Por Alain Badiou, via VersoBooks, traduzido por Rodrigo Gonsalves.
Badiou discute a morte em uma articulação que, transversalmente, dispõe de conceitos filosóficos centrais de algumas de suas obras, como “Ser e Evento” e a “Lógica dos Mundos”.
Bem, podemos dizer que niilismo é a subjetivação negativa da finitude; é fundamentalmente a consciência organizada ou anárquica (ambas são possíveis) de que, porque iremos morrer, nada importa. A figura mais clássica do niilismo é a declaração de que tudo é sem valor, sem simbolização e insustentável frente à morte. É uma equalização da totalidade de tudo que poderia ser valorizado, diante da radical finitude ontológica que a morte representa. Essa questão da relação entre niilismo e valores é, como se sabe, a questão central da filosofia de Nietzsche, que toma este tema do niilismo para fazer um diagnóstico muito importante, bem como seu uso crítico.
Na realidade, a declaração “porque morreremos, nada importa” pode continuar sendo teológica. De fato, nós podemos dizer “nada é importante, exceto Deus, exceto a salvação eterna, exceto a outra vida…”; e então iríamos embarcar em algo que não niilismo, mas a vocação ao martírio ou até colocando esperança na própria morte, dado que a morte é a única porta ao infinito, logo a única porta ao valor que importa, o valor supremo. Então devemos dizer que o completo, todo niilismo é o niilismo que não considera a prova de morte da inevitável desvalorização das diferenças, mas que completa esse julgamento com a própria morte de Deus. Então nós podemos falar de niilismo completo apenas quando a morte do homem é pareada com a morte de Deus. É evidentemente neste sentido que Dostoievsky faz que um de seus personagens proclame “se Deus está morto, então tudo é permitido”. Isso é uma declaração niilista no sentido de que Deus está morto, então nada nos permitirá clamar uma desigualdade entre valores diferentes. O próprio julgar não mais interessa, agora que a morte é constituída duplamente, tanto pela morte empírica do homem quanto pela morte histórica dos deuses.
Na realidade, esse niilismo provavelmente organiza a complicada disposição histórica – uma que ainda hoje está incompleta – que necessariamente constrói o que eu irei chamar de uma falsa contradição, uma contradição que representa as duas possíveis variáveis subjetivas do niilismo estabelecido.
A primeira posição é cética, o niilismo ateu, que é de fato a maior ideologia sustentada no mundo contemporâneo. “Sim, é bom duvidar”… – e isso é uma interpretação absolutamente falaciosa de Descartes, quando sabemos que o seu único interesse era provar a existência de Deus e permanecer em dúvida o mínimo período possível. Se tornou um tipo de herança, com uma longa historia – inclusive na França – e uma que resulta na perspectiva que, fundamentalmente, o levemente cético reino das opiniões razoáveis combinada com um ateísmo sorridente é um estado subjetivo aceitável, mesmo que isso não pareça muito vigoroso ou excitante. Isso é uma configuração niilista, mas é também o que podemos chamar de niilismo “não-trágico” – o estável, niilismo pacifico. A outra posição, ao contrário é o frenético desejo da ressurreição de Deus – até mesmo porque, os deuses tem um habito de reviverem; eles sempre mostraram que sua grandeza é impor um desafio à própria morte.
Isso é absolutamente o que temos diante de nós hoje em dia, inclusive no nível da opinião geral: por um lado, a vontade de preservar algo do niilismo cético, do ateísmo sorridente e o modo de vida que correspondo à ela, e então, do outro lado, uma tentativa à impossível ressurreição da morte de Deus. Penso que essa contradição é uma falsa contradição que organiza o próprio niilismo como uma renuncia primordial do julgar e em particular como uma renuncia à categoria de verdade. Essa contradição – como é sempre o caso com grandes contradições – possui hoje uma forma trágica e uma forma cômica (mesmo que por vezes seja uma sinistra comédia). A forma trágica é o confronto extraordinariamente violento – que é sempre sobre campos de petróleo (um niilismo oleoso) – entre o barbarismo sofisticado e o que podemos chamar de barbarismo arcaico, assassinando seja com drones eletrônicos ou com cutelo de açougueiro. Nesse último caso você é forçado à investir algo da sua própria pessoa, já com o drone você pode ficar em sua poltrona de repouso e comandar o assassinato à 3.000 quilômetros de distância, antes de avisar o presidente que assinou a ordem de assassinato como ele sucedeu. É esta a forma trágica porque é tudo a mesma coisa, assombrado pela morte, assassinado e ocupação; e é tudo mais trágico porque não é possível ver qualquer saída para fora disto, de enxergar como poderia ser possível dar sentido para qualquer forma para além deste embate, precisamente porque é este embate entre duas posições que é em certo sentido insustentável.
Pela sua forma cômica, nós podemos ver no fato de que jornais que podem disponibilizar em suas manchetes de primeira página o tamanho das saias das alunas de escola como se isso fossem noticiáveis hoje em dia. Isso irá para os anais da historia como “a guerra das saias”… Não é inteiramente o mesmo do que o outro niilismo, mas em realidade expressa a mesma contradição, porque ceticismo e niilismo ateu, é também todo um universo de representações de feminidade, da relação de feminidade, etc – e a impossibilidade de ressuscitar o Deus morto que também se pega neste ponto. Portanto, querela é a forma cômica da guerra.
Nós poderíamos perguntar o que os dois lados dessa contradição tem em comum. O que eles têm é, em última análise, a finitude. Isso é claro na forma cética e ateia do niilismo, onde não é o julgamento que importa, mas o jogo livre das opiniões. Enquanto para a figura da impossível ressurreição do Deus morto, nós sabemos muito bem que você só pode alcançar Deus ao manifestar e martirizar sua finitude; então é sempre uma questão da humilhação da finitude diante da grandiosidade do infinito, que transcende e é externo a este.
Logo em ambos os casos é o poder da finitude que é convocado como o território ou campo das oposições; e que é convocado em sua quádrupla forma de operação: por saber, da identidade, repetição, necessidade e o próprio Deus. Esses quatro termos estão, de fato, presentes no coração da contradição da qual me refiro.
Identidade, por que é evidentemente uma guerra identitária. Uma “guerra civilizatória”, uma guerra de religiões, uma guerra entre o Ocidente e o que não é Ocidente, uma guerra entre democracia e tirania: possui incontáveis nomes, mas por fato se manifesta como uma guerra identitária.
Repetição, porque de certo modo é uma cena já ensaiada, particularmente na representação de uma conflito entre o Ocidente e o Oriente. Aqui podemos mobilizar as Cruzadas, ou, de modo inverso a expansão da religião muçulmana sob o Império Otomano, ou novamente no outro sentido, colonialismo e o cristianismo impondo sua autoridade sobre o povo muçulmano – em qualquer um dos casos, é uma repetida cena historicamente constituída. Necessidade, porque há a necessidade de implantar a modernidade concebida como o inimigo irredutível da tradição. Essa é a questão da simbolização, do valor, que é posto enquanto a necessidade da modernidade para que se seja capaz desenvolver sem os obstáculos, sem reticências e objeções da tradição. Então, por fim, nós podemos claramente ver que Deus é a linha divisória entre, de um lado, o ceticismo – que inclui a necessidade ou autorização da blasfêmia – e, do outro lado, a tentativa de ressuscitar o Deus morto, que ao invés, fala do respeito pelos conteúdos da fé.
O termo comum neste conflito é a exarcebação do poder da finitude. O que quero apontar aqui é que identidade, repetição, necessidade e Deus estão reunidos no tema da morte. O pensar da finitude é essencialmente mortal e mortífero [mortifère et mortifiant]. Morte é a implícita ou explicita recapitulação dos quatro termos.
Primeiro, identidade. Na lógica da finitude, nós apenas sabemos quem alguém é quando ele morre. Morte é o selo que nos permite dizer o que alguém é – de outro modo você ainda não sabe do que essa pessoa é capaz. Esse é o tema que você encontrará na tragédia Grega. É a morte que sela o destino das identidades individuais mas também as identidades dos povos: sabemos da fascinação do séc. XVII pela queda do império Romano, que era o ponto em que era possível capturar e considerar o que a identidade do império Romano em seu próprio ser verdadeiramente foi. Há uma frase de Sartre assustadora sobre isto, que é “estar morto é ser presa dos vivos”. A morte efetivamente o momento quando você não mais pode contra argumentar ou defender a sua causa contra o veredicto que os vivos escolheram para lhe entregar.
Repetição. A morte é o que faz cada individuo ser substituível por qualquer outro. “A morte é o maior equilizador” – um tema que encontramos por toda a extensão de qualquer religião. No momento da morte você para de ser um rei ou um trabalhador; você vai morrer, e diante desta amedrontadora ameaça de morte e do Juízo Final, qualquer um será substituído por qualquer outro. A morte é o meio pelo qual a humanidade indefinidamente repete sua constitutiva finitude. Esse é o significado da mediação buscada em Eclesiastes: “Nada há de novo sob o sol”. Isso quer dizer que tudo está rumando em direção à morte, sem a própria morte mudar qualquer coisa. [O que então nos leva à] magnífica metáfora “todas os rios correm para o mar, contudo, o mar nunca se enche”. Essa comunhão-em-morte é também uma aniquilação do tempo, que cancela em absoluto a capacidade criativa do tempo: “O que são centenas e centenas de anos, quando esses podem ser apagados em um instante?” (Bosseut).
Necessidade. A Morte é a única coisa que nós temos certeza. Tudo mais é aleatório e variável – finalmente, a necessidade pura da forma humana é cristalizada na morte. Malraux conta que Stalin disse (e tem sido questionado se este o fez), indubitável num dia em que se sentia melancólico que, “Finalmente, é a morte quem vence”… mesmo se você for Stalin. Esse é o niilismo stalinista.
E então Deus, que evidentemente, sempre esteve conectado com a morte. Deus é a promessa da imortalidade, de fato, imortalidade em si. Deus é o nome da não-morte.
Pode se ver que a morte é o motivo que recapitula as instancias da finitude, também por ser convocada enquanto o argumento definitivo sempre em que supomos, ou invocamos, a possibilidade da imanência humana, efetivamente, acessar alguma verdade de um poder infinito – nós sempre dizemos “em última análise, o homem é um animal mortal”. Por este ponto de vista, eu sempre admirei o exemplo canônico que você aprende na escola sobre o que é um argumento lógico: “Todo homem é morta e, Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal”. Conectado neste exemplo há uma tripla relação entre (1) necessidade – isso é, silogismo, enquanto a forma lógica da necessidade, (2) a pretensão à sabedoria ou grandiosidade enquanto incorporada em Sócrates e, (3) o nós entre as duas, a morte. Esse silogismo pedagógico é veiculo tóxico da finitude. E é por isso que é dado para todos como o princípio da sabedoria lógica.
Agora seria interessante perguntar o que a forma moderna absoluta pensa disto. Eu penso que não se trata nem um pouco em insistir no valor da morte, dando-a um lugar de importância, mas sim é o caso de encobrir sua finitude. Isso significa calmamente configurar essa finitude à distancia, relegando-a aos cantos perdidos, se possível, com a idéia de que, em qualquer caso, já vivemos bastante tempo… Fundamentalmente, a idéia é que a morte pode por fim ser encoberta por um carpete de produtos. A mobilidade consumista, a possibilidade da humanidade sempre possuir outra chance ao seu alcance, esse “outro” serial da produção (outro objeto, outra jornada…) é em realidade o que encobre as categorias da morte, ao mesmo tempo sendo o mesmo que é. Se pensarmos sobre isso, o consumismo de produtos é também, por fim, a repetição, a identidade dos objetos e etc. Então é a morte em sua forma consumível. Eu sempre tive essa sensação de que quando compramos um objeto, seja este qual for, particularmente os mais inúteis dos objetos – isso é, os mais divertidos – é como na Idade Media quando as pessoas costumavam comprar indulgencias. É comprar uma pequena garantia contra a vilania da morte, uma pequena fatia fetichista anti-morte. A imagem que tenho disto em minha mente é que depois de se encobrir de pouquinho em pouquinho por esses produtos, e então finalmente desaparecendo por trás deles, nós morremos: e é aí que a verdadeira realidade, a verdadeira imortal realidade, triunfa – a imortalidade do mercado. Esse é o grande conforto – a vida é coberta por pequenas parcelas de indulgencias, de tal forma que este encobrir finda por deslocar a morte, simplesmente por ser idêntica à morte.
Em realidade, penso que o grande elemento da modernidade é ter generalizado a lenta morte. É por isto que nossas sociedades tem tanta dificuldade em lidar com catástrofes. Não podem haver catástrofes: isso é pa