Entrevista por Eric Aeschimann, via Bibliobs, traduzido por Daniel Alves Teixeira.
O filósofo Jacques Rancière analisa o papel dos intelectuais e da esquerda na ascensão da Frente Nacional, partido francês de extrema direita.
L’OBS: Há três meses, a França desfilou em nome da liberdade de expressão e da vida em conjunto. As últimas eleições departamentais foram marcadas por um novo impulso da Frente Nacional. Como você analisa a sucessão rápida desses dois eventos, que parecem contraditórios?
Jacques Rancière: Não é certo que haja aí uma contradição. Todos, claro, estão de acordo em condenar os atentados de janeiro e em felicitar a reação popular que a seguiu. Mas a unanimidade exigida em torno da “liberdade de expressão” manteve uma confusão. Com efeito, a liberdade de expressão é um princípio que rege a relação entre os indivíduos e o Estado interditando o último de impedir a expressão de opiniões que lhe sejam contrárias.
Ora, aquilo desrespeitado em 7 de Janeiro no “Charlie” é um princípio completamente diferente: o princípio de que nós não atiramos em alguém porque nós não gostamos do que ele diz, o princípio que regra a maneira como os indivíduos e grupos vivem juntos e aprendem a se respeitar mutualmente.
Mas nós não nos interessamos por essa dimensão, e nós escolhemos se concentrar sobre o princípio da liberdade de expressão. Ao fazê-lo, nós juntamos um novo capítulo a campanha que, há anos, utiliza os grandes valores universais para desqualificar melhor uma parte da população, ao opor os “bons Franceses”, partidários da República, da laicidade ou da liberdade de expressão, aos imigrantes, necessariamente comunitaristas, islâmicos, intolerantes, sexistas e atrasados.
Nós invocamos frequentemente o universalismo como princípio de vida em comum. Mas justamente o universalismo foi confiscado e manipulado. Transformado em sinal distintivo de um grupo, ele é usado para acusar uma comunidade específica, notadamente através de campanhas frenéticas contra o véu. É esta perversão que o 11 de Janeiro não foi capaz de colocar a distância. Os desfiles reuniram sem distinção aqueles que defendem os princípios de uma vida em comum e aqueles que exprimem seus sentimentos xenófobos.
L’OBS: Você está dizendo que aqueles que defendem o modelo republicano laico contribuem, apesar deles, para a limpar o terreno para a Frente Nacional?
Jacques Rancière: Nos é dito que a Frente Nacional se “desdiabolizou”. O que isso quer dizer? Que ela colocou de lado as pessoas muito abertamente racistas? Sim. Mas principalmente que a diferença mesma entre as ideias da Frente Nacional e as ideias consideradas como respeitáveis e pertencentes à herança republicana se evaporou.
Por vinte anos, é de certos intelectuais da esquerda dita “republicana” que vieram os argumentos a serviço da xenofobia ou do racismo. A Frente Nacional não tem mais necessidade de dizer que os imigrantes roubam nosso trabalho ou que eles são pequenos bandidos. Basta-lhe proclamar que eles não são laicos, que eles não partilham nossos valores, que eles são comunitaristas….
Os grandes valores universais – laicidade, regras comuns para todos, igualdade homem-mulher – tornaram-se o instrumento de uma distinção entre “nós”, aqueles que aderem a estes valores, e “eles”, que não aderem a eles. A FN pode economizar seus argumentos xenófobos: eles lhe são fornecidos pelos “republicanos” sob as aparências mais honradas.
L’OBS: Se seguirmos você, é o próprio sentido da laicidade que teria sido pervertida. O que a laicidade representa para você?
Jacques Rancière: No século XIX, a laicidade foi para os republicanos o instrumento político que permitiu liberar a escola da influência que a Igreja Católica fazia pesar sobre ela, especialmente desde a lei Falloux, aprovada em 1850.
A noção de laicidade designa então todas as medidas específicas tomadas para destruir esta influência. Ora, a partir de 1980, nós decidimos fazer dela um grande princípio universal. A laicidade foi projetada para regrar as relações entre o Estado e a Igreja Católica. A grande manipulação foi transformá-la em uma regra que todos os particulares devem obedecer. Não é mais o Estado que deve ser laico, é o indivíduo.
E como é que vamos identificar uma pessoa que diverge do princípio da laicidade? Através do que ela carrega na cabeça … Quando eu era criança, no dia das comunhões solenes, nós íamos para a escola encontrar nossos amigos que não eram católicos, vestindo nossas braçadeiras comungantes e lhes distribuindo as imagens. Ninguém pensava que isso colocava em perigo a laicidade. O que estava em jogo na laicidade, portanto, era o financiamento: à escola pública, os fundos públicos; à escola privada, fundos privados.
Esta laicidade centrada na relação entre a escola pública e a escola privada foi enterrada em favor de uma laicidade que pretende ditar o comportamento dos indivíduos e é usado para estigmatizar uma parte da população através da aparência física de seus membros. Alguns impulsionaram o delírio ao ponto de reclamar uma lei proibindo o uso do véu na presença de uma criança.
L’OBS: Mas de onde viria essa vontade de estigmatizar?
Jacques Rancière: Existem causas diversas, algumas ligadas à questão palestina e às formas de intolerância recíproca que ela nutri aqui. Mas existe também o “grande ressentimento da esquerda”, nascido das grandes esperanças dos anos 1960-1970 depois da liquidação destas esperanças pelo partido dito “socialista” quando ele chegou ao poder.
Todos os ideais republicanos, socialistas, revolucionários, progressistas foram voltados contra eles mesmos. Eles se tornaram o contrário do que deveriam ser: não mais as armas de combate pela igualdade, mas as armas de discriminação, de desconfiança e de desprezo de um povo apresentado como embrutecido ou atrasado. Incapaz de combater o crescimento das desigualdades, nós as legitimamos desqualificando aqueles que sofrem seus efeitos.
Pense no modo como a crítica marxista voltou-se para alimentar uma denúncia do indivíduo democrático e do consumidor despótico – uma denúncia que visa aqueles que têm o mínimo para consumir… A inversão do universalismo republicano em um pensamento reacionário, estigmatizando os mais pobres, vem da mesma lógica.
L’OBS: Não é legítimo combater o uso do véu, em que não é evidente que se veja um gesto de emancipação feminina?
Jacques Rancière: A questão é saber se a escola pública tem por missão emancipar as mulheres. Nesse caso, não deveria ela igualmente emancipar os trabalhadores e todos os dominados da sociedade francesa? Existem todos os tipos de sujeição – social, sexual, racial. O princípio de uma ideologia reativa, é de focar uma forma particular de submissão para confirmar melhor as outras.
Os mesmos que denunciam o feminismo como “comunitarista” foram encontrados mais tarde como feministas para justificar as leis anti-véu. O estatuto das mulheres no mundo muçulmano é certamente problemático, mas são primeiramente as interessadas que identificam aquilo que para elas é opressivo. E, em geral, são as pessoas que sofrem a opressão que devem lutar contra a submissão. Nós não libertamos as pessoas por substituição.
L’OBS: Voltemos à Frente Nacional. Você muitas vezes criticou a ideia de que o “povo” seria racista por natureza. Para você, os imigrantes são menos vítimas de um racismo “de baixo” que de um racismo “de cima”: os controles racistas da polícia, a relegação aos bairros periféricos, a dificuldade em encontrar uma habitação ou um trabalho quando se possui um nome de origem estrangeira. Mas, quando 25% dos eleitores dão o seu voto a um partido que quer congelar a construção de mesquitas, não é um sinal de que, apesar de tudo, as pulsões xenófobas instam a população francesa?
Jacques Rancière: Primeiramente, essas pulsões ultrapassam largamente o eleitorado da extrema direita. Onde está a diferenças entre uma prefeitura da Frente Nacional que rebatiza a rua do 19-Março-1962 [Robert Ménard, em Béziers, ed], dos eleitos da UMP que demandam que nós ensinemos os aspectos positivos da colonização, Nicolas Sarkozy que se opõe aos menus sem porco nas cantinas escolares ou os intelectuais ditos “republicanos” que querem excluir as jovens de véu da universidade?
Portanto, é muito simples reduzir o voto na Frente Nacional à expressão de ideias racistas ou xenófobas. Antes de ser um meio de expressão de sentimentos populares, a Frente Nacional é um efeito estrutural da vida política francesa tal como ela foi organizada pela Constituição da V República. Ao permitir que uma pequena minoria governe em nome da população, esse regime abre mecanicamente um espaço ao grupo político capaz de declarar: “Nós, nós estamos fora desse jogo.”
A Frente Nacional se instalou nesse lugar depois da decomposição do comunismo e do esquerdismo. Quanto aos “sentimentos profundos” das massas, quem os mede? Eu noto apenas que não há na França o equivalente ao PEGIDA, o movimento alemão xenófobo. E eu não acredito na aproximação, muitas vezes feita, com 1930. Eu não vejo nada comparável na França atual às grandes milícias de extrema-direita do período entre guerras.
L’OBS: Escutando você, não haveria necessidade de lutar contra a Frente Nacional …
Jacques Rancière: Temos de lutar contra o sistema que produz a Frente Nacional e, portanto, também contra a tática que utiliza a denunciação da Frente Nacional para mascarar a direitização galopante das elites governamentais e da classe intelectual.
L’OBS: A hipótese de sua chegada ao poder não o inquieta?
Jacques Rancière: Dado que eu analiso a Frente Nacional como o fruto do desequilíbrio próprio de nossa lógica institucional, minha hipótese é antes de uma integração no seio do sistema. Já existem muitas semelhanças entre a Frente Nacional e as forças presentes no sistema.
L’OBS: Mas se a Frente Nacional chegar ao poder, isso teria efeitos bastante concretos para os mais fracos da sociedade francesa, isso quer dizer os imigrantes…
Jacques Rancière: Sim, provavelmente. Mas eu não vejo o Frente Nacional organizando grandes partidas em massa, centenas de milhares ou de milhões de pessoas, para lhes enviar “para casa”. A Frente Nacional não é os pequenos Brancos contra os imigrantes. Seu eleitorado se estende a todos os setores da sociedade, inclusive do lado dos imigrantes. Agora, com certeza, poderia haver ações simbólicas, mas eu não acredito que um governo UMP-FN seria muito diferente de um governo UMP.
L’OBS: Com a aproximação do primeiro turno, Manuel Valls reprovou os intelectuais franceses seu “adormecimento”: “Onde estão os intelectuais, onde estão as grandes consciências desse país, os homens e mulheres de cultura que devem, eles também, subir ao parapeito, onde está a esquerda?”, ele lançou. Você se sentiu concernido?
Jacques Rancière: “Onde está a esquerda?”, perguntam os socialistas. A resposta é simples: ela está lá onde eles a conduziram, isso quer dizer ao nada. O papel histórico do Partido socialista foi de matar a esquerda. Missão completa. Manuel Valls se pergunta o que fazem os intelectuais…. Francamente, eu não vejo muito bem o que as pessoas como ele tenham a lhes reprovar. Eles denunciam seu silêncio, mas a verdade, é que, depois de décadas, certos intelectuais falaram enormemente. Eles foram tornados estrelas, sacralizados. Eles contribuíram largamente para as campanhas odiosas sobre o véu e a laicidade. Eles não foram senão muito tagarelas.
Eu acrescentaria que fazer apelo aos intelectuais, é fazer apelo às pessoas bastante cretinas para fazer o papel de porta-palavras da inteligência. Pois nós não podemos aceitar um tal papel, com certeza, senão se opondo a um povo apresentado como composto de embrutecidos e de atrasados. O que vem de novo a perpetuar a oposição entre aqueles “que sabem” e aqueles “que não sabem”, que precisaríamos justamente quebrar se nós queremos lutar contra a sociedade do desprezo que a Frente Nacional não é mais que uma expressão particular.
L’OBS: Existem no entanto os intelectuais – entre eles você-mesmo – que combatem esse direitização do pensamento francês. Você não acredita na força da palavra do intelectual?
Jacques Rancière: Não é preciso esperar de quaisquer individualidades que elas desbloqueiem a situação. O desbloqueio não poderá vir senão dos movimentos democráticos de massa, que não sejam legitimados pela possessão de um privilégio intelectual.
L’OBS: Em seu trabalho filosófico, você mostra que, desde Platão, o pensamento político ocidental tem a tendência de separar os indivíduos “que sabem” e aqueles “que não sabem”. De um lado, existiria a classe educada, racional, competente e que tem por vocação governar; de outro, a classe popular, ignorante, vítima de suas pulsões, e então o destino é de ser governada. Esta estrutura de análise se aplica a situação atual?
Jacques Rancière: Há muito tempo, os governantes têm justificado seu poder se adornando de virtudes reputadas como próprias a classe esclarecida, como a prudência, a moderação, a sabedoria……Os governos atuais se valem de uma ciência, a economia, da qual eles não fariam mais do que aplicar as leis declaradas objetivas e inelutáveis – leis que são miraculosamente de acordo com os interesses das classes dominantes.
Agora nós vimos os desastres econômicos e o caos geopolítico produzidos nos últimos quarenta anos pelos detentores da velha sabedoria dos governantes e da nova ciência econômica. A demonstração da incompetência das pessoas supostamente competentes suscita simplesmente o desprezo dos governados contra os governantes que os desprezam. A manifestação positiva de uma competência democrática dos supostamente incompetentes é algo completamente diferente.
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