Por Alan Woods, via marxismo.org, traduzido pela Esquerda Marxista
Por ocasião dos 45 anos do golpe no Chile, em 11 de setembro de 1973, publicamos um trecho da importante contribuição do camarada Alan Woods à análise das lutas de classes durante o governo da Unidad Popular. Sobre o tema, já publicamos no LavraPalavra outras reflexões, do camarada Rui Mauro Marini e do historiador Hugo Cancino Troncoso, sobre os Conselhos Comunais e Cordões Industriais do Poder Popular chileno.
A Unidade Popular
“O triunfo de quatro de setembro e a aplicação conseqüente do programa deflagra um processo revolucionário que coloca as classes em uma situação de tensão histórica: revolução ou contra-revolução. Não são unicamente as realizações do Governo Popular, nem mesmo o seu programa, o que temem as classes dominantes, e sim a dinâmica revolucionária das massas, que põe o sistema capitalista duplamente em perigo. Temem, sobretudo, à direção trabalhadora do processo, expressa pelo predomínio socialista-comunista no Governo, na UP e no movimento de massas.
[…]
Todavia, é este último elemento subjetivo – o fator da direção – que não sabe enfrentar a nova realidade configurada pela Revolução em marcha, realidade que ultrapassa os objetivos explícitos que a Unidade Popular traçou em 1968“. (Socialismo chileno, p. 35).
A coalizão da Unidade Popular incluía, além do PCCH e do PSCH, um leque de pequenos partidos e grupelhos pequeno-burgueses (MAPU, API, SDS e o Partido Radical) de pequena penetração nas massas. Os radicais, no momento de sua entrada na coalizão, formavam indiscutivelmente um partido burguês, que, mais tarde, se dividiu sob a pressão das massas. Diferentemente da Frente Popular dos anos 30, em que o velho Partido Radical era a força majoritária, agora os radicais de Alberto Baltra formavam apenas uma seita sem peso decisivo, enquanto que as forças dominantes da coalizão eram os partidos dos trabalhadores, o PSCH e o PCCH. Não obstante isso, aos dirigentes stalinistas interessava a presença dos radicais no governo, não por sua importância política e sim como uma desculpa para não levar a termo um programa socialista. “Não podemos ir muito rápido, porque isto pode significar uma ruptura da coalizão”. A mesma tática foi empregada, com o minúsculo Partido Radical, pelos dirigentes do PC e do PS, na França.
Contra a Unidade Popular apresentam-se os dois partidos da burguesia: o Partido Nacional, de Alessandri, os representantes declarados da oligarquia, e a Democracia Cristã, representada por Tomic, que, desesperadamente, tentava recuperar a imagem de partido de esquerda, defendendo a “nacionalização total da indústria do cobre” e dos bancos estrangeiros, bem como a “aceleração” da reforma agrária. Mas, desta vez, as massas não se deixaram enganar pelas falsas promessas dos democrata-cristãos. Os resultados das eleições foram os seguintes:
Allende …………… 1.075.616 votos …… 36,3%
Alessandrini …….. 1.036.278 votos …… 34,9%
Tomic ………………. 824.849 votos ……. 27.8%
O profundo colapso do voto da DC revela claramente o processo de polarização entre as classes na sociedade chilena. De fato, os democratas-cristãos já haviam perdido sua maioria absoluta nas eleições ao Congresso de março de 1969.
O resultado das eleições de 1970 mostrou que a Unidade Popular tinha ganhado, mas sem a maioria absoluta. Isto foi utilizado pela direita para impor condições a Allende, antes de permitir-lhe formar o governo. Os dirigentes da Unidade Popular tinham, então, duas alternativas: ou rechaçar a chantagem da burguesia, denunciando suas manobras sujas para impedir a vontade popular e fazendo um apelo às massas através da organização de mobilizações massivas por todo o país, ou vacilar diante das pressões e aceitar as condições impostas.
Muitos militantes socialistas estavam indignados com essa manobra da burguesia. E, indubitavelmente, a indignação das massas teria sido ainda maior se os dirigentes da UP tivessem organizado uma campanha de mobilizações e de esclarecimentos. Já em julho de 1970, a CUT ameaçava com uma greve geral. Naquele momento, a classe trabalhadora tinha se convertido na maioria decisiva da sociedade: 75% da população ativa eram formados por assalariados, fundamentalmente urbanos (nas indústrias e nos serviços); menos de 25% se dedicavam à agricultura. O poder do movimento da classe trabalhadora no Chile já tinha sido revelado nas ondas de greves sob os governos de Ibáñez e de Alessandri. Os trabalhadores sabiam que a campanha eleitoral tinha se caracterizado por todo tipo de truques e sujas manobras contra a UP, promovidos pelo imperialismo e pela oligarquia. A tentativa de bloquear o acesso de Allende ao governo teria sido o sinal para um movimento sem precedentes que provocaria uma radicalização generalizada por todo o país.
Além disso, para os marxistas, ainda que os resultados eleitorais tenham importância para aferir o grau de consciência das massas, não podem ser nunca o único fator, nem sequer o fator determinante em nossa estratégia. Os marxistas não somos anarquistas. Por isso, participamos e estamos dispostos a utilizar todos os mecanismos da democracia burguesa e, inclusive, a tentar mudar a sociedade de modo pacífico, através da legislação parlamentar, na medida em que nos seja permitido fazê-lo. Entretanto, toda a história, e sobretudo a história do Chile, mostra como a classe dominante está disposta a tolerar a existência da democracia e sua utilização pelos socialistas somente dentro de certos limites claramente demarcados. No momento em que a burguesia vê ameaçado seu poder e seus privilégios não vacila em romper unilateralmente com as “regras do jogo” (regras estabelecidas por eles mesmos em defesa de seu poder e privilégios) e em destruir as conquistas democráticas da classe trabalhadora. Não, os socialistas não somos anarquistas. Somos sim realistas e aprendemos alguma coisa da história. Neste aspecto, tem razão o companheiro Sepúlveda quando afirma:
“Na questão do poder, não se trata de correlação de forças numéricas, de ter a maioria. Por exemplo, se em março de 1973 obtivermos uns 51 ou 55%, será que o imperialismo e a grande burguesia deixariam de preparar o golpe, não continuariam desenvolvendo forças para derrubar-nos? Pelo menos a experiência histórica revela que, ainda estando em minoria, a reação defende com violência seu predomínio de classe”. (Socialismo chileno, p. 36).
Muitos companheiros socialistas, e provavelmente também comunistas, previam a armadilha que a burguesia estava preparando com suas famosas condições. O principal protagonista dessa manobra era, naturalmente, a Democracia Cristã, que novamente pôs em evidência sua autêntica natureza de defensora mais hábil dos interesses de seus amos: os grandes capitalistas, os banqueiros e o imperialismo norte-americano.
Sob a pressão insistente do secretário geral do PCCH, Luís Corvalán e companhia, Allende pôs-se de acordo com a DC e aceitou o chamado “pacto de garantias constitucionais”, proibindo, por considerar “inconstitucional”, a formação de “milícias privadas” ou a nomeação, como oficiais, de membros das forças armadas não formados nas academias militares. Por outro lado, não se poderia fazer nenhum tipo de mudança no exército de terra, do ar, da marinha ou na polícia nacional, salvo com a aprovação do Congresso, onde os partidos burgueses ainda mantinham a maioria. Dessa forma, Allende e os demais dirigentes da UP caíram na armadilha desde o primeiro momento, esquecendo os princípios fundamentais do marxismo e o programa de fundação do socialismo chileno:
“A transformação evolutiva por meio do sistema democrático não é possível porque a classe dominante se organizou em corpos civis armados e instituiu sua própria ditadura, para manter os trabalhadores na miséria e na ignorância e para impedir sua emancipação”.
Teoria do Estado
Lênin tinha explicado repetidas vezes que o Estado consiste fundamentalmente em “grupos de homens armados em defesa da propriedade”. A aceitação do “pacto de garantias constitucionais”, pelos dirigentes da UP, significou um compromisso, de sua parte, de não armar a classe trabalhadora e de manter incólume o aparelho repressivo montado pela burguesia “para manter os trabalhadores na miséria e na ignorância e para impedir sua emancipação”. Mas, então, como lhes ia ser possível conduzir uma luta séria contra a oligarquia e o imperialismo? Durante todo o período de governo da UP, os dirigentes do PSCH e, sobretudo, do PCCH enganaram-se a si mesmos e, portanto, enganaram às massas de trabalhadores e camponeses, quando insistiram no caráter “patriótico” e imparcial de sua casta militar. Pensavam, de uma forma totalmente utópica: neutralizar os generais e os almirantes com boas palavras, condecorações e aumentos salariais.
O aparelho estatal, e principalmente toda a casta militar, não estão acima das classes e da sociedade. Constituem, sim, um órgão de repressão nas mãos da classe dominante. O alto comando do exército, no Chile como em qualquer outro país, está intimamente vinculado, por milhares de laços (de classe, familiares, de educação, de interesses econômicos etc.) com a alta burguesia, os banqueiros e os latifundiários. Tudo isso é o abc para um marxista. Por outro lado, a burguesia e seus representantes políticos, os democrata-cristãos, compreendiam isso perfeitamente. O “pacto” não era uma questão secundária, um detalhe ou um capricho. Era o centro do assunto, como se viu claramente três anos depois, com conseqüências catastróficas para a classe trabalhadora e para todo o povo chileno.
Não obstante, a formação do governo da UP abriu uma nova etapa para o processo revolucionário no Chile. Como aconteceu na Espanha em 1936, o programa inicial do governo viu-se muito rapidamente ultrapassado pelo movimento das massas.
“Durante o primeiro ano e meio de governo, a aplicação de medidas de caráter democrático-burguês esgota rapidamente a agenda de reformas da UP e as massas começam a exigir a aplicação do programa em matéria de economia, saúde, educação ou moradia. É assim como as massas começam a se mobilizar em torno de aspirações, como a passagem dos grandes monopólios têxteis, madeireiros etc. para as mãos dos trabalhadores. Aspirações que o governo só pode cumprir em parte, devido ao grau de seu compromisso com a oposição e aos obstáculos que o reformismo militante das próprias fileiras da UP colocou à obtenção desses objetivos. É neste ponto que os setores reformistas dão início a uma ação que tende a paralisar toda iniciativa que mobilize as massas para objetivos ou perspectivas socialistas e revolucionárias, impondo-a com firmeza aos seus representantes na direção do aparelho econômico, utilizando a CUT para essa finalidade. Tudo isso tem como conseqüência o divórcio entre os objetivos das massas e os objetivos do governo”. (45o aniversário do PSCH, p. 17, ênfase nossa).
Pressão das Massas
Sob a pressão das massas, o governo da UP foi bem mais longe do previsto por muitos de seus dirigentes. O esquema mecanicista do stalinismo de uma divisão artificial entre as tarefas democrático-burguesas e as tarefas da revolução proletária foi rompido pelo movimento das massas. O governo Allende realizou medidas importantes de nacionalização, que representavam um duro golpe contra os interesses da oligarquia.
As medidas de nacionalização do governo Frei tinham reduzido a 49% a indústria do cobre nas mãos dos grandes monopólios norte-americanos, como a Anaconda ou a Kennecott Copper, a quem Frei pagou enormes indenizações (80 milhões de dólares a Kennecott Copper, entre 1967 e 1969, somente pela mina El Teniente). Os trabalhadores chilenos viram-se sobrecarregados por este peso. Em julho de 1971, Allende esclareceu que os monopólios estadunidenses tinham investido entre 50 e 80 milhões de dólares no Chile e que seus lucros subiram a 1.566 milhões de dólares. Portanto, tais empresas deviam ao Chile 642 milhões de dólares.
A nacionalização do cobre em julho de 1971 representou um grande avanço. Da mesma forma, foram nacionalizadas a indústria do carvão, as minas de ferro e de nitratos, a indústria têxtil, a ITT, a INASA etc.
Uma série de reformas sociais em benefício da classe trabalhadora também serviu para aumentar drasticamente o apoio popular ao governo: a distribuição gratuita de leite às crianças nos colégios, o congelamento dos aluguéis e dos preços, o aumento de salários e de pensões…
Estas medidas, por sua vez, deram um enorme impulso ao movimento das massas. Por fim, os setores mais atrasados, apolíticos e apáticos da sociedade conheceram um governo que agia em seu benefício. O resultado foi uma crescente onda de radicalização no campo e na cidade.
A incapacidade do governo Frei para realizar uma reforma agrária séria foi uma das principais razões da vitória eleitoral de Allende. Nas vésperas das eleições, a situação no campo caracterizou-se, nas palavras do ex-ministro da Agricultura da UP, Jacques Chonchol, por “uma frustração crescente”. Ele mesmo explica como a deflagração da nova reforma agrária se deveu à forte pressão das massas rurais:
“O primeiro aspecto que o governo da Unidade Popular teve de abordar em sua política agrária foi o de acelerar o processo das desapropriações para atender à pressão e inquietação dos camponeses. Estes, com efeito, pensavam que, uma vez que o novo governo era dos trabalhadores, todas as suas aspirações de acesso à terra deviam ser satisfeitas do modo mais rápido possível”. (Chile-América, no 25-26-27, pp. 27-28, ênfase nossa).
Por outro lado, os latifundiários iniciaram uma campanha sistemática de sabotagem, abandonando suas terras e desmantelando as instalações de suas fazendas. Muitos deles já estavam financiando grupos armados da ultra-direita, com a finalidade de resistir à reforma agrária. Pablo Goebels, um grande latifundiário da província de Cautín, afirmou publicamente que qualquer funcionário do governo que tentasse expropriar suas terras seria recebido com metralhadoras. Segundo um informe oficial da polícia, “mais de dois mil homens foram recrutados em comandos de assalto com o objetivo de provocar o colapso do sistema de transporte, a interrupção do abastecimento de água, gás e eletricidade, e, dessa forma, provocar um descontentamento generalizado”. (Militant, 1/10/71).
Desde o primeiro momento, a classe dominante chilena esteve fazendo seus preparativos para um golpe. Como explica o mesmo artigo do Militant:
“Enquanto Allende exorta as massas à responsabilidade e à disciplina, a reação está acumulando forças para um golpe. Profundamente deprimidos pela vitória de Allende e assustados pelo movimento das massas, os proprietários de terra e os capitalistas compreendem a impossibilidade de derrubar Allende imediatamente. Estão dispostos a esperar. Não obstante, estão fazendo preparativos cuidadosos, estão recolhendo armas, os oficiais superiores do quartel general estão conspirando. O perigo é muito real”.
Resistência do Estado
A única forma de desarmar a reação e esmagar a resistência dos grandes proprietários de terra teria sido a de armar os camponeses pobres, organizando-os em comitês de ação para ocupar as terras, com o apoio do governo. Diante de um movimento poderoso das massas armadas, os proprietários de terra e seus pistoleiros poderiam ter sido derrotados, com um mínimo derramamento de sangue. De fato, esta era a única via possível para defender as conquistas obtidas pelas massas com a Unidade Popular. Mas os dirigentes da UP desconfiavam totalmente da iniciativa revolucionária das massas e estavam atemorizados pela idéia de “provocar à reação”. Por isso, opunham-se terminantemente a cada tentativa, por parte dos camponeses pobres, de realizar “ocupações ilegais”, inclusive ordenando às “forças da ordem pública” para desalojar os camponeses que tinham realizado tais ações. Hoje em dia, alguns dos dirigentes da UP tentam justificar-se alegando que esses movimentos estavam organizados por grupos ultra-esquerdistas e que, às vezes, os camponeses exageravam, ocupando não somente as terras dos latifundiários, como também de camponeses médios.
Indubitavelmente, qualquer movimento revolucionário, sobretudo por parte dos estratos mais oprimidos e atrasados da população, sempre tende a “exagerar” e, até certo ponto, estes “excessos” são inevitáveis. Também pode ser verdade que alguns grupelhos ultra-esquerdistas aproveitaram-se do movimento espontâneo dos camponeses para aumentar sua influência. Mas a responsabilidade por esta situação é totalmente dos dirigentes da UP, e principalmente do PCCH e do PSCH.
A melhor forma de se evitar os abusos e “excessos”, de minimizar a violência e o derramamento de sangue e de assegurar a transferência o mais pacífica e ordeiramente possível dos latifúndios às mãos dos camponeses pobres era que os mesmos dirigentes, em vez de denunciar estas “ações ilegais” e de mandar a polícia para “restabelecer a ordem”, tivessem se colocado à frente do movimento das massas, dando-lhe um caráter organizado.
Jacques Chonchol, no artigo anteriormente mencionado, tenta minimizar a importância dos conselhos camponeses. Contudo, ele mesmo explica as razões que impediram o fortalecimento e a generalização desses organismos de poder popular no campo:
“Buscando sua ampliação para fazer participar estes grupos, iniciou-se, ademais, uma luta política entre a UP e a Democracia Cristã, e entre os próprios partidos da Unidade Popular, para tratar de controlar os conselhos, o que levou, posteriormente, alguns partidos da UP a não apoiar a organização dos Conselhos Camponeses”. (Chile-América, p. 32).
Uma afirmação incrível! Alguns dos dirigentes da UP se opunham à criação dos conselhos camponeses, porque existia uma luta pela hegemonia política nesses órgãos. Mas, acaso não existe a mesma luta em cada fábrica, em cada bairro de trabalhadores, em cada convocação eleitoral, em cada sindicato? E, entretanto, os dirigentes da UP não defendiam a abolição dos sindicatos e do parlamento. A verdadeira razão foi que “alguns dirigentes” da UP desconfiavam do movimento das massas camponesas e tinham medo de que escapasse de seu controle. O dever elementar dos dirigentes era o de apoiar cada iniciativa revolucionária das massas de camponeses pobres, o de fortalecer ativamente a criação dos conselhos camponeses, apesar de todas as dificuldades, e o de lutar dentro deles por uma política socialista revolucionária, contra a influência funesta dos democrata-cristãos.
Desde o primeiro momento os dirigentes da UP depositavam toda sua confiança na legalidade burguesa, deixando intacto todo o velho aparato estatal. Isto teve conseqüências desastrosas para a reforma agrária, como admite o próprio Jacques Chonchol:
“Além disso, as limitações jurídicas do governo impediam-no de dar aos Conselhos Camponeses, a não ser através de uma lei que não tinha possibilidades de aprovar por ser minoritário no Parlamento, foro jurídico para seus dirigentes e financiamento para seu trabalho”. (Chile-América, p. 32).
O caráter utópico da idéia de utilização do velho aparato burocrático do Estado burguês para realizar a reforma agrária, fica reconhecido implicitamente, mesmo a contragosto, nas seguintes palavras de Chonchol, que admite que os “Conselhos Camponeses” freqüentemente se chocavam com a resistência do aparato burocrático:
“Da mesma maneira, um dos problemas que o governo da UP não pôde resolver, apesar das tentativas feitas, foi o do funcionamento do aparato burocrático do Estado (…) Para todo o processo de mudança agrária, que incluía problemas tão diversos, como o das desapropriações, o da assistência técnica e de crédito aos camponeses, o da reorganização do sistema econômico entre a agricultura e o resto da sociedade etc., seria necessário dar ao aparato burocrático, que tinha uma considerável responsabilidade em todo o processo de mudança (!), um dinamismo, uma coerência e uma eficácia muito superiores ao que tinha sido o seu comportamento tradicional.”
“Várias tentativas foram feitas durante o governo da UP para alcançar este objetivo, mas, definitivamente, as limitações legais, a resistência da burocracia a mudar seus hábitos, a diferença de classes entre os burocratas e os camponeses, a localização urbana de grande parte desta burocracia agrária e as lutas partidárias impediram avançar de um modo significativo na transformação da burocracia tradicional num corpo mais orgânico (?) e eficiente a serviço do processo da transformação agrária”. (Chile-América, p. 33, ênfase nossa).
Todos os argumentos de Chonchol mostram claramente a impossibilidade de implementar uma mudança radical e irreversível das relações sociais no campo chileno, a não ser como conseqüência da luta revolucionária do campesinato armado contra a contra-revolução e da organização dos conselhos camponeses, intimamente ligados com os sindicatos camponeses e as organizações da classe trabalhadora nas cidades.
Mas, apesar de tudo, devido às pressões das massas (já antes do 1º de janeiro de 1971 houve entre 250-300 ocupações “não oficiais”), o governo da UP realizou a reforma agrária mais profunda de toda a história do Chile. Nas palavras de Chonchol:
“Nestas circunstâncias, o governo da UP fixou, para 1971, uma meta de desapropriação de mil imóveis rurais, que era quase o que tinha sido feito pelo governo democrata-cristão durante seus seis anos de mandato (1.139 imóveis rurais) e que significava quase quadruplicar as desapropriações de 1970 (273 imóveis, com 634 mil hectares, haviam sido desapropriados pelo governo Frei em 1970). Isto implicava um enorme esforço do sistema burocrático do Estado, dadas as complexidades e limitações do processo de desapropriação contemplado na lei 16.640. Apesar disso, e sob a pressão camponesa, a aceleração do processo devia ser ainda maior e, no final de 1971, foram desapropriados 1.378 imóveis rurais com 2.600.000 hectares. Este ritmo se acelerou ainda mais em 1972, ano em que foram desapropriados mais de 2 mil imóveis com uns 2.800.000 hectares, com o que praticamente se liquidou com o grande latifúndio no Chile. Em 1973, até o golpe de Estado, foram expropriados outros 1.050 imóveis, sobretudo imóveis mal explorados de tamanho médio e latifúndios remanescentes, com 1.200.000 hectares”. (Chile-América, p. 28).
As medidas tomadas pelo governo Allende, em benefício das massas de trabalhadores e camponeses, provocaram uma enorme onda de entusiasmo popular, que se refletiu nos resultados das eleições municipais de 4 de abril de 1971.
Enquanto que, nas eleições presidenciais, Allende só obteve 36,3% dos votos, agora os partidos da UP conseguiram 49,7% dos votos, frente a 48,05% da oposição em conjunto.
A onda de radicalização no país teve sua expressão no surgimento de órgãos incipientes de poder operário nas fábricas e nos bairros de trabalhadores. No campo houve tentativas, da parte dos camponeses pobres, de ocupar terras. Esta fermentação nas massas populares também sacudiu os partidos tradicionais da classe média, provocando no seu seio uma série de convulsões e divisões. Sete deputados da DC abandonaram suas fileiras para formar um novo partido, o MIC (Esquerda Cristã), que recebeu a adesão de uma parte da juventude do partido, declarando-se a favor da “construção do socialismo” com o governo da UP. O Partido Radical sofreu uma divisão à direita depois do 25o Congresso, quando o partido formalmente se declarou a favor da “luta de classes e da necessidade de acabar com a exploração do homem pelo homem”. Alberto Baltra, que participou da formação do MRI “para representar os interesses da classe média”, tampouco se atreveu imediatamente a manifestar-se abertamente contra o governo da UP. A corrente popular a favor do governo era muito forte, inclusive entre as massas da pequena burguesia.
De fato, a correlação de forças no parlamento não era mais que um pálido reflexo da enorme força do movimento dos trabalhadores e camponeses naquele momento. Todas as condições objetivas para a transformação pacífica da sociedade chilena estavam dadas. A classe dominante encontrava-se desmoralizada e vacilava. O movimento das massas estava no auge e, de fato, já havia deixado muito para trás os esquemas reformistas da sua direção. A classe média, e sobretudo o campesinato, olhava com esperança para o governo. Os dirigentes socialistas e comunistas ocupavam postos decisivos do governo e da administração pública. Tinham a vantagem de ser o governo legítimo do país, o que facilitava a tarefa da revolução socialista face às massas mais atrasadas da classe média. Inclusive nas forças armadas, a Unidade Popular tinha muito apoio, não somente entre os soldados e marinheiros, mas também entre amplos setores dos suboficiais, que apoiavam ao PSCH ou ao PCCH. O presidente da República podia convocar um referendo sobre temas importantes. Não se pode imaginar uma situação objetiva mais favorável. Não obstante, as direções do PSCH e do PCCH não aproveitaram o momento para dar o golpe definitivo e acabar com o poder da oligarquia.
Nesta situação, surgiram elementos de duplo poder na sociedade chilena:
“Neste ponto, é muito importante destacar que a contradição fundamental está dada pela aspiração do poder popular das massas expressa nos chamados comandos comunais, cordões industriais, assembléias populares, formas de controle de abastecimento de alimentos, conselho de administração de empresas etc.”. (45o aniversário do PSCH, p. 17).
Não obstante, os dirigentes do movimento de trabalhadores deixaram todas as alavancas do poder nas mãos da classe dominante. Não se atreveram a intervir no exército e na polícia. “A Unidade Popular tem o poder executivo”, diz Sepúlveda, “mas o inimigo controla toda a institucionalidade burguesa e se protege através dela para seus preparativos contra-revolucionários”.
O governo tinha poderes legais para convocar um plebiscito e novas eleições legislativas, que, sem dúvida alguma, teriam significado uma vitória decisiva para os partidos dos trabalhadores. Mas, em um momento tão favorável, os dirigentes da UP desperdiçaram a oportunidade, confiando cegamente na “boa vontade” do inimigo de classe.
A Contra-ofensiva Burguesa
“A Unidade Popular triunfa com 36% em quatro de setembro. Em cinco de novembro, depois do assassinato do Comandante em Chefe do Exército, general René Schmeider, o Presidente Allende assume [o poder] ante uma burguesia dividida e aterrorizada. As próprias forças armadas esperam uma limpeza profunda. Todos se mantêm imóveis. Inicia-se a aplicação das linhas gerais do Programa e das 40 medidas. Em cinco meses de exercício de governo realizam-se as eleições de regentes: a UP obtém 51% dos votos”. (Socialismo Chileno, p. 38).
Dessa maneira, os dirigentes da UP perderam a melhor oportunidade de conseguir uma transformação relativamente pacífica da sociedade: a convocação de novas eleições; a obtenção de uma maioria absoluta, que teria retirado aos partidos burgueses seu último pretexto legal para bloquear a legislação socialista; e um apelo, a partir do governo, de toda a classe trabalhadora e do campesinato para conduzir a total eliminação do poder dos capitalistas e grandes proprietários de terra no Chile, armando os operários e camponeses em defesa de suas conquistas democráticas, econômicas e sociais, e organizando de forma generalizada, por todo o país, conselhos de operários, camponeses, soldados, donas de casa e pequenos comerciantes, visando organizar a produção e fiscalizar a manutenção da ordem revolucionária. Esses conselhos, eleitos democraticamente e revogáveis a todo o momento, constituiriam, finalmente, os autênticos órgãos do poder dos operários e camponeses chilenos. Confrontadas por um movimento revolucionário com essas características, a classe dominante, a casta militar e a burocracia estatal teriam ficado suspensas no ar, sem nenhum tipo de base social. Mas os dirigentes dos principais partidos de trabalhadores, ao esquecer os princípios mais elementares do marxismo e ao perder a oportunidade, deixaram que a iniciativa passasse às mãos da reação.
Utilizando seu controle da imprensa, a oligarquia chilena, com o apoio ativo da CIA, começa sua contra-ofensiva nas páginas de El Mercúrio. A Democracia Cristã intensifica sua campanha contra o governo em aliança com o Partido Nacional, exigindo o “desarmamento de todos os grupos armados”. Esta gente, logicamente, estava pensando somente nos grupos de esquerda, já que “Pátria e Liberdade” e outros grupos fascistas faziam suas provocações terroristas nas ruas com impunidade. Assim, estabelece-se uma conveniente divisão do trabalho entre a oposição “respeitável” da DC, que sistematicamente bloqueia as novas leis, e os fascistas, que semeiam o terror e a confusão nas ruas.
Os capitalistas e grandes proprietários de terra chilenos boicotaram a economia nacional. O imperialismo americano cortou toda ajuda econômica ao governo Allende e tentou organizar um boicote mundial ao cobre chileno. As nacionalizações realizadas de forma parcial e sem um planejamento econômico global deram lugar a convulsões, provocando um enorme aumento da inflação, que eliminou as vantagens dos aumentos salariais e afetou seriamente a classe média. Muito rapidamente a simpatia dos estratos médios pelo novo governo converteu-se em crescente oposição.
A ofensiva da contra-revolução começa com a paralisação dos caminhões, em outubro de 1972. As massas da classe trabalhadora, compreendendo o perigo, respondem com mobilizações impressionantes, logrando frustrar a tentativa contra-revolucionária; mas, como agiram os dirigentes? Com uma remodelação do governo para, pela primeira vez, incluir representantes da casta militar no gabinete governamental.
Novamente, o triunfo logrado pela mobilização e iniciativa da classe trabalhadora converte-se em derrota, devido à bancarrota e à miopia reformista de seus dirigentes. “As forças armadas são convidadas como árbitros em um conflito que tinha um vencedor”, comenta A. Sepúlveda com amargura. O Comitê Central do Partido Socialista, expressando a indignação da base de trabalhadores contra a capitulação do governo, protesta contra “essa saída que escamoteia uma vitória numa fase decisiva do processo” (Socialismo chileno, p. 40).
Conspirações Golpistas
Entre a paralisação de outubro e quatro de março, foram quatro meses de preparação contra-revolucionária: propaganda contra o “desabastecimento” e o “mercado negro” provocados artificialmente pela burguesia. Ao mesmo tempo, intensificam-se as conspirações golpistas nos quartéis. Nesta situação, os dirigentes da UP, envolvidos em seus esquemas reformistas e confiando cegamente na “lealdade” dos generais “patriotas”, mostram-se totalmente impotentes para deter a ofensiva da direita. Apesar de tudo, a Unidade Popular obteve 44% dos votos nas eleições de março de 1973. “No primeiro momento, que o povo considera um triunfo, o inimigo está deprimido. É a ocasião de lançar-se à ofensiva… É o que planeja o Partido Socialista. Mas não há ofensiva” (Socialismo chileno, pp. 40-41).
Indubitavelmente, as bases de trabalhadores, tanto do PSCH quanto do PCCH, queriam passar à ofensiva. Os trabalhadores esperavam por uma palavra de seus dirigentes para sair às ruas e esmagar a reação. Pediam armas, mas só conseguiram boas palavras, promessas e apelos à disciplina, à responsabilidade e à serenidade. Contudo, como diz Sepúlveda já em março de 1973, o proletariado “não queria mais desfiles, aspirava ao poder” (Socialismo chileno, p.41).
Segundo o documento do PSCH anteriormente citado:
“O governo da UP, diante da insurreição da burguesia, não é capaz, devido às posições reformistas, de resolver a favor da revolução chilena, com ações organizadas de massas, de por fim a essa ofensiva, e, a partir de posições conciliatórias, trata de adiar o desenlace de uma situação que se faz cada vez mais insustentável” (45o aniversário do PSCH, p. 18).
A base de trabalhadores do PSCH, seguindo seu instinto de classe, opôs-se terminantemente à entrada de militares no governo. Desta maneira, os operários socialistas demonstraram que compreendiam, muito melhor que sua direção, o que estava acontecendo no país. A capitulação dos dirigentes da UP em novembro somente estimulou o apetite dos reacionários. Os resultados das eleições de março só serviram para adiar o desenlace fatal. Se a contra-revolução apenas dependesse dos dirigentes, teria triunfado no Chile quase um ano antes. Afortunadamente, o enorme poder do movimento de trabalhadores e seu grande nível de combatividade fizeram vacilar as forças reacionárias. Como disse o jornalista inglês Laurence Whitehead, em um artigo no The Economist (30/7/73):
“Se até agora o exército chileno manteve-se imobilizado, a explicação não se encontra em nenhuma tradição nacional específica, e sim no poder formidável agora adquirido pelo movimento operário”.
A prova desse enorme poder foi o fracasso rotundo do “tancazo” do dia 29 de junho. Em questão de horas, milhares de trabalhadores fizeram greves, ocuparam as fábricas e, deixando piquetes para proteger as fábricas ocupadas, marcharam até o “Palácio de la Moneda”. “Outra conjuntura extraordinária para avançar e golpear”, afirma Sepúlveda. “Os camponeses estavam próximos. Abortado o movimento, os parlamentares de direita tremiam nos corredores do Congresso” (Socialismo chileno, p. 41).
E qual foi a reação da direção? Allende fez um apelo aos trabalhadores para que voltassem ao trabalho. A polícia dispersou as massas que circulavam sem rumo pelas ruas da capital.
Este comportamento do governo deu ânimo novo às forças reacionárias, que se lançaram novamente à luta contra outra greve dos caminhoneiros. Os trabalhadores responderam com uma greve geral de 24 horas no dia nove de agosto. Como dizia um artigo no Militant (17/08/73): “Não faltam o ânimo e a vontade de lutar. O que falta é a direção”. Quase três anos depois, o dirigente socialista Adonis Sepúlveda, chega, retrospectivamente, à mesma conclusão: “A direção do movimento não deu orientação alguma. Tampouco a CUT” (Socialismo chileno, p. 41).
Sem Direção
Aí estava a tragédia da classe trabalhadora chilena. Apesar de todo o enorme poder que se encontrava em suas mãos; apesar do ânimo de luta e do heroísmo dos trabalhadores, suas direções falharam no momento decisivo. Em troca, os representantes da classe burguesa atuavam de forma séria. Pouco lhes importava “as regras do jogo”. Sabiam que seus interesses de classe estavam sob risco e atuaram agressivamente para defendê-los:
“O inimigo sempre soube o que tinha de fazer”, acrescenta Sepúlveda. “Retrocedeu ou avançou por seus objetivos de acordo com as circunstâncias. Contrariamente à UP, não perdeu uma oportunidade para ganhar terreno. Organizou com decisão e seriamente o golpe e o assestou no momento mais propício: no de maior confusão e quando as contradições sobre o que fazer tinham virtualmente paralisado a direção” (Socialismo chileno, p. 42).
Talvez Sepúlveda exagere sobre a inteligência e perspicácia da classe dominante chilena, mas o que é realmente verdade é que, se os dirigentes chilenos tivessem defendido os interesses da classe trabalhadora com a quarta parte da seriedade dos políticos burgueses, o proletariado chileno poderia ter tomado o poder não somente uma, mas três ou quatro vezes durante o período da Unidade Popular. As condições objetivas estavam dadas, a vontade de lutar estava presente. Faltava apenas uma autêntica direção revolucionária, com a vontade e a capacidade de levar à prática uma política marxista-leninista.
As tentativas por parte de Allende e demais dirigentes da UP de chegar a um acordo com a reação, pactuando com a Democracia Cristã e deixando entrar os militares no governo, serviram apenas para desorientar a classe trabalhadora e animar aos contra-revolucionários. Uma grande parte da responsabilidade por esta política a tem Corvalán e os dirigentes do Partido Comunista do Chile que, desde o primeiro momento, pressionaram Allende e os dirigentes socialistas a seguir esse caminho desastroso. Após o fracasso do “tancazo” de junho, Corvalán fez um discurso, ironicamente republicado na revista do PC britânico Marxist Today em setembro de 1973, no qual elogiava a “ação rápida e decidida do comandante em chefe do exército, a lealdade das forças armadas e da polícia”. Rechaçando terminantemente a idéia de que seu partido estava a favor de uma milícia trabalhadora, Corvalán responde: “Não, senhores! Seguimos apoiando o caráter absolutamente profissional das instituições armadas. Seus inimigos não estão nas fileiras do povo e sim no campo da reação”. Mas Allende e os dirigentes do PSCH também tinham uma grande responsabilidade pelo que aconteceu, já que tinham aceitado a mesma política. Por exemplo, no dia 24 de junho, Allende “pediu a seus seguidores para iniciar um diálogo com aqueles grupos da oposição que também queriam a transformação do país” (referia-se aos mesmos democratas cristãos que precisamente naquele momento estavam apoiando aos conspiradores fascistas) e “fez uma advertência contra a classificação das forças armadas como ‘reacionárias’ e evitando assim que estas se convertessem em uma força dinâmica no desenvolvimento do Chile”. E isto há apenas cinco dias antes do “tancazo” de 29 de junho.
Não cabe a menor dúvida de que as intenções de Salvador Allende e dos demais dirigentes da UP eram honradas. Desejavam sinceramente uma “mudança pacífica e sem traumas” da sociedade. Desgraçadamente, para se fazer uma revolução socialista, não basta ter boas intenções. Como muito bem o disse um dos dirigentes do Partido Socialista do Chile (Interior) em um artigo publicado em Nuevo Claridad (no 24, abril 1978):
“Se os processos fossem medidos pelas intenções, teríamos de afirmar que a intenção da UP era a de construir o socialismo no Chile, mas, infelizmente, temos hoje fascismo e ditadura”.
Atualmente, alguns dirigentes da UP no exílio tentam justificar-se aproximadamente da forma seguinte: “Se tivéssemos lutado, isso teria significado uma guerra civil sangrenta, com milhares de mortos”. Como soam irônicas, hoje, estas palavras! Milhares de operários e camponeses, a flor e a nata da classe trabalhadora foram exterminados, torturados, levados aos campos de concentração ou simplesmente “desaparecidos”. E segue-se insistindo na necessidade de se evitar a violência “custe o que custar”. Que fique claro, nenhum revolucionário quer a violência. Todos nós queremos uma transformação “pacífica e sem traumas”, mas também aprendemos algo da história: jamais alguma classe dominante renunciou a seu poder e a seus privilégios sem lutar ferozmente.
Os trabalhadores socialistas e comunistas queriam lutar contra a reação. Isto ficou claro no dia 4 de setembro, quando 800 mil trabalhadores, muitos deles armados com porretes, desfilaram pelas ruas de Santiago. Adonis Sepúlveda descreve assim os acontecimentos:
“Os estratos atrasados, suburbanos e camponeses, muitas donas de casa dos setores mais pobres, embora não estivessem inscritos, faziam parte da força social da Unidade Popular. No dia 29 de junho, respondem à tentativa de golpe com uma formidável demonstração de força. O presidente da República esteve mais de cinco minutos nos balcões do La Moneda, sem poder iniciar seu discurso diante dos gritos ensurdecedores das massas, exigindo o fechamento do parlamento. No dia quatro de setembro, sete dias antes do golpe, em todos os povoados e cidades do Chile, realizam-se fabulosas concentrações de apoio ao governo. Em Santiago, desfilam 800 mil pessoas exigindo com fervor: ‘Mano dura, mano dura, no vivimos por las puras’, ‘Crear, crear, poder popular’, ‘Allende, Allende, el pueblo te defiende’. (Socialismo chileno, pp. 36-37).
Os trabalhadores chilenos confiavam em seus dirigentes, a quem pediram armas e uma estratégia de luta. Se, em vez de porretes, tivessem armas, mesmo que poucas e deficientes, a história do Chile teria sido muito diferente. A manifestação gigantesca de quatro de setembro demonstra que a classe trabalhadora não tinha perdido sua vontade de lutar, e sim que pedia armas para resistir. Desgraçadamente, seus dirigentes, em vez de armas, ofereceram-lhes boas palavras e recomendaram-lhes voltar para suas casas, coisa que só serviu para debilitá-los frente ao golpe iminente.
É aqui onde, naturalmente, surge o problema do exército. Segundo algumas fontes, Allende perguntou a Altamirano: “Quantos homens são necessários para conduzir um tanque?”. Contudo, esta é uma forma completamente errada de encaminhar a questão. Se o exército pudesse ser reduzido sempre a “tantos generais controlando tantas baionetas”, nenhuma revolução teria sido possível na história. Mas, como disse uma vez o rei Frederico da Prússia: “Quando essas baionetas começarem a pensar, estaremos perdidos”.
No exército chileno havia muitos soldados, cabos, inclusive oficiais, que simpatizavam com a UP. Muitos inclusive tinham carnês, socialista ou comunista. A tentativa de sublevação dos marinheiros de esquerda, em sete de agosto, dava uma idéia do que seria possível no caso de uma convocação séria de Allende às tropas.
Infelizmente, até o último momento, Allende confiou que os generais não violariam a legalidade e que, inclusive, defenderiam seu governo. Como uma ironia macabra da história, pouco antes do golpe, o mesmo Allende nomeou os generais Leigh Guzmán e Pinochet chefes das Forças Aéreas e do Exército, respectivamente. Até o final, quando os tanques já se encontravam nas ruas, Allende pedia aos trabalhadores calma e “serenidade”, enquanto tentava, em vão, telefonar a Pinochet.
O erro fundamental dos dirigentes da UP foi o de pensar que o Estado burguês poderia adotar uma atitude “imparcial” no desenvolvimento da luta de classes e que o Chile era um caso excepcional devido às tradições “democráticas” de suas forças armadas. Estas ilusões foram fomentadas até o último momento pelos próprios militares. Pouco antes do golpe, depois de sua nomeação, o general Leigh Guzmán pronunciou um discurso e afirmou que as forças armadas “nunca romperiam com sua tradição de respeitar o governo legalmente constituído”. Estas mesmas ilusões dominavam os dirigentes da UP, sobretudo os do PCCH. Desde o primeiro momento, Corvalán insistiu teimosamente no “profissionalismo” e no “patriotismo” dos militares chilenos. Num artigo publicado em World Marxist Review (dezembro de 1970), Corvalán fixou-se no caráter especial das forças armadas chilenas, que “mantinham seu espírito de profissionalismo, seu respeito à Constituição e à lei”. Segundo ele, seria incorreto afirmar “que são os servidores leais dos imperialistas e das classes superiores”. Novamente, em novembro de 1972, na mesma revista, Corvalán insiste que “apesar de sua diversidade, os militares têm valores morais comuns: respeito à Constituição e à lei, e lealdade para com o governo eleito”. O mesmo Corvalán escreveu no jornal diário do PC britânico, The Morning Star (29/12/70): “Admitir a inevitabilidade de um enfrentamento armado implica na formação imediata de uma milícia popular armada. Na atual situação, isto equivaleria a um desafio ao exército (…) [este] deve ser ganho para a causa do progresso no Chile e não empurrado para o outro lado das barricadas”.
Conquistar os Soldados
Se os dirigentes da UP tivessem dedicado a décima parte das energias gastas em tentar ganhar a confiança e o respeito da casta militar, a um trabalho sério para ganhar a base do exército, a derrota de 11 de setembro teria sido totalmente impossível.
Se Allende tivesse usado de seu enorme prestígio pessoal e de sua autoridade legal como Presidente da República para fazer um apelo às fileiras do exército, por cima das cabeças dos generais, o desenlace da situação teria sido muito diferente. As fileiras do exército, uma vez frente a frente com o movimento das massas, teriam sofrido inevitavelmente uma série de tensões e divisões. Ainda que, em qualquer exército, a cúpula da casta militar esteja vinculada à classe dominante, a base está sempre próxima da classe operária e do campesinato. Os soldados e os marinheiros simpatizavam com o movimento da classe trabalhadora e com o governo da UP. Mas, detrás do soldado, está o oficial com sua pistola e seu bastão de comando. Para que se produza um movimento de solidariedade ativa no seio do exército é necessário que os soldados estejam convencidos da firme vontade dos trabalhadores de levar a luta até o final, até suas últimas conseqüências. Em poucas palavras: que confiem no êxito. Se não for assim, o temor aos oficiais será suficiente para manter a disciplina na tropa.
O fato de que, em 11 de setembro, apenas uma minoria dos soldados tenha participado ativamente no golpe, enquanto que a maioria ficou nos quartéis, indica que Pinochet percebia muito melhor que Allende as tensões existentes dentro do exército.
Mas, na ausência de uma resistência massiva e feroz, não existia a menor possibilidade de atrair os soldados que, de maneira passiva, simpatizavam com a causa dos trabalhadores. Neste sentido, os métodos “pacifistas” do reformismo sempre conduzem a resultados diametralmente opostos aos previstos.
Agora, no exílio, muitas das pessoas que tinham uma responsabilidade pessoal na situação tentam justificar-se de qualquer maneira. Um dos argumentos utilizados é o de que a classe trabalhadora, no momento decisivo, encontrava-se isolada. O certo é que mostrava sinais de cansaço. Não via recompensados seus esforços diante da contemporização que se tinha com o inimigo. “Estava cansada de desfiles. Queria ações reais para liquidar o conflito social e não percebia firmeza em sua direção política. Mas estava pronta a combater à primeira ordem. No dia 11, e em alguns casos até os dias 12 e 13, ficaram esperando” (Socialismo chileno, p. 37).
As Massas Abandonadas
Tanto o PSCH quanto o PCCH tinham armas e, teoricamente, uma política militar. Mas, na hora da verdade, as armas não apareceram, a política militar não serviu de nada e a maior parte dos dirigentes fugiu, abandonando as bases a sua sorte. Foi um final indigno para três anos de lutas heróicas da classe operária e do campesinato chilenos. Há quem diga que a morte de Allende “salvou a honra” do socialismo chileno. Como se tratasse de uma questão abstrata e moral de “honra” e não da vitória ou do fracasso da revolução socialista; como se tratasse da vida ou da morte de um homem, num dia em que a flor e a nata da classe trabalhadora chilena foram massacradas sem poder se defender.
Sem dúvida que honra Salvador Allende ter permanecido até a morte no palácio La Moneda, à diferença de muitos, que abandonaram seus militantes para, depois, desde um confortável exílio, escrever circunspectos artigos sobre “a heróica resistência do Chile”. Salvador Allende é um mártir do movimento da classe trabalhadora. Mas toda a simpatia do mundo não pode mudar o que aconteceu no dia 11 de setembro de 1973, nem absolver Allende de sua responsabilidade pelo acontecido. As tentativas de desviar a atenção dos trabalhadores do que realmente ocorreu e do porque ocorreu, por meio de sentimentalismos e mitos, são indignas de socialistas e revolucionários. Se, realmente, queremos honrar a memória de Allende e dos milhares de homens e mulheres anônimos que caíram mortos naquele dia, e depois, pela causa da classe trabalhadora, nosso primeiro dever é o de aprender da experiência para não repeti-la.
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