Por John Berger, via Marxists.org, traduzido por Gabriel Landi Fazzio
John Berger faleceu no dia 3 de janeiro de 2017, aos 90 anos. Pintor, poeta, novelista, roteirista, ensaísta e autor de diversas obras marxistas sobre arte, declarava: “jamais comprometerei minha oposição à sociedade e à cultura burguesas”. No ensaio abaixo, originalmente publicado em maio de 1968 na revista New Society, Berger demonstra a abrangência de sua produção intelectual, debruçando-se sobre o tema das manifestações de massas.
Setenta anos atrás (em 6 de maio de 1898) houve uma manifestação massiva de trabalhadores, homens e mulheres, no centro de Milão. Os eventos que conduziram a isto envolvem uma história longa demais para que sejam tratados aqui. A manifestação foi atacada e dispersada pelo exército sob o comando do General Baccaris. À tarde a cavalaria disparou contra a multidão; os trabalhadores desarmados tentaram erguer barricadas; a lei marcial foi decretada e por três dias o exército lutou contra os desarmados.
Os registros oficiais são de 100 trabalhadores mortos e 450 feridos. Um policial foi acidentalmente morto por um soldado. Não houve baixas no exército. (Dois anos depois Umberto I seria assassinado por conta de, após o massacra, ter parabenizado publicamente o General Beccaris, o “carniceiro de Milão”).
Tenho tentado entender certos aspectos da manifestação da rua Corso Venezia em 6 de maio por conta de uma história que estou escrevendo. No processo cheguei a algumas conclusões sobre as manifestações que podem, talvez, ser mais amplamente aplicáveis.
Manifestações de massas devem ser diferenciadas de rebeliões ou levantes revolucionários embora, sob certas (não raras) circunstâncias, aquelas possam se desenvolver rumo a alguma destas. Os objetivos das rebeliões são, frequentemente, imediatos (a imediatidade combinando com o desespero que eles expressam): a obtenção de alimento, a libertação de prisioneiros, a destruição de propriedade. Os objetivos de um levante revolucionário são de longo prazo e abrangentes: culminam na tomada do poder estatal. Os objetivos de uma manifestação, todavia, são simbólicos: eles demonstram uma força escassamente utilizada.
Um grande número de pessoas se reúnem e um espaço público óbvio e previamente anunciado. Elas estão mais ou menos desarmadas. (Em 6 de maio de 1898, completamente desarmadas). Elas apresentam a si mesmas como alvo para as forças de repressão a serviço da autoridade estatal cujas políticas estão sendo objeto de protesto.
Teoricamente as manifestações servem para revelar a força de uma opinião ou sentimento popular; teoricamente elas são um apelo à consciência democrática do Estado. Mas isso pressupõe uma consciência cuja existência é bastante improvável.
Se a autoridade estatal é aberta à influência democrática, uma manifestação de massas dificilmente será sequer necessária; do contrário, é improvável que essa autoridade seja influenciada por uma manifestação de força vazia, que não contém qualquer ameaça real. (Manifestações em apoio a uma autoridade estatal alternativa já estabelecida – como quando Garibaldi avançou sobre Nápoles em 1860 – é um caso especial que pode ser imediatamente efetivo).
Manifestações ocorrem desde muito antes de o princípio da democracia ser sequer nominalmente admitido. As manifestações massivas no início do movimento Cartista foram parte da própria luta para obter tal admissão. A multidão que se agrupou para apresentar sua petição ao Czar em São Petersburgo, em 1905, estava apelando – e se apresentando como alvo – ao implacável poder de uma monarquia absoluta. Em tal evento – bem como em centenas de outras ocasiões em toda a Europa – a manifestação foi recebida a tiros.
Assim, parece que a verdadeira função de uma manifestação não é convencer a autoridade estatal existente em nenhum nível significativo. Tal objetivo é apenas uma racionalização conveniente.
A verdade é que as manifestações de massas são ensaios para a revolução: não estratégicos nem táticos, mas ensaios de consciência revolucionária. A “espera” entre o ensaio e a performance real pode ser bastante longa; sua qualidade – a intensidade da conscientização ensaiada – pode, em diferentes ocasiões, variar consideravelmente; mas qualquer manifestação que careça desse elemento de ensaio seria melhor descrita como um espetáculo público oficialmente encorajado.
Uma manifestação, não importa o quanto de espontaneidade contenha, é um evento criado que arbitrariamente separa a si próprio da vida ordinária. Seu valor é o resultado de sua artificialidade, pois nisso residem suas possibilidades proféticas e ensaísticas.
Uma manifestação de massas se distingue de outras multidões porque nelas as massas se congregam em público para criar suas funções, ao invés de se formar em resposta a uma função específica: nisso, diferem de qualquer assembleia de trabalhadores em seus locais de trabalho – mesmo quando uma ação grevista está envolvida – ou de qualquer multidão de espectadores. É uma assembleia que desafia a situação dada pelo mero fato de se reunir.
As autoridades estatais usualmente mentem sobre o número de manifestantes envolvidos. A mentira, contudo, faz pouca diferença. (Faria diferença apenas caso as manifestações realmente fossem um apelo à consciência democrática do Estado). A importância dos números envolvidos só poderá ser encontrada na experiência direta daqueles que tomaram parte ou testemunharam com simpatia a manifestação. Para estes, os números cessam de ser números e se tornam a evidência de seus sentidos, as conclusões de sua imaginação. Quanto maior a manifestação, mais poderosamente e imediatamente (visível, audível e tangível) ela se torna uma metáfora para sua força coletiva total.
Eu digo metáfora porque a força assim captada transcende a força potencial dos presentes e, certamente, sua força verdadeiramente empregada conforme exposto na manifestação. Quanto mais pessoas houver, mais forçosamente eles representam uns aos outros e para si próprios aqueles que estiveram ausentes. Nesse sentido, uma manifestação de massas simultaneamente é extensão de e dá corpo a uma abstração. Aqueles que tomam parte se tornam mais positivamente conscientes de como eles pertencem a uma classe. Pertencer a esta classe para de implicar uma sina comum e implica uma oportunidade comum. Eles começam a reconhecer que a função de sua classe não mais precisa ser limitada: que ela também, como a própria manifestação, pode criar sua própria função.
A consciência revolucionária também é ensaiada de outro modo pela escolha e o efeito da localização. As manifestações têm características essencialmente urbanas e são geralmente planejadas para acontecer o mais perto possível de algum centro simbólico, seja cívico ou nacional. Seus “alvos” são raramente os estratégicos – estações de trem, quartéis, estações de rádio, aeroportos. Uma manifestação de massas pode ser interpretada como a captura simbólica de uma cidade ou capital. Novamente, o simbolismo ou metáfora é em benefício dos participantes.
A manifestação, um evento irregular criado pelos manifestantes, não obstante ocorre perto do centro da cidade, voltado para diferentes usos. Os manifestantes interrompem a vida regular das ruas pelas quais marcham ou dos espaços abertos que ocupam. Eles cortam essas áreas e, não dispondo ainda do poder para ocupá-las permanentemente, as transformam em um palco temporário no qual dramatizam o poder que ainda lhes falta.
A visão dos manifestantes quanto à cidade que cerca seu palco também muda. Protestando, eles manifestam uma maior liberdade e independência – uma maior criatividade, mesmo que o produto seja apenas simbólico – do que eles jamais atingiriam individualmente ou coletivamente quando seguindo suas vidas regulares. Em suas buscar individuais eles apenas modificam circunstâncias; se manifestando eles simbolicamente opõem suas próprias existências às circunstâncias.
Essa criatividade pode ser desesperada em sua origem e o preço a ser pago alto, mas ela temporariamente muda suas perspectivas. Eles se tornam corporativamente conscientes que são eles ou aqueles a quem representam que construíram a cidade e a mantém. Eles a enxergam com novos olhos. Eles a vêm como seu produto, confirmando seu potencial ao invés de reduzi-lo.
Finalmente, há outro modo pelo qual a consciência revolucionária é ensaiada. Os manifestantes apresentam a si próprios como alvo para as chamadas forças da lei e da ordem. Contudo, quanto maior o alvo que eles apresentam, mais fortes se sentem. Isso não pode ser explicado pelo banal princípio da “força nos números” tanto quanto pelas teorias vulgares sobre a psicologia das massas. A contradição entre sua real vulnerabilidade e seu senso de invencibilidade corresponde ao dilema que eles forçam sobre a autoridade estatal.
Ou, por um lado, a autoridade deve abdicar e permitir à multidão que faça como bem quiser: nesse caso o simbólico subitamente se torna real e, mesmo que a falta de organização e preparação da multidão a impeça de consolidar sua vitória, o evento demonstra a debilidade da autoridade. Ou, por outro lado, a autoridade deve restringir e dispersar a multidão com violência: nesse caso o caráter antidemocrático de tal autoridade é publicamente exposto. O dilema imposto é entre debilidade exposta ou autoritarismo exposto. (As manifestações oficialmente aprovadas e controladas não impõem o mesmo dilema: seu simbolismo está censurado; motivo pelo qual eu as classifico como mero espetáculo público). Quase invariavelmente a autoridade opta pela força. A extensão de sua violência depende de muitos fatores, mas raramente um desses fatores é a própria escala da ameaça física que a manifestação oferece. Essa ameaça é essencialmente simbólica. Mas, atacando uma manifestação, a autoridade assegura que o evento simbólico se torne um histórico: um evento a ser lembrado, a ser vingado, do qual se deve extrair lições.
É da própria natureza de uma manifestação provocar a violência contra si. Essa provocação pode ser, também, violenta. Mas, ao fim, ela está fadada a sofrer mais do que inflige. Essa é uma verdade tática e histórica. O papel histórico das manifestações é expor injustiça, crueldade, irracionalidade da autoridade estatal existente. Manifestações são protestos de inocência.
Mas a inocência é de dois tipos, que podem apenas ser tratados como um no plano simbólico. Para os propósitos da análise política e o planejamento da ação revolucionária, eles devem ser separados. Há uma inocência a ser defendida e uma inocência que deve finalmente ser perdida: uma inocência que deriva da justiça e uma inocência que é consequência da falta de experiência.
As manifestações expressam ambições políticas antes de os meios políticos necessários à sua realização tenham sido criados. As manifestações predizem a realização de suas próprias ambições e, assim, contribuem para essa realização, mas não podem elas próprias atingi-las.
A questão que os revolucionários devem responder em cada dada situação histórica é em que medida promover mais ensaios simbólicos é ou não necessário. O próximo passo é o treinamento em tática e estratégia para a performance propriamente dita.