A aporia de Dworkin e a recaída na metafísica da presença

Por Luís Eduardo Gomes

Dworkin define sua empreitada como uma ataque geral ao positivismo, mas especificamente o positivismo de Hart. Para Hart, o direito atua procedendo à classificação geral de categorias de pessoas e de categoria de atos, coisas e circunstâncias. Sua eficácia enquanto instrumento de controle social depende da capacidade de reconhecer situações concretas como casos decorrentes da classificação jurídica.


“As redes de pescar palavras estão cheias de palavras (Octavio Paz)”

Na comunicação dos padrões classificatórios, a linguagem cumpre papel determinante. Hart é adepto da filosofia da linguagem ordinária. Para essa corrente, a linguagem que usamos para nos comunicar no cotidiano é marcada pela vagueza e pela ambiguidade. Diz-se que um termo é vago nos casos em que não existe uma resposta definitiva quanto à aplicação desse termo. Um termo é ambíguo quando abriga sentidos diferentes em contextos diversos.

Hart reconhece que, quando se forma uma categoria, só se tem em mente uma série de situações específicas. Por isso, não há como prever de antemão as situações que entrarão ou não sob o espectro da categoria.  Reconhecendo que certos domínios do jurídico não pode em seus aspectos mais individuais ser de forma antecipada submetido a regras uniformes, admite que, em certas matérias, o legislador traça padrões vagos. Aqui, emerge a textura (ou trama) aberta do direito:

“A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de caso para caso.” (2)

Dentro desse contexto, surgem sempre três situações diante das normas jurídicas :1) as que, claramente, caem sob seu âmbito; 2) as que, claramente, ficam de foram do seu âmbito; 3) as que ensejam dúvidas se caem ou não sob seu alcance, constituindo a denominada zona de penumbra.

A estratégia de Hart foi superar tanto o formalismo quanto o ceticismo sobre regras. Invectivou contra a visão idealista do formalismo consoante a qual a atividade do direito consiste sempre na aplicação de regras claras, uniformes e coerentes aos fatos. Também, reagiu à concepção cética dos realistas que reduz o direito à dicção dos tribunais (direito é o que os tribunais dizem que é).

Apesar de admitir que a prática do direito consiste, na maioria das vezes, na aplicação segura e invariável de padrões previamente estabelecidos, sustenta que, diante da contingência da vida social, surgirão situações que ensejam dúvidas se tombam ou não sob o espectro de um padrão prévio.

No casos de textura aberta, Hart defende que o juiz é discricionário, isto é, decide livremente sem vinculação a um padrão normativo estabelecido.

É contra a discricionariedade que Dworkin reage. Poder discricionário, desvela Dworkin, pode ser empregado em sentido fraco e em sentido forte. No sentido fraco, significa: a) que os padrões aos quais uma autoridade pública está adstrito não podem ser aplicados de maneira automática; b) que um funcionário tem a autoridade de decidir em última instância sem que haja possibilidade de revisão ou de cancelamento da decisão. No sentido forte, usa-se o termo para afirmar que, no que concerne a certos temas, o funcionário não está limitado pelos padrões da autoridade (3).

O direito como integridade parte da premissa de que os direitos foram criados por um único autor- a comunidade política – conforme um conjunto coerente de princípios. Define princípio como exigência da moralidade. Dessa forma, o direito expressa a união moral e política de um povo.

Para confrontar a discricionariedade, Dworkin, entendendo o direito como integridade, lança mão da distinção entre conceito e concepção. Para ele, diante de um caso, por mais singular que seja, não haveria dúvida acerca da aplicação de um padrão (no caso princípio). O conceito permitiria enfrentar a contingência, afastando a trama aberta. Explica Dworkin (4):

“Todavia, a teoria do significado da qual este argumento depende é demasiado tosca: ela ignora uma distinção feita pelos filósofos, mas ainda não apreciada pelos juristas. Suponha que eu dissesse a meus filhos que esperava que eles não tratassem os outros injustamente. Sem dúvida, eu teria em mente exemplos da conduta que eu desejaria desencorajar, mas não aceitaria que meu ‘significado’ se limitasse a esses exemplos, por duas razões. Em primeiro lugar, eu esperaria que meus filhos aplicassem minhas instruções a situações nas quais eu não teria pensado nem poderia ter pensado. Em segundo lugar, eu estaria pronto a admitir que algum ato particular que eu considerara justo (fair) era de fato injusto, ou vice-versa, caso um de meus filhos conseguisse me convencer disso posteriormente. Nesse caso, eu gostaria de dizer que minhas instruções incluíam o caso por ele citado, e não que eu mudaria minhas instruções. Eu poderia dizer que minha intenção era a de que a família se guiasse pelo conceito de justiça (fairness) e não por alguma concepção particular de justiça (fairness) que eu tivesse tido em mente.”

Depreende-se que, munido do conceito e não da concepção, não haveria qualquer situação que, mesmo não tendo sido antevista, pudesse ensejar dúvida acerca da aplicação do padrão estabelecido.

Aqui está a grande aporia de Dworkin. De um lado, insurgiu-se de forma contundente contra a concepção do direito como fato, liberando a ideia fecunda de que o direito é conceito interpretativo. De outro, para atacar a discricionariedade, tentou domar a contingência com o resgate do conceito enquanto universalidade a priori.

Dworkin que, em alguns momentos, mostra-se crítico à ideia de que o direito comporte uma universalidade a priori, ao defender o conceito contra a concepção, não acaba recaindo na substantivação do universal e na metafísica da presença?

Derrida aponta:

“Há portanto duas interpretações da interpretação, da estruturada, do signo e do jogo. Uma procura decifrar, sonhar uma verdade ou uma origem que escapem ao jogo e à ordem do signo, e sente como um exílio da interpretação. A outra, que já não está voltada para a origem, afirma o jogo e procura superar o homem e o humanismo, sendo o nome do homem o nome desse ser que, através da história da Metafísica ou da onto-teologia, isto é, da totalidade de sua história, sonhou a presença plena, o fundamento tranquilizador, a origem e o fim do jogo.” (DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971, P. 249)

Dworkin, ao recair na substantivação do universal, sonhou o fundamento tranquilizador, que pudesse domar a contingência.

A tese de Dworkin reverbera na tese de Lenio Streck expressa na fórmula “decidir não é escolher’ (5):

“Ora, a decisão se dá, não a partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No caso da decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito.

Presume-se, incorretamente, que a tradição é unívoca, isto é, repassada por uma só compreensão política, fundada numa unidade previamente estabelecida. A tradição na medida em que se antecipa, impondo-se ao intérprete, é como que ontologizada, como se o consenso fosse algo dado para todo e sempre (6).

A tradição não é um bloco monolítico cuja legibilidade fosse translúcida e transparente. Ao defender uma tradição enquanto univocidade ocorre, ainda que de forma inconsciente, uma recaída na metafísica da presença que privilegia o estado de coisas como um dado inerte, imutável e a-histórico.

A tradição é desajuntada, por isso, exige interpretação. Derrida, na obra magistral Espectros de Marx (7), de forma definitiva afirma:

“Uma herança não se junta nunca, ela não é jamais uma consigo mesma. Sua unidade presumida, se existe, não pode consistir senão na injunção de reafirmar escolhendo. É preciso, quer dizer, é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em torno de um segredo. Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar.”

A tradição é contraditória. Ao invés da transparência, depara-se com o obstáculo, o distante, ou, para usar Ricoeur, a prova do estrangeiro. Parece ser a grande tentação da hermenêutica recolher-se ao abrigo de um fundamento absoluto. É curioso que Scheilermacher, um dos pais da hermenêutica moderna, mesmo tendo entrevisto que, no cerne da hermenêutica, está o problema do estranho tenha sucumbido ao mito da autotransparência do sujeito invocando a empatia como comunhão de almas.

Para não sucumbir ao fantasma do fundamento absoluto, o enfrentamento da obra de Derrida é axial e inevitável. Para Derrida, toda decisão se vê a braços com a assombração do indecidível. Indecidível, diz esse gigante do pensamento, não é a tensão entre duas decisões, mas a experiência daquilo que é heterogêneo à ordem do calculável e da regra e que, mesmo assim, deve entregar-se à decisão impossível, levando em conta o direito e a regra (8). Uma decisão só é decisão quando não for o mero desdobramento de um plano calculado. Só há decisão se houver um campo, ainda que limitado, em que se possa decidir.

A teoria do direito, comprimida entre o ceticismo e o cognitivismo, precisa encontrar uma diagonal: a aposta é na hermenêutica analógica (9). E não se infira que se defende a discricionariedade, a analogia permite criar um campo controlado pelo uso público da razão sem sucumbir na universalidade ante rem em que submergem, misteriosamente, os hermeneutas. Outrossim, não se coloca indecidíveis em tudo, inviabilizando a produção de sentidos partilháveis (10).


NOTAS:

  1. Aporia não é dilema sem saída, mas uma contradição a que se chega pelo desdobramento das premissas de uma teoria.
  2. HART, Herbert L.A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 137.
  3. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 51-53.
  4. Cit. p. 211.
  5. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência, 4ª ed. Porto Alegre: Livraria dos Avogados, 2013, p. 112.
  6. RICOEUR, Paul. Du texte à l’action: essais d’herméneitique II. Paris: Seuil, 1986, p. 398.
  7. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 33.
  8. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 46. Eros Grau e Marcelo Neves são os únicos no Brasil que, de alguma forma, já arrostam a desafiante obra de Derrida.
  9. Ver: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/16/prolegomenos-para-uma-hermeneutica-analogica.
  1. Na canção Genipapo Absoluto, Caetano mostra que quem acredita na mera rememoração ignora o signo. O signo se produz analogicamente, nos meandros da difícil relação universalidade e particularidade.

    *Luís Eduardo Gomes é professor na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, mestrando em Ecologia Humana na Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Brasil e advogado.

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