Por Lewis Bassett, via Verso Books, traduzido por Gabriel Landi Fazzio
Os eventos recentes provam conclusivamente que as mídias sociais não são comunidades globais neutras como muitas vezes são consideradas – como, por exemplo, no caso do recente expurgo de perfis no Facebook, censurando as vozes críticas à política externa dos EUA. Neste artigo, Lewis Bassett argumenta que estamos começando a testemunhar a emergência de um capitalismo monopolista tecnológico, apoiador do imperialismo dos EUA. Como, diante disso, podemos construir uma nova mídia de esquerda?
O conteúdo de extrema-direita nas redes sociais supera regularmente o de esquerda. Durante os julgamentos e dramas de Tommy Robinson (o ativista britânico de extrema-direita que este ano esteve preso brevemente por desrespeito ao tribunal, depois de interferir em vários julgamentos de delitos sexuais), o fundador da Liga de Defesa Inglesa postou no Facebook conteúdos que superaram amplamente até mesmo Jeremy Corbyn. As cifras no YouTube são ainda mais preocupantes. Lá, o vídeo mais visto no canal oficial do Partido Trabalhista sobre o tema é trucidado pelo equivalente de Robinson, que tem mais de 1,6 milhão de visualizações a mais.
No entanto, os argumentos levantados contra as emissoras tradicionais por fornecer uma plataforma para as opiniões racistas de Robinson não vão a fundo o suficiente. Na verdade, negar-lhe voz na “mídia de massas” ajuda a reforçar a auto-narrativa da extrema-direita online, como se fossem defensoras da liberdade de expressão e opiniões (ainda que de senso comum) “politicamente incorretas”. Mas, com milhões de visualizações, as mídias sociais também são “de massas”. Como tal, devem ser confrontadas da mesma maneira.
Felizmente, talvez, escândalos de violação de privacidade e alegações de “interferência eleitoral” têm forçado os gigantescos monopólios da mídia, como o Facebook, a questionar sua abordagem laissez faire à regulamentação. Em julho, Zuckerberg recusou-se a retirar do Facebook o conteúdo que negava o Holocausto, levando o YouTube, o Twitter e o Spotify a passarem Zuck para trás, banindo Alex Jones, o teórico de conspiração de internet. Ainda sendo a empresa de mídia social mais popular do mundo, de longe, o Facebook gosta de pensar em si mesmo em termos de um ideal de internet, isso é, como uma rede horizontal ligando diretamente os pontos, em vez de uma editora hierárquica tradicional. Quando perguntado em abril se o Facebook era uma empresa de mídia, Zuck respondeu dizendo: “eu considero que seja uma empresa de tecnologia”. Assim como a palavra “plataforma”, a palavra “tecnologia” invoca a imagem da internet em uma condição de neutralidade passiva, um ideal reconhecido pela lei dos EUA.
Pressões econômicas e políticas estão forçando a recente mudança de ideias de Zuck. Em 11 de outubro, o Facebook anunciou que removeu mais de 800 páginas e contas consideradas inautênticas. “As pessoas precisam poder confiar nas conexões que fazem no Facebook”, anunciou uma atualização da redação. No entanto, o problema para a empresa é que a confiança está gravemente abalada. E por que não seria? Como ressalta a Wired, Zuck tem feito uma longa campanha de pedidos de desculpas e ainda assim os escândalos e os erros continuam aumentando.
O Facebook recusou pedidos de uma lista completa de quais contas e páginas foram excluídas. Uma investigação do Western Journal revelou 165 delas através de um acompanhamento combinado de 60 milhões de usuários (os métodos de pesquisa usados são falhos, mas os resultados ainda são interessantes). Se o monopólio midiático gostaria de construir confiança, por que não começar aqui? Talvez o Facebook possa esclarecer se o expurgo incluiu, por exemplo, vozes críticas à política externa americana e quais seriam os critérios exatos para essa proibição? Além disso, se o venenoso Alex Jones pode ser eliminado no YouTube, então por que Zuck não consegue fazer o mesmo por ele no Facebook, junto com Tommy Robinson?
Para um homem que gosta de se referir à sua invenção como uma comunidade global, Zuck exibe um histórico contraditório de centralização. Pior ainda, ele mostra uma disposição alarmante em executar os interesses dos poderosos estados ocidentais. Em 2017, o Intercept informou que o Facebook estava trabalhando com o governo israelense para moderar o conteúdo sobre a Palestina. Da mesma forma, em troca de acesso à Turquia, o Facebook policia regularmente conteúdo pró-curdos. Em agosto deste ano, o Facebook anunciou que “removeu páginas, grupos e contas que podem ser ligados a fontes que o governo dos EUA identificou anteriormente como serviços de inteligência militar russos”. E em maio confirmou uma parceria com o Conselho Atlântico, o think thank linha-dura da OTAN, à frente do qual se encontram militares da reserva dos EUA. De fato, quando agentes russos ou iranianos buscam fabricar opinião no Ocidente via Facebook isso é considerado “interferência”, mas nem sequer uma palavra é dita quando Israel faz o mesmo. Parece, então, que a histeria liberal sobre notícias falsas (composta por um lado por tecnofobia e por outro como reação ao deslocamento do centro da política ocidental) entregou a regulação da maior esfera pública do mundo nas mãos dos interesses hegemônicos dos estados ocidentais. A tão necessária reconfiguração do Facebook chegou pela porta dos fundos do Vale do Silício.
O que estamos começando a testemunhar é o crescimento do capitalismo monopolista tecnológico. Ao contrário de seu antecessor do pós-guerra, como Paul Mason deixa claro, o sangue vital dessa ordem monopolista não é o trabalho, mas os dados. Em nosso futuro que caminha na direção desses dados, aqueles que moldam os algoritmos têm o poder de influenciar tudo, desde nossa dieta de notícias até nosso acesso ao crédito. Na verdade, os estados poderiam usar um algoritmo para determinar se você cometeu um crime; algo que já aconteceu e que acabou sendo racista.
O problema do uso de big data [análise de grandes volumes de dados digitais] de modo centralizado e baseado no mercado não é apenas diretamente negativo. Assim, fica obstruído também a possibilidade de um uso mais esclarecido da tecnologia. Em vez de transformar a “população da mídia” em viciados on-line mal-humorados ou projetar carrinhos de compras biométricos, o big data pode ser mais bem utilizado para encontrar uma cura para o câncer ou avançar no desenvolvimento de tecnologias de Inteligência Artificial. Isso nos lembra que o socialismo não é apenas a crítica do atual estado de coisas, mas o ideal de uma sociedade seja completamente mais profunda; na verdade, uma sociedade capaz de realizar o potencial libertador da tecnologia.
Quanto ao Facebook, sua máscara está caindo. Menos capaz de se referir a si mesmo nos termos ideológicos de uma “plataforma tecnológica neutra”, as decisões recentes de remover conteúdos ou ajustar seus algoritmos (ou seja, na linguagem da mídia tradicional, sua política editorial) estouraram a bolha que escondia o fato de que Facebook é um editor. Mais do que isso, este monopólio midiático está cada vez mais revelando o entrelaçamento de seus interesses comerciais com os poderosos estados ocidentais. Não apenas o financiamento público do exército dos EUA forneceu a tecnologia que torna um smartphone smart; mas, mais do que nunca, as decisões sobre conteúdos que afetam a maior esfera pública do mundo estão sendo moldadas diretamente pelo estado. A tarefa para nós, portanto, é democratizá-la.
Nota do tradutor:
O artigo de Lewis Basset é bastante ilustrativo sobre o papel dos monopólios midiáticos da internet na luta de classes. Algumas ideias do autor, no entanto, mereceriam comentários.
Em primeiro lugar, nos parece que o Facebook não apenas “entregou a regulação da maior esfera pública do mundo nas mãos dos interesses hegemônicos dos estados ocidentais”. A questão é muito mais delicada – e o próprio título do texto de Lewis, ao usar o conceito de “hegemonia”, permite apontar para isso. Independente de qual seja o conjunto de nações às quais o Facebook “entregue” seu poder regulatório, este poder é em todo caso da empresa privada Facebook, justamente porque as redes sociais não são uma esfera pública. O mais interessante aqui é justamente notar como a revolução nas forças produtivas da comunicação alterou mais ou menos a relação entre o Estado e os aparelhos privados de hegemonia das classes proprietárias.
Mesmo o Estado mais autoritário, que cerceie mais duramente a esfera pública, não pode “receber” de ninguém o poder sobre essa esfera pública: precisa conquistá-lo por si próprio, com base na violência e na repressão.
O fascinante no caso das redes sociais é que, aqui, a mídia e a “esfera pública” parecem se misturar. O direito de propriedade privada permite que um jornal, tanto quanto o Facebook, escolha que conteúdos vai evidenciar e quais vai suprimir. Em ambos os casos, também, é possível que um Estado censure um jornal ou o acesso ao Facebook, impedindo sua circulação em território nacional. A diferença nos dois casos é que ninguém considera o jornal, ele próprio, uma “esfera pública”. O jornal é livre para se autocensurar, falar apenas o que quer, e poderá circular pela esfera pública caso não haja nenhuma censura estatal. Ao permitir que as pessoas produzam e veiculem conteúdo por si próprias, não sendo meros “receptores”, as redes sociais passam a falsa impressão de que inexiste nelas qualquer censura privada. Assim, assumem a aparência de uma esfera pública que, a rigor, não são.
Em segundo lugar: já apresentamos nossa discordância com a tese do autor (seguindo Paul Mason) sobre como a emergência da internet significaria uma mudança fundamental no capitalismo, abolindo a importância central do trabalho em favor dos “sangue vital” dos dados. O poder de influenciar nossa dieta de notícias, nosso consumo, nosso acesso ao crédito, etc, é um enorme poder. Mas isso não mudou em nada o fato de que a ampla maioria das pessoas trabalham para sobreviver, e não apenas “produzem dados”. Também não mudou o fato de que a maioria das grandes empresas, ainda que precisem cada vez mais desses “dados” para produzir e vender, não podem existir simplesmente nesse reino de “dados”: precisam comercializar bens e serviços produzidos por seus empregados.
Na verdade, é até estranho que o autor defenda as ideias de Mason, sendo que o próprio Mason tem ideias bastante ingênuas sobre as relações dos “indivíduos em rede”, como se essas fossem relações horizontais, etc. Para que o potencial “horizontal” da internet seja realizado, não bastam condições tecnológicas: é preciso que os próprios programas e sistemas que possibilitam essas interações virtuais sejam regulados e controlados de modo “horizontal”, comum, e não privado, oferecendo poderes e direitos quase absolutos para os empresários que investiram na criação desses sistemas digitais. E se em todo resto as redes sociais são bastante diferentes dos veículos tradicionais, nisso não: em ambos os casos, apenas será possível um uso verdadeiramente público das mídias quando houver a completa abolição da propriedade privada sobre os meios de produção e circulação de informação. Só poderemos considerar as redes sociais como uma verdadeira “esfera pública”, e assim também todos os meios de comunicação de massas, se colocarmos diretamente nas mãos dos produtores dos conteúdos o controle e o poder de regulação sobre o conteúdo desses próprios veículos! As formas dessa “democratização” serão, é evidente, distintas em cada caso. Mas é impossível falar em uma verdadeira democratização sem falar na abolição da propriedade privada e, portanto, em uma organização socialista da sociedade!
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