Por Lucas Gomes
Abril de 1964. Os dois setores que primeiro foram castigados pela nova fase política nacional foram as baixas patentes das forças armadas e as organizações da classe trabalhadora, rural e industrial — bem documentado no livro “Brasil: Nunca mais” (1985, Arquidiocese de São Paulo). Dois setores inimigos do novo regime pelo que são em si mesmos, ainda que não tivessem a plena consciência disso. É apenas a partir de 1969 que estudantes, igreja católica e militantes revolucionários (armados ou não) se tornam o principal alvo dos milicos: “terroristas”.
Pergunta que introduz o título do novo livro de Douglas Barros: “Os Terroristas?”. A história oficial sempre é a história dos ganhadores, já ensinava Walter Benjamin. No Brasil você não encontrará pessoas se referindo aos antigos comerciantes de escravos como “terroristas”, ou então seus proprietários, que utilizavam a tortura como ferramenta para a extração de lucros. Como culpá-los, se eram apenas agentes racionais maximizadores? Não, nada mais distante de um terrorista. Como já está bem claro a esta altura do campeonato, “terrorista” é um vocabulário próprio dos porta-vozes do poder: há poucos dias a Arábia Saudita anunciava uma aliança com 40 países (de maiorias sunitas) para “erradicar o terrorismo”. Ao mesmo tempo acusa governos não alinhados e de maiorias xiitas (Irã, Siria, Iraque, Qatar) de financiarem o terrorismo (ver aqui e aqui). Tanto cinismo de parte das principais autoridades estatais e militares do globo só poderia desembocar na generalização da desconfiança e naquilo que se convencionou chamar de “fake news”, como bem mostra o último documentário de Adam Curtis, “Hipernormalização” (2016).
Pois bem, quem são os terroristas da história narrada pelo operário-filósofo Miguel? Gente pega de surpresa, produto de um mal entendido que acaba mobilizando o regime militar em um cerco à uma agência de banco supostamente ocupada de forma guerrilheira por um bando de operários e operárias assustados. Quem os colocou lá? A mente distorcida de algum revolucionário romântico que lê páginas de Lenin e supõe a rebelião proletária liderada pelos operários industriais? Oras, não é necessário ir tão longe (ou tão perto, para alguns): basta ver este Brasil onde a polícia mata vendedores ambulantes à queima-roupa por estarem trabalhando, onde clientes de bancos são agredidos fisicamente por complicações com a porta giratória, onde crianças negras são enxovadas de lugares comerciais por estarem desacompanhadas de seus pais por segundos; uma experiência recorrente do proletariado brasileiro, viver situações absurdas de violência institucional sem nenhum aviso prévio — basta estar no lugar errado na hora errada.
Eis algo que boa parte da militância revolucionária daquela geração não entendeu: o lugar errado na hora errada. Enquanto jovens aprendiam a usar armas de fogo e se embrenhavam no mato, operários e operárias apenas iam ao banco retirar seus salários, sem maiores pretensões. Não existe vanguarda que possa ser exitosa se não conta com uma retaguarda consistente. Mas o livro de Douglas está aqui para permitir que estes nossos companheiros e companheiras cercados por metralhadoras dentro do banco possam ser libertados e que sua versão, suas ideias possam verdadeiramente dialogar conosco. Somos nós que aparecemos lá na história que conta Miguel, somos uma massa saída diretamente das jornadas de junho de 2013, em sua melhor versão: solidarizar-se com camaradas que estão sob a mira dos milicos. Somos o que irrompeu, para o bem o e para o mal. O nó temporal que Douglas nos oferece em seu livro guarda uma chave importante para subverter os sentidos da história e das figuras clássicas que marcaram épocas de nosso país. Irromper no passado, está aí uma missão apenas começada pela geração de 2013, irromper de forma inesperada para recuperar e libertar tantos e tantas camaradas sem nome que nunca estamparão camisetas nem santinhos eleitorais. Somente sem a épica quixotesca da luta contra o regime militar é que poderemos apoiar-nos verdadeiramente nessa nossa história de classe para compreender nossas heranças. Que foram MR-8, Dilma Roussef, Aloysio Nunes e tantos outros que pegaram em armas, após o fim do regime? Que foi Lula após as greves do ABC? Funcionários da democracia, esta mesma que hoje em todo o mundo apela a leis antiterroristas, a mesma que em todos os momentos de crise apela à sua negação como forma de preservar-se. Sim, para esta todos podemos ser terroristas, basta que a vida faça das suas e sejamos nós os despejados de nossas casas, as demitidas de nossos empregos, os que trabalharão a vida toda sem aposentar-se, as que ficarão sem vagas nas escolas, sem merenda escolar, sem nossas terras tradicionais, sem água ou com água completamente contaminada. Estes são os terroristas de 2013, bem como aqueles protagonistas da história contada por Miguel num boteco na zona leste de São Paulo.
Link para o vídeo do lançamento do livro aqui