questionar que pluralismo assim se autodenomina, uma vez que não admite contradições internas.

Em vez disso, sustentado pela crítica ontológica feita no decorrer da obra, o autor dessa resenha quis sugerir, ensaisticamente, que explicar as crises de sentido da sociedade moderna como produto do pluralismo é insuficiente justamente na medida em que os autores entendem o processo de atribuição de sentido de maneira metafísica, como algo que é gerado pelas consciências e não pela atividade material dos seres humanos. Entende-se o decorrer da obra como consequência necessária da inexistência de uma ontologia não materialista, mas fenomenológica, que explica a crise de sentido com base na crítica aos supraordenamentos, mas age justamente assim quando se pretende aplicar a toda sociedade global explicando-se de maneira centrífuga, num exercício intelectual em que a Europa explica o mundo a partir da racionalização do livre mercado e da democracia liberal-burguesa e pouco ouve o que tem a dizer os “países do chamado Terceiro Mundo” (BERGER; LUCKMANN, 2012) que, pelo que se mede com a régua dos autores até a presente época, pouco puderam absorver do assim chamado “pluralismo moderno”.


Referencial bibliográfico

BERGER, P; LUCKMANN, T. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

LOSURDO, D. A linguagem do Império: léxico da ideologia estadunidense. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012

MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, K; ENGELS, F. Manifesto Comunista. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.


* Este texto foi publicado antes pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação da docente Melissa Pimenta.

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